Mais um excepcional texto de Adriano Melo na coluna Alfarrábios do Melo, no site Mundo Rubro-Negro. O objetivo do texto, publicado sob o título "O Último Gringo", à época da contratação do colombiano Reinaldo Rueda como novo treinador rubro-negro, em agosto de 2017, era narrar a passagem do último estrangeiro antes de Rueda a haver estado comandando o time rubro-negro. A contribuição histórica do texto, no entanto, é outra: joga luz mais uma vez ao fato de que "1981 foi um ano como qualquer outro". Tudo o que está narrado abaixo pelo autor aconteceu no 1º semestre de 1981, o maior ano da história do clube. E a "Crise na Gávea" como sempre estava lá... faltavam poucos meses para o título mundial, com a conquista da Copa Intercontinental. Eis a integra do texto do Melo:
E Coutinho se foi.
Um estranho e mal explicado vazamento de uma suposta lista de dispensas sela o destino e finaliza o trabalho de um dos mais relevantes treinadores da história do CR Flamengo. Uma passagem de quatro anos (intercalada por licenças para treinar a Seleção), que resultou na montagem do time Tricampeão Estadual e Campeão Brasileiro. Mas que sucumbiu ao desgaste do tempo.
Substituir Coutinho é o primeiro desafio da nova Diretoria, eleita para assumir o clube no próximo biênio. Ainda tomando pé das coisas do clube (tarefa facilitada pela continuidade proporcionada pela manutenção do mesmo grupo político no comando), opta-se pela efetivação de um velho conhecido. O paraguaio Modesto Bría.
Pode-se dizer que Bría é um estrangeiro “da casa”. Brilhante centro-médio (volante) da equipe tricampeã em 42-43-44, jamais se desvinculou do Flamengo após pendurar as chuteiras, sendo utilizado na Comissão Técnica dos profissionais ou das Divisões de Base, onde se radicou. Com esse perfil, tornou-se a indicação natural para assumir o comando técnico da equipe em momentos de hiato. Foi treinador, efetivo ou interino, do rubro-negro em 1959/60, 1967 e 1971. Assim, surge como a perfeita “solução-tampão” para a função, enquanto o clube define suas diretrizes.
Modesto Bría assina por quatro meses, até 30 de abril. A idéia é mantê-lo no comando da equipe durante toda a disputa do Campeonato Brasileiro, cujo objetivo, naturalmente, é a conquista do Bicampeonato. Caso desenvolva um bom trabalho, a Diretoria acena com a possibilidade de extensão do vínculo, aí já tendo em vista os desafios do Segundo Semestre, no caso a Libertadores e o Estadual.
Bría dispõe basicamente do mesmo plantel que terminou a temporada anterior. O ponta de lança Lico, pouco aproveitado por Coutinho, é emprestado ao Joinville e retornará apenas em junho. Para seu lugar o Flamengo traz Peu, revelação do CSA de Alagoas, que já chega com a responsabilidade de emular a trajetória de um antigo ídolo, Dida. Peu vem por empréstimo de um ano.
No entanto, o rubro-negro terá três importantes baixas nas duas fases iniciais da competição. Os três principais jogadores da equipe, Zico, Júnior e Tita, estão servindo à Seleção, envolvida com a preparação e disputa das Eliminatórias para a Copa. Sem suas estrelas, o Flamengo pensa em aproveitar a Primeira Fase (em que os jogos são mais fáceis) para dar mais jogo a alguns jovens da base, como os volantes Vítor e Lino, o ponta-esquerda Edson e os centroavantes Anselmo e Ronaldo.
Mas há jogadores de saída, ou quase. Enfrentando severas dificuldades para manter os salários em dia, a Diretoria vê com bons olhos a venda de algum jogador. O primeiro a ser assediado é Adílio, que interessa ao Los Angeles Aztecs-EUA (novo clube de Coutinho, que o indica). O negócio quase sai (Adílio chega a se declarar “sentindo-se nos States”), mas uma divergência quanto ao pagamento das luvas aborta a transação. O zagueiro Marinho também é tentado pelo clube americano, também balança com a proposta, mas recusa sair do Flamengo por um motivo aparentemente prosaico: sua esposa não quer deixar o país. Por fim, o ponta-esquerda Júlio César, o “Uri Geller”, que inicia o ano fazendo bons jogos, é procurado pelo Talleres-ARG. Dessa vez o negócio acontece, e o irrequieto atacante encerra sua passagem pelo Flamengo, para alívio de uma Diretoria preocupada com as contas do clube.
Outro desafio de Bría é recuperar alguns jogadores de bom nível que encerraram 1980 em péssima fase, chegando inclusive a serem barrados por Coutinho. É o caso de Carpegiani, Rondinelli, Nunes e Fumanchu. E Luís Pereira. Mas, irritado por ver o experiente zagueiro se reapresentar oito quilos acima do peso, avisa à Diretoria: “Esse podem vender. Não conto com ele”. Mas o zagueiro é mantido no elenco. E, em princípio, segue na reserva.
De semblante sério mas de bom diálogo, Bría segue a linha “boleira” e intuitiva. Não costuma inventar muito nas escalações, embora às vezes opte por algumas improvisações extravagantes. Precisa que os jogadores “corram pra ele”, para que seus esquemas, normalmente pouco sofisticados, funcionem. Um ponto fraco de sua linha de trabalho é a disciplina, o que o faz ter dificuldades com jogadores rebeldes.
Bría acredita que, tendo sua equipe adestrada a executar o que foi treinado, a imposição pela capacidade técnica se dará naturalmente. Gosta de fazer o time entrar mais cauteloso no início das partidas, para “estudar o adversário”, soltando-o depois de uns vinte ou trinta minutos, agora mais ambientado com a movimentação da outra equipe.
É adepto da tese, “os outros que devem se preocupar com o Flamengo”, o que gera situações inusitadas e mesmo pitorescas. Antes da estréia no Brasileiro, contra o Santos no Maracanã, é perguntado sobre o adversário: “Dizem que está em um mau momento. Tomara que seja verdade”. Em Manaus, antes de uma partida contra o Nacional local, exibe desconcertante sinceridade, “Eles ganharam do Cruzeiro, não é? Então devem ter um bom time”. Antes do encontro com o Itabaiana, em Aracaju, crava: “Não sei nada sobre o time deles. Mas não estou preocupado. Meu amigo Dequinha é de lá, quando chegar a Sergipe eu vou pegar informações com ele”. Por fim, sobre o Uberaba, já na Segunda Fase, disserta: “Disseram-me que o zagueiro, o meia e o centroavante deles são bons, de certa categoria. Vamos ver isso na hora”.
A passagem de Bría é conturbada, marcada por diversos problemas na gestão do elenco. O primeiro deles estoura na zaga. Bría, como já indicara, inicia o Brasileiro com Rondinelli e Marinho formando a dupla titular. No entanto, o Deus da Raça é expulso em um jogo em Belém. Com isso, Bría pretende utilizar Luís Pereira no compromisso seguinte, contra o Sampaio Correa, no Maracanã. Luís Pereira, que já vinha reclamando nos jornais (“Sou um zagueiro consagrado, de Seleção. Não vou aceitar ficar na reserva, não condiz com um profissional da minha categoria”), aproveita para capitalizar o momento. “Veja bem, eu preciso ver com o Professor essa situação. Porque tenho outras propostas, estou inclusive negociando com uma equipe grande. Se entrar em campo e assinar a súmula, não poderei mais me transferir. Mas ficar aqui como reserva, como tapa-buraco, também não vai ser. O clube também precisa ver o meu lado. A coisa precisa ficar ajeitada para todos”. Sabe-se lá o que é resolvido, mas Luís Pereira entra em campo. E não perde mais a vaga até o fim do Brasileiro.
O outro zagueiro, Marinho, também resmunga. Liberado de uma partida para resolver sua situação com o Los Angeles Aztecs, é reintegrado após o fracasso das negociações. Mas volta atirando: “Saí daqui como titular, quero voltar como titular. Não vou aceitar perder a posição no grito”. Para “sorte” de Bría, Rondinelli se lesiona e fica de fora por algumas rodadas. E, experiente e sabedor das coisas flamengas, volta quieto, sem reclamar da momentânea reserva (vai recuperar a posição poucos meses mais tarde).
Resolvido o problema da zaga, estoura outra crise. Após a magra vitória contra o Sampaio Correa (2-0), em que o time joga muito mal, Nunes, que desperdiça uma carreta de gols, é ostensivamente vaiado. Irritado, explode em uma entrevista bombástica a uma revista. Dizendo-se perseguido, avisa que quer sair do Flamengo, ser negociado. “Há uma panela aqui dentro me boicotando”, “os jogadores ‘da casa’ não me suportam”, “eles me jogam contra a torcida”, entre outras declarações fortes. “Isso é paranoia dele. Está nervoso com as vaias”, contemporizam alguns líderes do elenco. A revolta de Nunes é recebida com naturalidade pela Diretoria, que já tem o diagnóstico: “quando ele voltar a fazer gols, isso passa”. De qualquer forma, o ambiente segue longe de apresentar leveza.
O caso de Nunes é resolvido com surpreendente rapidez e de uma forma inesperada. Em uma inusitada goleada de 8-0 contra o Fortaleza, no Maracanã, partida em que os cearenses enfrentam o Flamengo com uma postura inacreditavelmente aberta e ousada. Nunes marca cinco tentos e enfim encontra sua paz, como previra o dirigente.
Há outros casos menores. Adílio falta a um treinamento, não avisa e, localizado, informa estar com um problema de saúde na família. Bría minimiza a situação. Tita, ao retornar da Seleção, decide não aceitar mais jogar como falso ponta, fazendo questão de retornar à sua posição original, a de ponta de lança, mesmo que isso signifique se tornar reserva de Zico. Mas, como “gesto de boa vontade”, admite seguir fazendo a função até o final do Brasileiro.
O Flamengo de Modesto Bría apresenta notável irregularidade, e em nenhum momento sinaliza que irá de fato engrenar. A equipe se caracteriza por momentos de apatia e falta de imaginação. Os pontas, muitas vezes improvisados, afunilam em excesso, travando a movimentação ofensiva. O sistema defensivo, por outro lado, sofre com problemas de cobertura e proteção à zaga, que é lenta, e a equipe tende a sofrer muitos gols. No decorrer da competição, Peu é efetivado, o que lubrifica a armação e a criação de jogadas (o jogador, em ótima fase, dá velocidade e contundência ao ataque), mas agrava os problemas na defesa, pois o meia-atacante não se notabiliza pela disciplina tática.
Após uma vitória contra os reservas do São Paulo por 2-0, em um amistoso no Morumbi, começa o Brasileiro. A Primeira Fase é cumprida sem brilho. Na estréia o Flamengo se arrasta sob um domingo de verão no Maracanã e empata um preguiçoso 0-0 com o Santos. A seguir, vence a duras penas o Nacional em Manaus (1-0), jogo que Bría invade o campo para abraçar os jogadores após o triunfo. Logo depois, o primeiro vexame. O rubro-negro, lento e apático, é atropelado pelo Paysandu em Belém, não resistindo à alucinante correria do adversário. A derrota por 3-0 sai barata, graças à atuação exuberante de Raul. “Foi um acidente, coisas do futebol”, limita-se a comentar um resignado Júlio César, vivendo seus últimos dias no clube. Logo depois, o Flamengo derrota por 2-0 o Sampaio Correa no Maracanã, em mais uma fraca atuação. Os primeiros traços de bom futebol aparecem em Aracaju, quando o Flamengo, movido pelo entrosamento entre Peu e Nunes, faz convincentes 2-0 sobre o Itabaiana. Os estrondosos 8-0 sobre o Fortaleza no Maracanã trazem a ilusão de que o rubro-negro enfim irá deslanchar. Mas um opaco 0-0 contra o Cruzeiro no Mineirão e os sofridos 3-2 sobre o CRB em Maceió (em que novamente Peu, com um gol de placa, e Nunes são os destaques) devolvem o time à realidade. A participação na Primeira Fase é encerrada com um silencioso 2-2 contra o Santa Cruz, no Maracanã, em que o Flamengo cede o empate nos minutos finais com um bizarro gol contra de Adílio (foi cortar um cruzamento rasteiro e acabou colocando com “classe” no contrapé de Raul), O Flamengo termina a Fase em segundo lugar no seu grupo, atrás do Santos.
Antes da fase seguinte, o Flamengo viaja ao Uruguai, onde disputa um torneio caça-níqueis. Alinha um punhado de juniores e reservas contra o Peñarol, que vem com vários titulares. De forma surpreendente, o time passa por cima dos uruguaios, naquela que talvez é a melhor exibição sob o comando de Bría. Abre 3-0 e, conforme esperado, o jogo descamba para a pancadaria, com vários expulsos. A decisão do torneio, no dia seguinte, contra o Grêmio, é adiada devido ao mau tempo. Mas a atuação contra o Peñarol traz, enfim, ânimo e confiança ao grupo.
“Não dá mais, Doutor. Preciso ir embora. Estoy muriendo”
Sete quilos mais magro, abatido e tragado pela insônia e movido à base de tranqüilizantes, Modesto Bría, pela segunda vez, apresenta seu pedido de demissão ao Presidente. Na ocasião anterior, logo após o fiasco de Belém, o dirigente minimizara, por ser início de trabalho: “Tire um dia de folga, vá descansar e volte revigorado”. Mas dessa vez o Presidente parece disposto a aceitar o pedido. Com efeito, o Flamengo simplesmente não parece sair do lugar. E, pior, acaba de protagonizar mais um vexame, ao ser goleado em Curitiba pelo Colorado-PR (0-4). O rubro-negro, que não sofria um placar elástico há mais de um ano, já sofre a segunda goleada em apenas três meses de trabalho. É algo inaceitável, que precisa ser estancado.
E dessa vez Bría, desnorteado, abusou do direito de errar. Improvisou o lento Rondinelli na lateral-direita. Barrou Peu, justamente o melhor jogador do Flamengo no campeonato. E, para completar, promoveu o retorno de Carpegiani, gordo e completamente fora de forma, à equipe. Como o que inicia errado normalmente se agrava, Rondinelli ainda saiu lesionado durante o jogo, o que fez Bría recorrer a nova improvisação, dessa vez com o novato Mozer. Completamente desfigurado, o time foi presa fácil para os paranaenses. Massacrado pelas críticas, Bría resolve dar um ponto final à sua participação como treinador.
Acertam que Bría seguirá no comando até que o clube encontre um substituto. E o caso não vaza à imprensa. Dias depois, o Flamengo anuncia a contratação de Dino Sani, renomado treinador que vem de vitoriosos trabalhos no Uruguai e no México, e acaba de se desvincular de seu clube, o Puebla-MEX. Dino é apresentado e iniciará seus trabalhos na Terceira Fase. Antes disso, Bría precisa classificar o Flamengo em uma chave que, com a goleada em Curitiba, ameaça se complicar.
O Flamengo já havia vencido o Atlético-MG no Maracanã (2-1, em outra rara boa atuação) e empatado, fora de casa, com o Uberaba-MG (1-1, com um controverso gol de Nunes). Após o desastre contra o Colorado, um festejado empate com o Atlético no Mineirão (0-0), já com os jogadores da Seleção de volta. Para depender de si, o rubro-negro precisa vencer as duas partidas que restam no Maracanã, contra Uberaba e Colorado. Parece simples.
Mas os dois jogos se revelam dramáticos. O Flamengo não vê a cor da bola no primeiro tempo contra o Uberaba e desce pro vestiário com um humilhante 0-2 luzindo no placar. Todos os onze jogadores, sem exceção (Zico inclusive), são vaiados. O time volta mordido, voando, clamando por sangue e, em apenas 25 minutos, já está vencendo por 4-2, placar que se mantém até o final. Agora é vencer o Colorado e ratificar a vaga.
Mas o Flamengo é atrapalhado por um infantil desejo de vingar a goleada no Paraná. Nervosos, os jogadores perdem oportunidades fáceis e caem na armadilha do matreiro time paranaense, repleto de jogadores rodados e manhosos. Num contragolpe no final da Primeira Etapa, o Colorado abre o placar. Tranca-se num ferrolho. A classificação está ameaçada. O time precisa ao menos empatar. Mas o goleiro Joel Mendes começa a defender sistematicamente tudo. O relógio vai correndo, célere, até que, a pouco menos de 15 minutos do fim, Zico, em duas jogadas relâmpago e assustadoramente semelhantes, vira o jogo a 2-1, para alívio da torcida.
Após o apito final, o torcedor, talvez querendo demonstrar um reconhecimento ou mesmo revelar-se cruel em sua ironia, grita entusiasticamente o nome de Bría, que ali se despede. Emocionado, o treinador acena em retribuição. Vai voltar às Divisões de Base, seguir seu emprego fixo no clube, onde permanecerá até se aposentar. Sua passagem terá sido errática, plena de intempéries, infestada de obstáculos, muitos dos quais custaram sua integridade física, mas, ao frigir dos ovos, o paraguaio entrega ao seu sucessor um Flamengo classificado e em primeiro lugar. Cumpre sua obrigação.
Ao paraguaio e, por que não, ao torcedor, é o que, no fim, interessa.
* Adriano Melo escreve seus Alfarrábios todas as quartas-feiras aqui no MRN e também no Buteco do Flamengo. Siga-o no Twitter: @Adrianomelo72
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