sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Diário da Arquibancada: Final da Copa do Brasil 2013

Texto do GloboEsporte.com

É difícil saber se é um pedido, uma convocação ou uma ordem. Na frase, não há preocupações com o português. Azar da gramática: entre a concordância e a rima, que vença a rima. O que importa é que quando ela é dita, ela reverbera como poucas no mundo:

- Vamos, Flamengo, vamos ser campeão; vamos, Flamengo, minha maior paixão!

Se foi um pedido, ele foi atendido; se foi uma convocação, ela foi aceita; se foi uma ordem, ela foi cumprida. A torcida do Flamengo viveu nesta quarta-feira, 27 de novembro, seu maior momento no novo Maracanã. Foi campeã, como protagonista, na vitória de 2 a 0 sobre o Atlético-PR – também apoiado o tempo todo por fanáticos inflamados, participativos, esperançosos.


O estádio teve uma noite duplamente rubro-negra. Poucas torcidas são capazes de chegar na casa de um rival em uma decisão e produzir o barulho que a do Atlético produziu. Talvez o que fizeram os atleticanos tenha sido a maior vitória dos paranaenses nesta Copa do Brasil – e que pode influenciar na reta final do Brasileirão. Mas é impossível tirar a festa dos flamenguistas. Eles foram os campeões da noite. Antes, durante e depois do jogo.

Parecia que todas aquelas camisas rubro-negras que circulavam desde a manhã pelo Rio de Janeiro haviam ordenado a seus donos que fossem ao Maracanã: as acostumadas a andar por ali e aquelas saídas do Paraná. Parecia que estavam todas lá, uma a uma. Três, quatro, cinco horas antes do jogo, como numa artimanha para fazer o tempo passar, para ludibriá-lo, as duas torcidas já se aconchegavam nos arredores do estádio. E cantavam. E bebiam. E cantavam mais. E trocavam provocações: ambas rubro-negras, ambas finalistas, ambas esperançosas, ambas agoniadas.

Que noite. Talvez o resgate dessa relação entre o espírito carioca e o Maraca, o velho e agora remodelado Maraca, tenha acontecido efetivamente nesta quarta-feira. A Geral não existe mais, ficou guardada no imaginário do torcedor, mas as personagens excêntricas estavam lá – o sujeito vestido de Homem-Aranha, o homem que faz embaixadinhas com uma bolinha de papel, o rapaz que vai com um chapéu de urubu, o brincalhão que se veste de “fantasma da B” para provocar os ameaçados Vasco e Fluminense. E outra: às favas com as novas regras de comportamento em estádios. A galera bebeu cerveja no pátio, não sentou nas cadeiras como mandam os seguranças, agiu como se estivesse nesse não tão distante mundo de alguns anos atrás.


Houve filas, longas filas, que serpentearam pelo pátio do estádio. E aqueles portões, com a insensibilidade que só o ferro tem, não abriam, enquanto um Maracanã inteiro esperava para ser ocupado. Às 19h, com dez minutos de atraso, a torcida enfim teve seu acesso liberado. E começou a recolorir as cadeiras brancas, azuis, amarelas do estádio.

Foi lá por umas 20h que o canto da torcida do Flamengo ficou mais forte. Pedido, convocação ou ordem, azar da concordância verbal, valorização da rima:

- Vamos, Flamengo, vamos ser campeão; vamos Flamengo, minha maior paixão!

Conforme enchia o estádio, mais, e mais alto, a torcida cantava. A torcida, não: as torcidas. A do Atlético-PR fez muito barulho também. Mas a do Flamengo, claro, era enorme maioria. E se ouriçava especialmente na hora de gritar o hino (é um hino que não se canta: se berra) e de entoar a versão de arquibancada para a música dos finados Mamonas Assassinas.

A entrada em campo foi emblemática. No setor norte, um mosaico avisou: “Conte comigo, Mengão”. E o estádio quase foi abaixo, até emudecer com o minuto de silêncio em homenagem a Nilton Santos, gênio morto horas antes.

Festa na favela. A torcida do Flamengo assumiu a alcunha, outrora pejorativa, de favelada. Assim como não se importa com o erro de português em sua cantoria, pouco liga para o “xingamento”. E canta: 

“Faveeeeeeelaaaa. Faveeeelaaaaaa. Faaaaaveeeeeela. Festa na favela!”.


Festa, sim, especialmente no começo do jogo. Com a confiança escancarada em repetidas faixas que davam o Flamengo como campeão, a torcida foi vibrante. Foi comovente o esforço dos atleticanos para fazer frente aos rivais. Gritaram como se tivessem cinco gargantas. E, repetidas vezes, se fizeram ouvir pela maioria.

Mas o Flamengo estava em casa. Cada vez que cantava o hino, a torcida local lembrava que havia uma final em campo. Mesmo que o jogo não ajudasse, mesmo que as chances de gol não fossem das mais exponenciais,  o clima sempre foi de decisão – talvez mais no público do que no gramado.

Com o tempo, porém, a pressão arrefeceu um pouco. Os últimos minutos do primeiro tempo foram menos barulhentos do que seus antecessores. E sempre que o estádio ensaiou um silêncio, os atleticanos fizeram questão de vibrar.

O final do primeiro tempo e o início do segundo foram quase uma sequência ininterrupta. A tensão foi a mesma – aquela preocupação que não sabe se precede a tragédia ou a euforia. A diferença, na etapa complementar, é que a torcida do Flamengo começou a se mostrar impaciente com os repetidos erros do time na saída para o ataque. O Atlético, em contrapartida, deu sinais de estar mais confortável. E animou seus apoiadores.

- Vamos, ó meu Furacão! Quero gritar campeão!

Cantoria que logo teve resposta:

- Ôooooo, ôooooo, vai pra cima deles, Mengo!

Seguia o 0 a 0. Qualquer acontecimento poderia revolucionar a partida. Quando Paulo Baier ficou no chão, alegando ter recebido uma cotovelada, a torcida proibiu o time de jogar a bola para fora. Foi obedecida. Quando Carlos Eduardo, tão criticado, foi substituído, ganhou aplausos. Era noite de apoiar.

A posse de bola com o Atlético esteve sempre acompanhada de uma vaia que mais parecia uma agulhada, de tão penetrante. E os ataques iam formando um grito coletivo, que subia gradualmente, até explodir num “uuuuuuuuh”. Hernane quase fez de voleio: “Uuuuuuuuuuuuh”. Hernane quase fez frente a frente com o goleiro: “Uuuuuuuuuuuuuuuuh”.

E aí Elias fez.

É sempre curioso olhar duas torcidas no momento em que sai um gol. Parecem os dois blocos mais opostos do mundo. Um em êxtase, um abraçar coletivo, um colônia em movimento; o outro quase estático, inerte. É típico do futebol essa tentação pelas contraposições.

O Maracanã mergulhou em delírio. Delírio de quem teria um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo.

- Flamengo até morrer eu sou – esbravejava a massa.

Ali, o Flamengo já era quase campeão. E foi ainda mais. Fez outro gol. Com Hernane. Mais delírio: o 17º do Brocador em 17 jogos no novo Maraca.

Os jogadores do Flamengo ainda se abraçavam em campo quando a torcida cumpriu o papel necessário a quem sabe se divertir com o futebol: comemorar provocando o maior rival:

- Chora, vascaíno, o sonho acabou. Libertadores, sou eu quem vou!

Em meio a gritos de “tricampeão” e louvações a Elias, Hernane e Felipe, cantou para si mesma: “Que torcida é essa?”

O nome de todos os jogadores foi entoado – e Mano Menezes foi xingado mais de uma vez. Os atletas deram as mãos e foram saudar a massa. Os do Atlético fizeram o mesmo. Foram aplaudidos.

E aí foi esperar a taça. Poucos torcedores arredaram pé do estádio enquanto ela não foi levantada. Até que aconteceu, ela foi ao ar - pouco antes da meia-noite, em um gesto logo seguido pelo hino do clube, aquele que diz que se o sujeito é Flamengo uma vez, vai ser sempre, até morrer.


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