Deve ser muito dizer que foi Jaime de Carvalho quem construiu o estado de espírito do Flamengo. Mas foi, sem qualquer sombra de dúvida, a sua geração e o espírito rubro-negro dela emanado, quem construiu a alma do que é ser Flamengo. Jaime, fundador da Charanga Rubro-Negra, foi uma liderança que colocou os tijolos que fizeram a sustentação do Espírito Flamengo. Uma alma em vermelho e preto a influenciar todas as gerações seguintes que desfrutaram de sua mesma paixão.
Jaime Rodrigues de Carvalho nasceu em 9 de dezembro de 1911 em Salvador, na Bahia. Chegou ao Rio de Janeiro, então Capital Federal, em 1927, quando tinha 15 para 16 anos. Aportou na cidade vindo em um "ita", o velho navio a vapor da Companhia Nacional de Navegação Costeira que fazia transporte de cargas e passageiros do norte ao sul do Brasil.
Com enxertos de alguns outros textos, o material abaixo, de autoria dos historiadores Bernardo Borges Buarque de Hollanda e Melba Fernanda da Silva, foi publicado em setembro de 2017 na Revista de História, da Biblioteca Nacional, mesclados a trechos de artigo de Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:
Reza a lenda que logo que Jaime chegou ao Rio foi prontamente levado a um jogo do Fluminense no Estádio das Laranjeiras. Gostou do que viu e quis voltar ao clube, mas dias depois teria sido barrado ao tentar conhecer a requintada sede das Laranjeiras. O Fluminense era o mais elitista dentre os clubes cariocas, e não dava espaço para um garoto recém-chegado da Região Nordeste do Brasil frequentar as áreas reservadas a seus sócios, todos aristocratas. Conta-se que ele teria então atravessado a Rua Guanabara (hoje chamada Rua Pinheiro Machado) onde do outro lado do cruzamento, quase em frente ao estádio do Fluminense, havia um outro estádio, o da Rua Paissandu, onde então jogava e treinava o Flamengo.
Jaime teria encontrado o portão aberto. O acesso foi fácil. E ali viu os jogadores do Flamengo treinar. Sentiu-se em casa e foi ficando. Voltou outras vezes. Acompanhou toda a reta final da campanha épica por meio da qual um Flamengo que começara o torneio com elenco esfacelado ganharia o título, contra todas as possibilidades dadas pelos analistas de futebol da cidade, título que o folclore conta que teria levado a surgir a alcunha da mística rubro-negra de uma "camisa que joga sozinha".
Teria sido assim que o jovem baiano Jaime teria virado o mais vibrante flamenguista. O mais empolgado nas vitórias e o mais abatido nas derrotas. Uma das almas do espírito que nutriu a música popular com o verso: "quando o Mengo perde, eu não quero almoçar, eu não quero jantar!".
Quem ouviu esta história da boca do próprio Jaime e a confirmou foi o jornalista Deni Menezes: "Jaime era de poucas letras, mas muito fino e educado. Mesmo sabendo que sou tricolor, ele arranjou um jeito, sem me ferir, de contar por que virou rubro-negro: “logo que cheguei ao Rio fui ver um jogo do Fluminense e gostei do time. Dias depois, quis conhecer a sede, mas não me deixaram entrar. Ali perto ficava o Flamengo, na Rua Paissandu. Fui lá, o estádio estava aberto, assisti o treino e fui muito bem tratado. Ia ser tricolor; virei rubro-negro”.
A melhor descrição daquele espírito vermelho e preto nascente influenciado por ele e sua Charanga Rubro-Negra ficou registrada na edição de outubro de 1945 da Revista Esporte Ilustrado, num comentário extraído da coluna de Alberto Mendes sobre a vitória de 6 a 1 do Flamengo sobre o São Cristóvão: "Prosseguem os rubro-negros na sua campanha do tetra e com fundadas razões. Apenas julgamos que a sua torcida organizada deve adaptar melhor as suas iniciativas ao espetáculo futebolístico. Domingo, por exemplo, tivemos uma música, misto de fanfarra e batucada, de todo inoportuna, pois não se calou um único momento durante os noventa minutos, enfadando todos. Por outro lado, achamos excelente a demonstração dessa torcida, que após o prélio desfilou pelo gramado, comemorando carnavalescamente a vitória retumbante. Para o futuro, sempre música após o jogo e nunca durante o mesmo". A frente daquela chamada inoportuna música, como mistura de batucada e fanfarra, estava Jaime de Carvalho e sua turma. O Flamengo já tinha desfraldado suas égides de gigantismo e amor quase incondicional da multidão, embora ninguém soubesse disto ainda lá pelos idos de 1945.
Assim narrou o primeiro capítulo desta história Emmanuel do Valle, em seu blog Flamengo Alternativo: "Há um clima diferente no estádio das Laranjeiras na tarde de 11 de outubro de 1942, na qual o Fluminense recebe o Flamengo, que tem desafio decisivo para a conquista do título de campeão carioca do ano. Além da habitual multidão que acompanha a partida em seus trajes de domingo – e em se tratando do local, o rigor na vestimenta é um pouco mais nítido – e que aplaude e grita seus 'uuuh' nos lances perigosos, há um grupo curioso. Estão uniformizados, vestindo camisas nas cores vermelha e preta, similares às do Flamengo, mas não são jogadores do clube. À frente, carregam um estandarte de proporções significativas no qual se lê 'Avante Flamengo!'. E, sobretudo, fazem um barulho infernal com seus instrumentos de sopro e percussão. A partida terminou empatada em 1 a 1, resultado que em campo dá o título ao Flamengo. Os jogadores estouram champanhe e comemoram no gramado. Mas a curiosidade geral fica mesmo por conta daquela bandinha nunca antes vista num estádio de futebol do Rio de Janeiro – aliás, nenhuma outra antes havia sido. Nos cafés, nos bares, nos corsos, os desfiles de torcedores em automóveis pelas ruas comemorando títulos e grandes vitórias, até havia música eventualmente. Mas dentro do estádio, era a primeira vez. Num misto de intrigado e indignado com a desafinação do grupo, o rubro-negro Ary Barroso, o popularíssimo locutor da Rádio Nacional, a maior do Brasil, proclamaria depois em seu programa: 'Mas isso não é uma banda nem aqui nem no caixa-prego. Isso aí é uma charanga!'". Pronto, estava então também batizada. Dali em diante passou a ser chamada de Charanga Rubro-Negra.
Após chegar à cidade em 1927, o baiano Jaime de Carvalho se tornou funcionário público durante os Anos 1930. Conheceu então uma moça chamada Laura, portuguesa de nascimento, e com ela se casou e teve filhos. A paixão pelo Flamengo que Jaime carregava em seu coração logo contagiou também à sua esposa. Os dois passaram a frequentar juntos aos jogos de futebol nas tardes de domingo. Até que em 1942, empolgados com o arranque rubro-negro rumo ao título do Campeonato Carioca daquele ano, decidiram que era hora de organizar um impulso mais vigoroso para empurrar o time, um sopro de vitalidade e um toque marcial para comandar o tropel vermelho e preto rumo às vitórias.
"Flamengo, Flamengo / Tua glória é lutar / Flamengo, Flamengo / Campeão de terra e mar". Com este refrão adaptado do hino oficial do clube, a Charanga saudou por décadas ininterruptas a entrada do time rubro-negro em campo, tanto nos famosos alçapões do subúrbio, com suas precárias arquibancadas de madeira, ou no "Maior Estádio do Mundo", o Maracanã, com sua engenhosa armação de concreto.
A Charanga Rubro-Negra em 1943
Seu Jaime e Dona Laura reuniram um grupo de amigos de cerca de 20 pessoas, alguns deles instrumentistas, e rumaram para o Estádio das Laranjeiras. Em depoimento à Revista Grandes Clubes Brasileiros, foi Dona Laura quem contou: "o Flamengo precisava mais do que nunca de incentivo. A partida era em casa de inimigo. Então tivemos a ideia de fazer uma faixa que dizia: Avante, Flamengo! Foi o primeiro sucesso. Hoje você encontra em qualquer loja bandeiras prontas. Mas naquela época tínhamos que comprar peças inteiras de flanela, em preto e vermelho, e fazer a bandeira nós mesmos em casa, costurando. O metro custava 500 réis".
Junto a eles, foram levados 15 músicos com instrumentos de percussão, clarins, pistom e um trombone. A presença daquele grupo ruidoso instalado na arquibancada causou espanto, pois até aquele momento a música só fazia parte das comemorações fora do estádio, em cortejos de carros, em bondes e em passeatas que percorriam diversos pontos da cidade.
A Charanga Rubro-Negra dentro do gramado do Maracanã em 1953
Torcedor uniformizado, bandeiras do clube, banda de música no estádio, nada disso existia no futebol carioca antes da "Charanga de Jaime de Carvalho". A fanfarra rubro-negra, no entanto, logo enfrentou rejeição. A gente da crônica esportiva chiava, alegando que a música atrapalhava a concentração dos jogadores em campo. Num jogo contra o São Cristóvão, em 1943, a Charanga se posicionou atrás do gol defendido pelo arqueiro adversário. O Flamengo goleou por 4 a 0 e o infeliz goleiro saiu de sua área várias vezes para reclamar com o árbitro sobre os instrumentistas que tocavam sem parar atrás de sua baliza. O clube alvo chegou a levar o protesto à Federação, pedindo a anulação da partida, mas o presidente da entidade, Vargas Netto, não viu motivo para tamanha revolta: era manifestação espontânea da multidão.
Foi o bastante para dirigentes de outros clubes tentarem banir a orquestra em definitivo. Não conseguiram, pois o então presidente da Federação Metropolitana de Futebol achava que a música contribuía para atenuar as brigas entre os torcedores e para abafar os palavrões, cada vez mais ouvidos durante as partidas. Vargas Neto era cronista do Jornal dos Sports e compartilhava os mesmos princípios de seu diretor, Mário Filho, jornalista que se dedicava, desde a década de 1930, a promover as escolas de samba e o futebol profissional na cidade como verdadeiros espetáculos de massa. Para eventos de tal monta, era necessária a constituição de um público participante que assistisse às competições de maneira festiva e animada, sem arroubos ou excessos de conduta. A presença de um chefe de torcida que auxiliasse o trabalho do chefe de polícia era, portanto, bem-vinda.
Com o aparecimento da Charanga, o público do futebol transformou sua condição inicial de assistência, com as torcidas assumindo um caráter ativo nas disputas no encorajamento de seus times ou intimidando seus adversários. E também foi papel dela a construção dos elementos populares dentro do estádio. Até os Anos 1940, a roupa dos espectadores de futebol não se distinguia da vestimenta das elegantes plateias de teatro, cinema e ópera, era o habitual terno com gravata. A camisa do uniforme popularizou a paisagem das arquibancadas. Foi por causa da Charanga que as camisas dos times, até então de uso exclusivo dos atletas, passaram a vestir os torcedores. Se antes os espectadores dos jogos abanavam fitas e lenços coloridos durante a partida, depois que seus integrantes passaram a confeccionar artesanalmente as camisas do Flamengo, grupos compactos de torcedores com os uniformes de seus times começam a se destacar nos estádios. E também foi depois da Charanga que marchinhas de carnaval passaram a ser tocadas durante os jogos, intercalando os solenes hinos dos clubes, que davam uma conotação épica e heroica às partidas.
Precursor de um movimento de aproximação entre a música e o futebol, elementos-chave na construção da imagem nacional, Jaime de Carvalho ajudou a formar uma plateia festiva e competitiva nos estádios do Rio de Janeiro durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Encarnou, assim, a abnegação por um clube, emblema de um cotidiano compartilhado por milhares de torcedores, criando uma atmosfera comunitária.
Nos Anos 1940 e 1950, antes de partir para os estádios espalhados pela cidade, a concentração da Charanga Rubro-Negra era na Galeria Cruzeiro, no Largo da Carioca, Centro do Rio, na área onde hoje se localiza o Edifício Avenida Central, que à época ainda não havia sido construído. Ali perto havia o Terminal de Bondes, popularmente conhecido como "Tabuleiro da Baiana". Era deste terminal que o grupo de torcedores sempre partia para seu estádio de destino pela cidade. A partir de 1950, além o Campeonato Carioca - à época restrito ao Distrito Federal, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro - também passou a ser disputado o Torneio Rio-São Paulo. E o Flamengo não perdeu a oportunidade de levantar recursos e se organizar para financiar a ida de Jaime e sua Charanga para acompanhar aos jogos na capital paulista, fazendo o trajeto com o trem que partia da Central do Brasil.
A Charanga Rubro-Negra dentro do gramado do Maracanã em 1956
A Charanga Rubro-Negra em 1966
A consagração máxima da "Charanga do Jaime" se deu na Copa do Mundo de 1950. O momento de apogeu aconteceu na partida contra a Espanha, no recém inaugurado Maracanã. Foi a Charanga quem puxou "Touradas de Madrid", marchinha do compositor Braguinha entoada a plenos pulmões pelas quase 200 mil pessoas presentes ao estádio durante a goleada brasileira por 6 a 1. Dali em diante, Jaime de Carvalho também viajaria a convite para organizar as celebrações brasileiras nas Copas do Mundo de 1954, 1962 e 1974.
Tamanho foi o êxito de Jaime de Carvalho na organização dos torcedores brasileiros, que ele foi convocado para acompanhar a Seleção Brasileira na Copa do Mundo na Suíça em 1954. O Jornal dos Sports lançou uma campanha para custear a viagem, concedendo a Jaime não só a passagem como o status de "embaixador" da torcida brasileira no exterior. Ao desembarcar na Suíça, Jaime levava na bagagem vários apetrechos, entre eles dez couros para confeccionar surdos, trezentas gaitinhas, duas sirenes e um par de pratos de banda de música. Na estreia da Seleção, entrou em campo junto com os radialistas brasileiros e estendeu sobre o alambrado uma faixa verde-amarela que tinha, bordado em branco, o lema "Avante, Brasil!", uma novidade em âmbito internacional. Começava então o ciclo de viagens internacionais de Jaime. No mesmo ano de 1954, ele iria junto à Seleção para o Campeonato Sul-Americano na Argentina. A esposa, Laura de Carvalho, ficou responsável pela confecção da maior bandeira do Brasil feita até então, com 8 por 10 metros, que seria desfraldada na entrada do time em campo. Outra inovação do líder da Charanga: a utilização da imensa bandeira para concentrar os torcedores de um país dentro de um estádio, fato inédito na época.
As ações de Jaime de Carvalho mudaram o futebol no Brasil para sempre. Charanga e Flamengo se encontraram numa forma emocional distinta de envolvimento da gente com o futebol. E esta relação ficou eternizada no sucesso das rádios "Samba Rubro-Negro", de Wilson Batista, quando acabou sendo cantada: "Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá / Vai haver mais um baile, no Maracanã / Pode chover, pode o sol me queimar / Que eu vou pra ver, a Charanga do Jaime tocar / Flamengo, Flamengo, como tua glória não há / Quando o Mengo perde, eu não quero almoçar, eu não quero jantar".
Durante o fim dos Anos 1960, o estresse dos jogos fez com que Jaime começasse a pagar pela dedicação com a própria saúde, sofrendo com um quadro de pressão alta e diabetes. Ele se retirou por um tempo do Maracanã, passando o comando da Charanga para Dona Laura e para seu então fiel escudeiro Ernesto Escovino. Nos Anos 1970, sofrendo por um câncer, acabou internado no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Faleceu em 4 de maio de 1976, sendo sepultado vestindo o Manto Sagrado, com honras em vermelho e preto.
Para a eternidade, Jaime deixou lamas como: "O Flamengo ensina a amar o Brasil sobre todas as coisas" e “Onde encontrares um flamengo, encontrarás um amigo".
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