quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Mengo 1970: uma montanha-russa sem fim – Parte 2

Muito bacana o trabalho postado pelo blog Flamengo Alternativo 
(http://flamengoalternativo.wordpress.com). Reproduzo a integra do texto abaixo:

No segundo semestre de 1970, o Brasil era de novo o atual campeão do mundo. E no time do tri, o Flamengo teve seu representante: o vigoroso zagueiro-central Brito, contratado ao Vasco em outubro do ano anterior, e titular absoluto da Seleção de Zagallo… mas não do Mengão-70 de Yustrich. Utilizando-se da velha máxima do futebol segundo a qual “não se mexe em time que está ganhando”, o treinador decidiu manter na posição o jovem Washington, barrando Brito após o retorno da Seleção, numa atitude que deu o que falar.

No começo, o Doutor Brito – como era chamado pela torcida – aceitou sem maiores problemas. Mas o Homão demonstrava de que, por pura e injustificável “birra”, não estava disposto a dar chances ao zagueiro: em várias ocasiões deixava-o de fora até mesmo do time reserva nos coletivos. Estava declarada a guerra. O beque afirmava que o treinador, centralizador, não aceitava a existência de estrelas maiores que ele próprio, Yustrich, no elenco. E o técnico rebatia chamando Brito de “cachaceiro”.

A acusação de Brito fazia sentido quando se nota que outros dos principais jogadores do time no primeiro semestre também perderam espaço durante o Carioca: o selecionável Arílson e o homem-gol Dionísio, por exemplo, passariam quase todo o resto do ano fora do time titular.

Porém, logo ali ao lado de Brito (ou de Washington), um acerto de Yustrich começava a se fazer notar: a passagem do clássico médio-volante paraguaio Reyes para a quarta-zaga. Reyes chegara ao clube em 1967, com o cartaz de jogador da seleção paraguaia, e que já havia defendido o Atlético de Madrid. No entanto, não teve sequência na Gávea até então e chegou a ser emprestado ao pequeno Campo Grande em 1969. Corria o risco de se perder entre os tantos jogadores medianos que aportaram no Flamengo naquele tempo. Esteve para ser dispensado. Mas os vários desfalques no elenco obrigaram o treinador a improvisá-lo em outra posição. Foi um achado.

Enquanto a queda de braço entre Brito e Yustrich se estendia, e Reyes subia de produção, o time chegou a liderar o Campeonato Carioca na metade do primeiro turno, mas desmoronou com a primeira derrota – 2 a 0 para o Fluminense na oitava rodada – perdeu o rumo, saiu cedo da briga pelo título e acabou num medíocre quinto lugar. Mas o torneio entrou para a história do clube por pelo menos um inusitado motivo.

Em 19 de setembro, na última rodada, já sem qualquer chance, o time enfrentava o Madureira no campo da Portuguesa, na Ilha do Governador, e vencia por 1 a 0, gol de Zanata cobrando pênalti no primeiro tempo. Aos 30 minutos da etapa final, os meros 1.075 torcedores no estádio presenciaram um gol raro: um gol de goleiro.

Ubirajara Alcântara – até então o terceiro da posição no elenco do Flamengo, e que ganhara uma chance em um jogo sem importância – repôs a bola em jogo com um chutão. E o chute atravessou quase toda a extensão do campo, quicou à frente do desesperado arqueiro Paulo Roberto, do Madureira, encobriu-o, e a bola foi morrer no fundo da rede. Tratava-se do primeiro gol de goleiro registrado (e homologado pela então CBD) em partida oficial até então. E Ubirajara virou titular para não sair mais do time até o fim do ano.

Na semana seguinte ao encerramento dos estaduais, a atração era o Torneio Roberto Gomes Pedrosa, principal competição interestadual entre clubes e embrião do Campeonato Brasileiro iniciado no ano seguinte. Os 17 clubes eram divididos em dois grupos (um com oito, outro com nove), mas todos eles se enfrentavam em turno único. Os dois melhores de cada grupo se classificariam para o quadrangular final, também em turno único, que apontaria o campeão.

A tabela começava ingrata para o Flamengo, que teria pela frente logo nas duas primeiras rodadas nada menos que os recém-coroados campeões paulista (São Paulo) e carioca (Vasco). Mas o Mengão-70 – mesmo sem Brito, enfim emprestado ao Cruzeiro até o fim do ano – cumpriria bela campanha, analisada aqui jogo a jogo.

* São Paulo 0 x 2 Flamengo (Morumbi, 27 de setembro) – O time teve Washington e Liminha expulsos, mas mesmo inferiorizado numericamente (o tricolor Paraná também foi expulso) soube vencer com categoria, com gols de Nei e Fio, na tarde de estreia do uruguaio Pedro Rocha pelo São Paulo. Já pelo Fla, estreou um ponta-esquerda dos juvenis, um garoto cabeludo e polêmico chamado Mario Sérgio.

* Flamengo 3 x 1 Vasco (Maracanã, 4 de outubro) – O Fla se vinga dos cruzmaltinos em jogo tumultuado. Os vascaínos Silva e Fidélis são expulsos pouco antes do intervalo por agressão ao árbitro, logo após o primeiro gol rubro-negro, feito contra por Alcir. O time de Tim consegue buscar o empate na metade do segundo tempo, mas a resposta do Fla é imediata: Caio e Fio marcam para definir o placar.

* Ponte Preta 0 x 0 Flamengo (Parque Antártica, 10 de outubro) – Jogo truncado e violento contra a então sensação paulista. Doval e Onça são expulsos, além do ponte-pretano Dicá. Pelas condições, um bom resultado.

* Flamengo 2 x 1 America (Maracanã, 15 de outubro) – Marcando na saída de bola, bem ao estilo Yustrich, o Fla dominou o jogo. Sofreu o primeiro gol no fim do primeiro tempo, mas teve garra para virar na etapa final: Nei recebeu passe de Fio e empatou, e Mário Sérgio fez seu primeiro e único gol com a camisa rubro-negra.

* Flamengo 0 x 0 Palmeiras (Maracanã, 18 de outubro) – Zanata travou bom duelo com Ademir da Guia no meio-campo. Mas, sem Fio, e com Rodrigues Neto improvisado de ponta-de-lança, o Fla não teve força ofensiva para vencer o também invicto Palmeiras. Ainda assim, foi um bom resultado.

* Grêmio 0 x 0 Flamengo (Olímpico, 22 de outubro) – Novamente Zanata, perfeito tanto na armação de jogadas quanto no desarme, impressionou. E o Flamengo conseguiu com garra um empate fora de casa contra um adversário para quem havia perdido no Maracanã em todos os três confrontos anteriores pelo Robertão.

* Flamengo 0 x 0 Botafogo (Maracanã, 25 de outubro) – O terceiro empate sem gols seguido mostrava uma certa fragilidade ofensiva. O time passou praticamente todo o jogo tentando alçar bolas sobre a área botafoguense, sempre rebatidas por Moisés e Leônidas. Nos bastidores, Doval reclamava de Yustrich, que censurava seu cabelo, suas roupas, e o fazia jogar recuado demais, quase como um lateral.

* Flamengo 5 x 1 Santa Cruz (Maracanã, 31 de outubro) – Depois de quatro 0 x 0 nos últimos cinco jogos, era a hora de desencantar. E nem a retranca do Santa Cruz conseguiu segurar o ataque rubro-negro, que jogou fácil, rápido, quase sempre caindo pela direita, inclusive com Doval, e até o zagueiro Onça. Liminha fez dois. Nei, outros dois. E o gringo, mais um.

* Atlético-PR 0 x 0 Flamengo (Belfort Duarte, atual Couto Pereira, 8 de novembro) – O time volta a empatar sem gols, num jogo fraco tecnicamente. Mas pensando pelo lado positivo, quando é que pode ser ruim para o Fla um empate com o Atlético em Curitiba? O lance curioso da partida veio quando Ubirajara deu outro chutão de sua área e quase marcou seu segundo gol, como contra o Madureira no Carioca. Só que o goleiro paranaense Vanderlei estava atento e espalmou. Nono jogo invicto para o time de Yustrich.

* Cruzeiro 3 x 1 Flamengo (Mineirão, 8 de novembro) – E Brito, escorraçado da Gávea pelo Homão meses antes, teve sua vingança. O Flamengo dominou amplamente o primeiro tempo e boa parte do segundo, mas parou no zagueiro. Do outro lado, o time mineiro encaixou três jogadas e marcou com Dirceu Lopes, Natal e Tostão, depois que Nei abrira o placar. O Flamengo, que havia sofrido apenas três gols nos nove jogos anteriores do Robertão, levou a mesma quantidade em uma só partida e perdeu a invencilibidade no torneio.

* Flamengo 2 x 0 Santos (Maracanã, 14 de novembro) – A recuperação veio em grande estilo: o Fla engoliu o Santos com Pelé e tudo, e venceu com dois gols de Fio, um em cada tempo. Com Doval fazendo a festa na defesa santista, Zanata em outra exibição de gala, e Reyes brilhando cada vez mais na quarta-zaga, o rubro-negro chegou a sua quinta vitória no Robertão.

* Bahia 1 x 0 Flamengo (Batistão, Aracajú, 18 de novembro) – Com a Fonte Nova em obras, o Bahia foi obrigado a jogar na capital sergipana durante todo aquele Robertão – o que não o impediu de obter grandes resultados (venceu o São Paulo, derrubou o invicto Fluminense, venceria o Corinthians, além de tirar pontos de Atlético-MG e Internacional). Mesmo com a torcida do Batistão a seu favor, o Fla foi bem marcado, não rendeu e perdeu a segunda na competição. Detalhe: o técnico do tricolor baiano era Fleitas Solich, ex-treinador rubro-negro e que voltaria à Gávea no ano seguinte.

* Flamengo 1 x 1 Fluminense (Maracanã, 22 de novembro) – Jogo disputado em clima de decisão por duas equipes que brigavam por vaga no Grupo B. O Fla teve um gol anulado (de Liminha, por impedimento de Doval) ainda com o 0 a 0 no placar. Também na primeira etapa, Zanata, de pênalti, fez 1 a 0 para o time de Yustrich, e Cafuringa empatou. E ficou nisso.

* Flamengo 1 x 0 Internacional (Maracanã, 28 de novembro) – Outro jogo de vida ou morte para o Fla. Animado pela derrota do Colorado para o America no Maracanã no meio da semana, o Fla foi pra cima e saiu com a vitória graças a um gol de falta de Fio, logo aos 10 minutos. Enquanto isso, nos bastidores, um nome era fortemente cogitado para suceder Yustrich, cujo contrato venceria no fim do ano: Telê Santana, o jovem técnico do Atlético-MG, próximo adversário. Corriam por fora Oto Glória (do America) e Zezé Moreira (do São Paulo), além do já citado Fleitas Solich.

* Flamengo 1 x 0 Atlético-MG (Maracanã, 2 de dezembro) – Sob chuva, uma atuação espetacular do Mengão-70. O Galo vinha embalado, de vitória sobre o Fluminense por 3 a 1 no Mineirão, e resistiu enquanto pôde, com o goleiro Renato (ex-rubro-negro, e que voltaria ao clube em 1972) pegando tudo. Mas aos 35 minutos do segundo tempo, Fio marcou o gol da vitória para enlouquecer o Maracanã. Com o resultado, o Flamengo chegava à liderança do embolado Grupo B a uma rodada do fim da primeira fase.

* Corinthians 1 x 0 Flamengo (Pacaembu, 5 de dezembro) – O Grupo B chegou à ultima rodada totalmente em aberto: quatro clubes brigavam por duas vagas. No sábado, o líder Flamengo (20 pontos) viajava para enfrentar o já eliminado, mas ascendente Corinthians no Pacaembu; e o Inter (em quarto, com 18 pontos) receberia o mesmo Atlético batido pelo Fla no jogo anterior, mas já garantido no quadrangular final. No domingo, Fluminense e Cruzeiro, empatados com 19 pontos, jogariam fora de casa, respectivamente, contra Atlético-PR e São Paulo, dois times confinados à parte de baixo da tabela.

No Pacaembu, o Flamengo começou melhor e teve o domínio do jogo até os 38 minutos do primeiro tempo, quando o árbitro Sebastião Rufino – pernambucano que integrava o quadro da Federação Paulista, e o mesmo que expulsara Washington e Liminha contra o São Paulo na estreia – inventou uma falta para o Corinthians em seu campo de ataque. O ex-banguense Aladim bateu e fez o único gol do jogo. O Flamengo então se lançou afobado ao ataque. Para piorar, Yustrich mexeu mal no time, tirando Doval e Nei para entrar Milton e Ademir. O time se desarrumou de vez e não conseguiu empatar.

Para piorar ainda mais, os resultados dos adversários foram totalmente desfavoráveis. O Inter bateu o Atlético (3 a 1), chegou aos 20 pontos, superou o Fla nos gols marcados e terminou em terceiro. O Fluminense também chegou à mesma pontuação ao empatar com o Atlético-PR (1 a 1), e ficou com a segunda vaga no saldo de gols. Por fim, o Cruzeiro de Brito venceu fora o São Paulo (2 a 0) e terminou como líder, com 21 pontos. Enquanto isso, na outra chave, o Atlético-MG se classificava com os mesmos 20 pontos do Flamengo, e um gol a menos de saldo.

Olhando em retrospecto, foi uma boa campanha: sete vitórias, seis empates, apenas três derrotas, 18 gols marcados, nove sofridos. Quinto colocado em pontos, ao lado do Internacional, entre 17 participantes (para efeito de comparação, nas três edições anteriores do Robertão, a melhor posição obtida havia sido um 11º lugar em 1967, em um torneio com 15 clubes). O time-base, praticamente inalterado ao longo de toda a competição tinha Ubirajara Alcântara; Murilo, Washington, Reyes e Paulo Henrique; Zanata e Liminha; Doval, Nei, Fio e Caldeira.

Esbanjando classe e categoria durante todo o campeonato, Zanata e Reyes receberam da revista Placar o troféu Bola de Prata como os melhores do campeonato em suas posições, médio-volante e quarto-zagueiro. O paraguaio, aliás, teve média final de 8,13, a maior entre todos os jogadores do campeonato, à frente de Paulo César Caju, do Botafogo (8,12) e Tostão, do Cruzeiro (8,06). Se já tivesse sido criada (só viria em 1973), a primeira Bola de Ouro teria sido de Reyes.

E Yustrich? Ao contrário do que tudo indicava, não saiu ao fim do ano. Renovou seu contrato, se indispôs com mais jogadores, afastou Doval e exigiu que o atacante fosse emprestado ao Huracán argentino, mas teve o respaldo da diretoria, até que sua própria situação se tornasse insustentável no clube, diante de uma campanha abaixo do medíocre, já em meados de 1971. Em seu lugar assumia em junho Fleitas Solich.

Um começo arrasador, dois títulos importantes pouco lembrados, crises entre treinador e elenco, um gol de goleiro, uma campanha pífia no Carioca e outra muito boa no Robertão, porém frustrada na última das horas. Como se vê, emoções não faltaram no Mengão-70. E extremadas, bem ao estilo de quem o comandou, o Homão Yustrich.

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