terça-feira, 26 de novembro de 2019

FLAMENGO IMPLODE CONVICÇÕES BRASILEIRAS


Excepcional artigo de Rodrigo Capelo no site GloboEsporte.com, publicado em 25/11/2019: "Opinião: ao implodir convicções sobre bola e gestão, o Flamengo pode mudar o futebol brasileiro".

Palavras do autor: "Convicções de técnicos, dirigentes e jornalistas foram destroçadas pelo clube que ousou se organizar, pagar dívidas e seguir um planejamento. Precisamos aprender com essa história.

Tem algo diferente na coroação do Flamengo neste 2019. Não apenas em relação ao próprio clube. É verdade que bons exemplos foram recompensados com títulos no passado recente – Grêmio, Palmeiras e Athletico-PR, cada um com seus méritos e conquistas. Mas, arrisco, nenhum deles implodiu tantas convicções do futebol brasileiro ao mesmo tempo, e de maneira tão avassaladora. Pelo futebol apresentado dentro de campo e pela recuperação administrativa e financeira que levou sete anos para ser concluída, este Flamengo tem tudo para causar transformações sistêmicas ainda mais perceptíveis do que o 7 a 1.

Quantas vezes ouvimos de técnicos e de jornalistas, na televisão e nas redes sociais, que o Brasil não está taticamente defasado em relação a europeus? Os anos 1990 acabaram há quase duas décadas, mas ainda estamos convictos de que volante cão-de-guarda é indispensável, que craque adversário se anula com a escolha de um marcador individual em cima dele, que o futebol brasileiro esteve chato porque abdicava do drible para tentar se adequar às caixinhas táticas importadas da Europa.

A convicção de que é impossível disputar pontos corridos e mata-mata ao mesmo tempo por motivos físicos fez com que bajulássemos o Palmeiras, cujo elenco tem duas ou três opções de primeiro nível para cada posição, e perdoássemos o Grêmio, que abdicou das pretensões no Brasileiro em nome do sucesso na Libertadores.

É óbvio que o troca-troca alucinado de técnicos no decorrer de uma temporada é nocivo para o futebol, mas, em resposta a este vício, passamos a acreditar que planejamento é começar e terminar o ano com o mesmo treinador. Se o Flamengo decidiu demitir Abel Braga para apostar em Jorge Jesus – que não ganhou nada além da "porcaria" do Campeonato Português, dissemos no Brasil –, com a temporada em andamento, era de se esperar que o português fosse precisar de muito tempo para colocar suas ideias em prática. Tínhamos certeza de tudo.

Eis que o Flamengo marca por zona, faz pressão sobre o adversário o jogo inteiro e chega ao gol com três ou quatro passes. Possui intensa mobilidade, com jogadores a trocar constantemente de posição. O desespero ao tentar marcá-los é tocante. Jorge Jesus não poupou o time titular inteiro, embora estivesse com pontos suficientes à frente dos demais no Brasileiro e pudesse fazê-lo. O português chegou em 1º de junho e não precisou de anos para implementar a sua filosofia.

Nélson Rodrigues dizia que "jamais um grande time levou um clube à falência". Na época da afirmação, em meados dos anos 1970, ele congratulava o mítico presidente do Fluminense, Francisco Horta, pelos investimentos que havia feito em contratações de jogadores. E pregava que os grandes craques causariam tamanha comoção nas torcidas cariocas – não apenas na tricolor – que o dinheiro encheria os cofres e compensaria os investimentos. Muita gente se convenceu disso.

Décadas de investimentos irresponsáveis fizeram com que o futebol brasileiro se acostumasse a um estado crônico de quase falência. E o Flamengo não era exceção. Em 2012, com quase R$ 750 milhões pendurados na praça, não havia dinheiro para absolutamente nada.

Eis que a bagunça política rubro-negra elegeu em dezembro de 2012 um presidente sereno e capacitado, Eduardo Bandeira de Mello. Ainda mais importante, junto dele estava um grupo de pessoas com experiência no mercado. Em todos os departamentos que estão no entorno do futebol – jurídico, financeiro, marketing, comunicação etc – entraram pessoas que mudaram práticas e procedimentos. Mesmo com a cisão deste grupo, que colocou em lados distintos Bandeira e o atual presidente, Rodolfo Landim, a qualificação continuou a ser regra na administração.

O futebol brasileiro tinha convicção de que era só engomação.

* "Eu não torço para banco".

* "De que adianta ser campeão de balanço?"

* "Fluxo de caixa é o caralho!"

Essa administração elevou rapidamente a arrecadação rubro-negra, pois havia enorme demanda represada. Mas a torcida foi convencida de que estar no topo do ranking de faturamento – a mídia gosta de um ranking – não significaria receber investimentos no futebol. Primeiro o clube economizaria dinheiro no cotidiano, registraria enormes lucros e usaria o excedente para pagar dívidas. Depois gastaria com o presente.

O Flamengo passou por três fases distintas em seu planejamento estratégico – essas fases foram previstas antes, e não inventadas depois para justificar os meios. Entre 2013 e 2015, austeridade e pagamento de dívidas eram as prioridades. Em 2016 começaram a ser feitos investimentos, como a contratação de Diego, e um período de consolidação se estendeu até 2018. Éverton Ribeiro chegou, depois Vitinho. A terceira e última fase começaria em 2019. Com R$ 100 milhões provisionados (separados dentro do orçamento) para comprar jogadores, chegaria finalmente a hora de ter agressividade no mercado.

Quando as pessoas se deram conta de que a gestão produzia resultados sólidos, convicções variadas pipocaram. Quem nunca abriu um balanço financeiro questionou "de onde vem o dinheiro do Flamengo" – como se houvesse irresponsabilidade ou coisa pior por trás das contratações.

Muita gente combinou o rótulo de riqueza do Flamengo com a escassez de taças – bendito resultadismo – para cravar que "dinheiro não compra título". O desempenho esportivo tinha melhorado sensivelmente no meio deste percurso. O clube que brigava para não ser rebaixado passou a brigar pelas primeiras três posições da tabela todo ano. Quase foi campeão da Copa do Brasil duas vezes. Mas, como não ganhou título, a sabedoria popular preferiu contestar todo o progresso.

* "Dinheiro não compra títulos"

* "Salário em dia, porrada em falta"

* "Lá vem o Zé planilha"

Pois o Flamengo de 2019 não foi formado apenas sobre os acertos do próprio 2019. Essa história começou há sete anos. Cada centavo a menos em dívidas permitiu que as contratações desta temporada fossem feitas. Cada jogador contratado e mantido no decorrer desta jornada prestou sua contribuição para os resultados alcançados.

O congraçamento rubro-negro poderia ter acontecido mais tarde, se o River Plate tivesse segurado o 1 a 0 até o fim da partida. As convicções do futebol brasileiro seriam mantidas por mais algum tempo, as pessoas duvidariam mais uma vez da correlação entre dinheiro e resultado, da importância da boa gestão e da responsabilidade, bobagens seriam repetidas por mais algum tempo. Mas seria questão de tempo. A recompensa deste Flamengo viria. Que bom que veio em 2019.

Assim que se encerrar a festança rubro-negra pelos títulos da Libertadores e do Brasileiro, pelo menos dois traçados se apresentarão a quem se importa com futebol em algum grau. No primeiro, convicções serão trocadas por outras convicções. Podemos apelar novamente à distribuição das cotas de televisão – como se a história fosse ser diferente em qualquer outro sistema –, podemos acusar esquemas entre dirigentes e árbitros, enfim, a cartela de argumentos é certamente vasta.

Ou podemos admitir que, talvez, não temos todas as respostas. Que o futebol merece ser estudado dentro de campo – tática, técnica, física e psicologicamente – e na sua administração. Que o Brasil precisa rever conceitos e práticas. Ainda mais no atual estado das coisas, em que apenas dois ou três aparentam ter condições de enfrentar o novo campeão. Ninguém implodiu tantas convicções quanto este Flamengo. Precisamos aprender alguma coisa com a história que ele nos contou.

@rodrigocapelo
PS.: Não sou flamenguista, se é que isso importa".


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