quinta-feira, 19 de maio de 2022

A NAÇÃO (2ª edição) - Capítulo IV: Anos românticos (1956-1973)


A NAÇÃO

Como e por que o Flamengo se tornou

o clube com a maior torcida do Brasil



Capítulo IV – Anos românticos (1956-1973)


O Brasil viveu o apogeu de seu orgulho e de sua autoestima na virada da década de 1950 para a de 1960. Na Suécia, a seleção brasileira ganhou a Copa do Mundo, em 1958. Depois foi bicampeã mundial no Chile, em 1962. A seleção de basquete ganhou o bicampeonato mundial em 1959 e 1963. O Santos, de Pelé, foi bicampeão da Taça Libertadores da América e bicampeão mundial de clubes, em 1962 e 1963. Nas quadras de tênis, Maria Esther Bueno venceu quatro vezes o US Open (1959, 1963, 1964 e 1966) e três vezes o Torneio de Wimbledon (1959, 1960 e 1964). Os Beatles sacudiam os bailes da juventude. Eram os Anos Dourados da sociedade brasileira. Até serem cortados pela revolução, passando-se aos Anos Rebeldes. Em 1964, deu-se o golpe militar no Brasil, instaurando-se o período de ditadura, que perduraria até 1984. O romantismo abriu passagem para a rebeldia.

Para o Flamengo, não foram anos tão bons em conquistas. Mas, talvez, os dias mais românticos da história do futebol nacional. Momentos para serem desfrutados em tardes agradáveis de domingo no Maracanã. Se o rubro-negro não ia lá tão bem, era porque tinha concorrentes muito fortes a superar. E o carioca adorava ir ao estádio para ver uma partida bem jogada. Costumava ir mesmo quando não era o seu time que estava em campo.

Nestes tempos, as cores do Flamengo já haviam conquistado uma majestade própria. Como descreveu Nélson Rodrigues, fanático torcedor do Fluminense, em uma de suas crônicas esportivas, em meados da década de 1960: “Em 1911, ninguém bebia um copo d’água sem paixão. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: não se trata de um fenômeno apenas do jogador, mas do torcedor também. Aliás, time e torcida completam-se numa integração definitiva. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte: quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável”.

Mas a tal bastilha não andava lá tão inexpugnável assim. Craques iam e outros vinham, e não aparecia outro time como aquele do tri. Em 1957, Evaristo trocou a camisa rubro-negra pela azul-grená do Barcelona, da Espanha. Depois de se tornar ídolo no Flamengo, ele marcou uma época no futebol espanhol. Foi ídolo no Barcelona de 1957 a 1962, e depois também no Real Madrid, de 1963 a 65. Foi um dos primeiros a brilhar com ambas as camisas dos maiores rivais espanhóis. Compôs um ataque magistral no Barça ao lado de dois ícones do futebol espanhol (Ladislao Kubala e Luís Suárez) e de duas feras húngaras da maravilhosa seleção da Copa de 1954 (Kocsis e Czibor). No Flamengo, para o lugar de Evaristo emergiu Henrique, reserva de 1954 a 1956, explodiu em 1957, quando então igualou um recorde rubro-negro, fazendo 45 gols durante o ano, a mesma marca conseguida por Alfredo na temporada de 1936 e por Durval na temporada de 1950. Mas a marca de Henrique só levaria dois anos para cair. Em 1959, Dida fez 46 na temporada e o superou. E este recorde durou quinze anos, só caindo pelos pés de Zico. Mas essa é outra história, a ser contada mais à frente.

Aqueles dias foram românticos em muitos sentidos. Era um bom tempo, no qual clubes europeus excursionavam na Cidade Maravilhosa sem riscos de violência e desfrutando de certo conforto. Queriam ter a honra de pisar no maior estádio de futebol de todo o mundo. Só em 1957, o Flamengo enfrentou – jogando no Maracanã – a AIK, da Suécia, Honved, da Hungria, Dínamo Zagreb, da Iugoslávia, e Belenenses e Benfica, ambos de Portugal. Em 1954, havia enfrentado ao Deportivo La Coruña, da Espanha, e, em 1955 ao Estrela Vermelha, da Iugoslávia.

Os títulos andavam escassos, mas havia razões para felicidade: em 1957, o Flamengo conseguiu algo raríssimo em sua história, duas goleadas consecutivas por 4 a 1 sobre o Vasco no mesmo campeonato, uma no turno e outra no returno, mas perdeu o título para o Botafogo. Em 1958 fez a quarta excursão de sua história à Europa. Disputou os dois primeiros torneios europeus quadrangulares amistosos, o Torneio de Paris e o Troféu Tereza Herrera, em La Coruña, na Espanha. Não voltou com títulos, mas fez, mais uma vez, uma bela campanha no Velho Continente. Na primeira ida a Europa, em 1951, haviam sido dez partidas em um mês de excursão (nove vitórias e um empate). Na segunda, em 1954, foram doze jogos durante dois meses (três vitórias, sete empates e duas derrotas). Na terceira, em 1956, foram onze jogos em um mês (oito vitórias, um empate e duas derrotas). Em 1958 foram quinze jogos durante dois meses de turnê (com direito a uma ida ao Oriente Médio para três amistosos em Israel). Dos quinze, o Flamengo venceu nove, empatou três e perdeu três. No Torneio de Paris, empate na estreia com o Bolton, da Inglaterra, e vitória sobre o Ujpest, da Hungria, terminando em terceiro lugar. No Troféu Tereza Herrera, perdeu para o Nacional de Montevidéu e ficou fora da final. Os destaques da excursão foram as goleadas por 6 a 1 sobre o Nantes, na França, e por 6 a 2 sobre o Besiktas, na Turquia, além de uma vitória sobre o Sporting por 3 a 0 em Lisboa.

O futebol, entre os anos 50 e 60, firmou-se de vez como paixão das multidões. Seu lugar como principal esporte na preferência nacional já se consolidara antes, mas a grandeza do Maracanã, o caminho do sonho à desilusão com a Copa de 1950, e a fantástica geração de Pelé, Didi, Garrincha e Nilton Santos, que elevou a autoestima nacional a píncaros na Suécia em 1958, deram uma cor diferente às relações sentimentais do país com aquele esporte. O Maracanã introduziu toda uma nova relação entre o carioca e o futebol. Antes os estádios menores e de mais difícil acesso não tinham a capacidade de mover toda uma multidão. De repente, surgiu aquele estádio gigantesco, para abrigar até quase duzentas mil pessoas, localizado numa região central, de fácil acesso tanto para a Zona Norte quanto para a Zona Sul da cidade. Tudo passou a ser diferente. Os dias de domingo ganharam uma agenda própria e especial: praia de manhã e jogo de futebol à tarde. A juventude carioca saía de casa pela manhã e voltava no entardecer, com os corpos misturando o sal do mar, o suor do estádio e a camisa do time de coração no peito. Mal lembravam de sentir fome.

As raízes rubro-negras já estavam plantadas e haviam germinado por todos os rincões. O vermelho e o preto já tingiam uma paixão em escala nacional. Todos já sabiam, desde antes do Maracanã, quem era o mais querido do Brasil. Daí para frente o processo só foi catalisado. Não havia o que abalasse aquele sentimento desfraldado por invisíveis mãos.

Rubens foi para o Vasco e Zagallo para o Botafogo, um ano antes Evaristo já havia saído para o exterior. O ataque do tricampeonato, que tinha Joel, Rubens, Índio, Evaristo e Zagallo, passou a ser Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá. Desmanchava-se uma era que marcou seu tempo. A presença de estrangeiros também diminuiu. Depois que, ao final da temporada de 1958, o goleiro Garcia deixou o Flamengo (desde 1955 ele vinha na reserva), não sobrou ninguém com sotaque estrangeiro entrando em campo (desde 1937 o Flamengo não passava uma temporada sem ter estrangeiros em seu time). Em 1960, ainda se tentou dar continuidade à tradição, com a contratação do zagueiro paraguaio Monin. Mas este fez uma temporada mediana e voltou ao Paraguai no fim do ano.

Mas se o Flamengo não tinha mais estrangeiros no seu elenco em 1959, seguia com um treinador estrangeiro no banco de reservas. Porém, não durou muito, pois antes do Campeonato Carioca daquele ano o paraguaio Fleitas Solich aceitou o convite do Real Madrid para substituir ao técnico argentino Luis Carniglia, que dirigia a equipe desde 1957. Solich passou a ser, então, o quarto treinador sul-americano a dirigir o Real Madrid. Antes de Solich e de Carniglia, os uruguaios Hector Scarone (1951/52) e Enrique Fernandez (1953 a 1955) haviam sido os outros. Depois do Feiticeiro, só nos anos 80 o Real voltou a ser comandado por um sul-americano, e, ainda assim, um meia-bomba, pois Alfredo Di Stefano era argentino, mas naturalizado espanhol, quase dando para dizer que era mais europeu que sul-americano. Do argentino Jorge Valdano (1994-1996) ao brasileiro Vanderlei Luxemburgo (2005), apenas um grupo seleto de técnicos da América do Sul esteve à frente da equipe merengue.

Solich levou a equipe ao vice-campeonato na temporada 1959/60, mas a perda do título para o Barcelona, que levou o bicampeonato, foi suficiente para derrubá-lo antes mesmo da final da Copa dos Campeões da UEFA, da qual o Real Madrid sairia com o pentacampeonato, já sob o comando de seu sucessor, o espanhol Miguel Muñoz. A poderosa linha de frente comandada por Fleitas Solich na Espanha tinha Di Stefano, Puskas e Gento, numa equipe que ainda contava com o zagueiro uruguaio naturalizado espanhol Santamaria. Um grande time, derrubado somente por outra grande equipe, o Barcelona, cuja linha de frente era Kubala, Kocsis, Evaristo, Luís Suárez e Czibor. Do Real Madrid, Solich voltou para o Flamengo em 1960 para ficar mais duas temporadas à frente do rubro-negro.

O flamenguista se orgulhava do privilégio de poder andar trocando treinador com o Real Madrid. Eram tempos nos quais a flâmula vermelha e preta já tinha cruzado as fronteiras nacionais. Em 1953, o Flamengo havia conquistado seu primeiro título internacional, o Quadrangular de Buenos Aires. Em 1959, venceu o segundo, o Hexagonal de Lima, um torneio pomposo, com a participação de River Plate, Peñarol, Colo-Colo, Flamengo e os representantes locais, Alianza e Universitário. O time estreou perdendo para o Peñarol, mas daí para frente só venceu, com destaque para a goleada de 4 a 1 sobre o River Plate, da Argentina. Era quase como se o Flamengo houvesse sido campeão sul-americano, já que ainda não existia a Taça Libertadores da América, que estava por ser inaugurada na página seguinte da história. Mais um belo capítulo da epopeia de conquistas do Flamengo.

Mas também houve vexames internacionais. O maior aconteceu em 1960, quando o Flamengo voltou a excursionar pela Europa. Até antes desta viagem seu retrospecto diante de europeus era extremamente favorável: quarenta vitórias, dezesseis empates e nove derrotas em 65 partidas. Nesta campanha a coisa mudou. Logo na estreia o Flamengo foi atropelado pela seleção da Bulgária, tomando uma goleada de 6 a 0. Algo pior ainda estava por vir: a pior goleada da história profissional rubro-negra, 9 a 2 para o Motherwell, da Escócia. Neste jogo, o atacante da seleção da Escócia, Ian Saint John, fez seis gols, tornando-se o jogador a mais ter feito gols sobre o Flamengo em uma única partida em toda sua história. Em quatorze jogos, passando por Bulgária, Áustria, Alemanha, Escócia, Espanha, Itália e Grécia, foram cinco vitórias – a grande parte sobre equipes bem modestas –, três empates e seis derrotas. Alguns placares bem esdrúxulos, como um empate por 5 a 5 contra o Alemania Aachen. Para minimizar o vexame e melhorar a autoestima, no regresso da viagem à Europa, quem pagou o pato foi o Cerro Porteño, do Paraguai, que em amistoso no Maracanã foi goleado, sem piedade, por 9 a 2, curiosamente o mesmo placar da humilhante derrota na Escócia.

Ainda que o Flamengo amargasse um jejum de títulos cariocas – não vencia desde 1955 na conquista do tri –, compensava com outras conquistas. Em 1961, conseguiu soltar o grito de campeão da garganta e novamente levantando troféu de dimensão continental. Logo no início do ano conquistou um minicampeonato sul-americano, o Octogonal de Verão, que reuniu Flamengo, Vasco, Corinthians e São Paulo, pelo Brasil, Boca Juniors e River Plate, pela Argentina, e Nacional e Cerro, como representantes do Uruguai. Todos jogaram contra todos, em sistema de pontos corridos. Apesar de uma goleada de 4 a 0 sofrida para o Boca em La Bombonera, e de todos os jogos contra argentinos e uruguaios serem como visitante – contra o River Plate no estádio Monumental de Nuñez, contra o Boca Juniors em La Bombonera, e contra Nacional e Cerro no estádio Centenário, em Montevidéu – o time conseguiu a belíssima conquista, uma das mais bonitas da história do Flamengo. Logo em seguida veio a conquista do primeiro e único Torneio Rio–São Paulo levantado pelo Flamengo em sua história. E numa campanha em que também sofreu goleada, essa em pleno Maracanã: 7 a 1 para o Santos, que tinha o histórico ataque formado por Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. A força daquela equipe estava no jovem meio de campo, formado por Carlinhos e Gérson, e na linha de frente com Joel, Henrique, Dida e Germano.

Desfrutando do romantismo com o qual o mundo olhava para a pujança emergente do Brasil, do Rio e de Copacabana e, neste contexto, da fama internacional que a sua popularidade lhe dava, em 1962 o Flamengo deu a “volta ao mundo em 80 dias”. Jogou na América Central, no México, na Europa e, pela primeira vez, na África. Com uma particularidade nessa excursão: enfrentou quatro seleções nacionais. Empatou por 2 a 2 com o México, perdeu por 3 a 1 para a Itália e de 4 a 2 para a Tchecoslováquia (que seria vice-campeã mundial pouco depois) e venceu por 5 a 1 à Noruega. O Tour Mundial começou em fins de janeiro e início de fevereiro com dois amistosos na Costa Rica e sete no México (quatro vitórias, três empates e duas derrotas, ambas em Guadalajara, para as equipes locais Atlas e Chivas). Interrupção no Tour para a disputa do Rio–São Paulo, e mais dois meses de viagem, com mais uma passagem não muito boa pela Europa entre abril e junho. O time sofreu quatro derrotas consecutivas nos primeiros amistosos em solo europeu, além das já citadas, para as Seleções Italiana e Tcheca, o rubro-negro caiu também diante do Spartak e do Slovan Bratislava, ambos da Tchecoslováquia. Depois venceu ao Palermo, na Itália, e sofreu derrotas para Sampdoria e Atlhetic Bilbao (essa por goleada: implacáveis 5 a 1). A redenção veio na vitória sobre o Barcelona, no Nou Camp, por 2 a 0. Daí o Flamengo seguiu para jogar na Suécia, na Finlândia, na Noruega e na União Soviética. Em total, na Europa, foram dezoito jogos, com nove vitórias e nove derrotas. A última parada foi na África, na Tunísia e em Gana, até regressar para a disputa do Campeonato Carioca daquele ano.

Um novo tour pela Europa aconteceu em 1963. E o Flamengo voltou a medir forças com seleções nacionais. Perdeu de 2 a 1 para a Romênia e empatou por 0 a 0 com a União Soviética. Ainda mediu forças com o Stade Reims, da França, vice-campeão europeu, para quem perdeu por 3 a 1, e cuja principal estrela era o lendário Just Fontaine. Nesta excursão, em dezesseis jogos, passando por Romênia, Polônia, Tchecoslováquia, União Soviética, Áustria, Suécia, Dinamarca e França, foram seis vitórias, seis empates e quatro derrotas. O vermelho e preto estava com sua marca registrada pelo mundo. 

Apesar dos sete anos sem levantar a taça do Campeonato Carioca, a força do Flamengo estava absolutamente inabalada. E outra força que ainda se mostrava inabalável era a do Rio de Janeiro. Mas por esta época fincou-se a mudança estrutural que enfraqueceria a cidade daí para frente. O carioca desdenhava, duvidava que a transferência da capital federal para Brasília seria capaz de mudar algo. Tirava onda dizendo que “o Rio de Janeiro continuava lindo”. Nada como uma década após outra de desmonte estrutural para mostrar que ele deveria ter ficado com uma pulga atrás da orelha. Foi-se a capital, atrás dela seguiu o capital. Posteriormente, acompanhando os problemas econômicos brasileiros nos anos de 1980, a economia da cidade entrou em uma profunda crise. Com o desmonte econômico, atiçou-se a crise social. Explodiu a violência. Decaído, o Rio não encontrava fortaleza política que lhe servisse de sustento. Os pilares ruíram no decorrer dos anos de 1990. Atordoada e sem a vocação construída por décadas, a cidade se desmontou. Mas a compreensão deste desmanche é coisa para mais adiante.

O Rio de Janeiro dos anos 60 estava muito distante de transparecer qualquer sinal de decadência. Copacabana vivia seus dias de glória máxima, era o auge de sua fama mundial. A Bossa Nova explodia como o novo ritmo do Brasil. Um ritmo mais uma vez nascente sob as luzes noturnas da boemia carioca, assim como fora o samba, mas que exaltava o sol, a praia e o bronzeado. A Garota de Ipanema, música de Tom Jobim e Vinícius de Morais, cantava àquela moça mais linda, mais cheia de graça, que vem e que passa a caminho do mar, com o corpo dourado pelo sol da praia de Ipanema. A canção é gravada pela voz internacional de Frank Sinatra e torna-se um novo símbolo da brasilidade e da carioquice. Torna-se um hino mundial, emparelhando-se à Aquarela do Brasil como a canção a gerar uma simbiose nos ouvidos de qualquer pessoa na face da terra. As duas melodias viram sinônimo de Brasil. Junto com a Bossa Nova, nasce toda uma nova rodada de construção de grandiosidade e autoestima em torno do Rio de Janeiro. Agora, mais do que por uma exaltação ao Brasil, uma exaltação à cidade:

“Minha alma canta/ Vejo o Rio de Janeiro, estou morrendo de saudades/ Rio, seu mar, praia sem fim/ Rio, você foi feito para mim/ Cristo Redentor/ Braços abertos sobre a Guanabara/ Este samba é só porque/ Rio, eu gosto de você” (Samba do Avião).

“Existem praias tão lindas, cheias de luz/ Nenhuma tem o encanto que possuis/ Tuas areias, teu céu tão lindo/ Tuas sereias sempre sorrindo/ Copacabana, princesinha do mar/ Pelas manhãs tu és a vida a cantar/ E à tardinha, o sol poente deixa sempre uma saudade na gente” (Copacabana).

A semente da mudança que marcaria o Rio para sempre foi plantada durante a campanha presidencial em 1955 quando o então candidato Juscelino Kubitschek, de origem em Minas, prometeu que, se eleito, levaria a capital federal para o Planalto Central, respeitando o que fora escrito na primeira Constituição do Brasil. Juscelino foi eleito com seu Plano de Metas, que prometia fazer o país evoluir cinquenta anos em cinco. Ele tomou posse na presidência da República em 31 de janeiro de 1956. Em setembro daquele ano, o Congresso Nacional aprovou a construção da cidade de Brasília. As obras se iniciaram em outubro de 1956 e duraram três anos e dez meses. A cidade foi inaugurada ainda antes da conclusão total da obra, em 21 de abril de 1960. Principalmente porque ao final daquele ano terminava o mandato de Juscelino. Até 1964, no entanto, a transferência de órgãos públicos para a nova capital permaneceu praticamente estagnada. A gestão da política nacional seguia acontecendo, toda ela, no Rio de Janeiro.

Não era uma transição fácil, afinal, fora no Rio que a elite brasileira fincara as bases com as quais pretendia construir o futuro que libertaria o país de seu passado colonial e construiria a autoestima nacional. A cidade fora a peça crucial para o desligamento simbólico ao passado que condenava o Brasil. Embora a primeira Carta Constituinte já previsse a construção de uma nova capital federal no Planalto Central, o custo de transferência era muito elevado. Setenta anos após a Proclamação da República ainda era muito difícil levantar os recursos econômicos para viabilizar tal mudança. Não era só coisa de apagar as luzes no litoral e fincar bases no centro geográfico do país para curtir o cheiro de tinta fresca da capital novinha em folha, que custara rios de dinheiro e um pesado endividamento aos cofres públicos.

Não só pela lenta transferência dos órgãos públicos para a nova capital, mas também pela pujança da economia brasileira neste período, para o carioca não houve mudança perceptível alguma. Entre 1966 e 1976, a economia do Brasil cresceu 163%. Ou seja, quase que triplicou. Neste intervalo de onze anos, o país cresceu, em média, 9,2% ao ano. Foi a maior evolução de uma economia latino-americana em toda a história. Só com a China, no início do século XXI, a humanidade veria uma economia crescer de forma tão acelerada por um período tão longo. Todos os setores da economia prosperavam. Todas as regiões e cidades brasileiras se esbaldavam em mais empregos e em mais renda. Por isso, podia-se desdenhar a transferência da capital. O Rio de Janeiro sentia-se inabalável. Ledo engano e fatídico equívoco. As mudanças econômica, social e política se escondiam nas sombras, adiadas pelo ápice do sonho de se construir o país do futuro. Ninguém percebia a metamorfose. O romantismo seguia pairando no ar.

E a grandiosidade do vermelho e do preto, que já se solidificara como rocha, também estava lá, exposta para que aqueles corações românticos se embebedassem em tardes tranquilas de domingo no Maracanã. E o Flamengo não parava de dar demonstrações da grandeza que conquistara. A partida que decidiu o Campeonato Carioca de 1963, entre Flamengo e Fluminense, cujo empate por 0 a 0 deu o título ao time rubro-negro, representa, ainda nos dias de hoje, o recorde mundial histórico de público pagante em partidas entre clubes: 177 mil pessoas. A marca só foi batida, ambas às vezes também no Maracanã, pela final da Copa do Mundo de 1950, entre Brasil e Uruguai, com 185 mil espectadores, e pelo recorde histórico de público em jogos de futebol – 189 mil pagantes – na partida entre Brasil e Paraguai pelas Eliminatórias, em 1969.

A base rubro-negra aflorava cada vez mais jovens talentos. E o mais promissor a surgir nestes tempos foi um que, curiosamente, era estrangeiro. Sua presença ajudou a manter uma escrita que marcou uma era na história do Flamengo: entre 1937 a 1979 (quarenta e dois anos de intervalo) em apenas três temporadas o clube não teve um estrangeiro em seu plantel: 1959, 1961 e 1965.

Entre 1962 e 1964, o clube não investiu em estrangeiros, mas o destino lhe colocou um no elenco: Espanhol. Jose Armando Ufarte era espanhol de nascimento, chegou com os pais ao Rio de Janeiro em 1953, aos 12 anos. Foi formado nas divisões de base da Gávea e defendeu a equipe profissional de 1962 a 1964, quando então se transferiu para o Atlético de Madrid, onde permaneceu por dez anos e tornou-se um dos maiores astros da história do clube madrilenho. Defendeu a seleção da Espanha em quinze oportunidades e por ela marcou dois gols. O mais importante foi na vitória sobre a Irlanda, pelas Eliminatórias, classificando sua seleção para a Copa de 1966. Durante a Copa do Mundo, entrou em apenas uma partida. Ainda defendeu a Espanha na Eurocopa de 1968. No Flamengo, entrou para a história como o ponta-direita Espanhol, campeão carioca de 1963; na Espanha como o atacante Ufarte, um dos maiores nomes da história do Atlético de Madrid, três vezes campeão espanhol, nas temporadas de 1965/66, 1969/70 e 1972/73.

Nos anos mais românticos do futebol, viajava-se com muita frequência ao exterior. Nos dois primeiros meses de 1964, o Flamengo embarcou em mais uma excursão muito bem sucedida pela América do Sul, somada a um jogo contra a seleção do Haiti, na América Central. Em quinze jogos, houve doze vitórias, dois empates e somente uma derrota, sofrida logo no primeiro jogo, para o Universidad do Chile, em um torneio em Santiago. No mesmo torneio, com todas as partidas no estádio Nacional de Santiago do Chile, o Flamengo venceu a Nacional de Montevidéu, Racing Club da Argentina, e aos chilenos do Colo-Colo e do Rangers. Seguiu viagem para o Peru, onde venceu a Sporting Cristal, Alianza Lima e ao modesto Miguel Grau. Seguiu daí para a Colômbia, onde superou, em Medellin, às equipes locais do Atlético Nacional e do Independiente e, em Cali, ao América. Ainda venceu ao Emelec, em Guaiaquil, no Equador, antes de seguir para a Jamaica, onde enfrentou duas vezes ao Nacional de Medellin, da Colômbia, com um empate e uma vitória.

Ao mesmo tempo em que seus jogadores viajavam para lá e para cá, a imagem deles como ídolos também começava a viajar pelo país. Naquela época, no início da década de 1960, emergia com força no Brasil uma nova tecnologia nas telecomunicações: a televisão. As duas maiores emissoras empreendidas no país no início dos anos 60 eram a TV Rio e a TV Tupi. Só que este pioneirismo surgiu em São Paulo, cabendo, portanto, a pergunta: por que a televisão não foi capaz de dar a popularidade nacional aos times de futebol de São Paulo que o rádio dera aos times de futebol do Rio? A esta altura da narrativa, o objetivo era de que a resposta a esta pergunta já estivesse claramente respondida nas páginas anteriores.

A TV Rio foi fundada em 1955 e tinha sua sede em Copacabana. Fez imenso sucesso com programas humorísticos e telenovelas. Mas seu grande sucesso, logo no lançamento, foi o programa de auditório, sob o comando de Flávio Cavalcanti. Foi um sucesso estrondoso. Mas o televisor ainda era um bem de consumo restrito, não eram muitas as famílias que conseguiam ter um em seus lares.

Os precursores da televisão no Brasil foram os paulistas. A primeira foi a TV Tupi – lançada em 1950 por Assis Chateaubriand – que foi a pioneira em telenovelas. Em seguida foi ao ar a TV Paulista – lançada em 1952 – e cujo maior sucesso era o programa Praça da Alegria, comandado por Manoel da Nóbrega. No ano seguinte foi inaugurada a TV Record, que em 1955 transmitiu pela primeira vez uma partida de futebol, um confronto entre Santos e Palmeiras, na Vila Belmiro.

No início dos anos 60, pioneiramente, a televisão brasileira realizou a primeira resenha futebolística, realizada pela TV Rio, e foi um estrondoso sucesso. O programa A Grande Resenha ia ao ar nos domingos à noite. A mesa era composta por Luiz Mendes, Armando Nogueira, Nélson Rodrigues, João Saldanha, José Maria Scassa e Vitorino Vieira, que debatiam os resultados das partidas do fim de semana.

Só em 1965 foi inaugurada a TV Globo, também do Rio de Janeiro, e cuja sede foi edificada no bairro nobre do Jardim Botânico. Foi a Globo que acabou desarticulando a Grande Resenha, quando desfalcou o time de comentaristas ao contratar Nélson Rodrigues. Na nova e incipiente emissora, Nélson passou a comandar um programa de entrevistas batizado como “A cabra vadia”, pois buscava extrair tudo que cada convidado tivesse para contar. E, segundo Nélson, há confissões que um homem só é capaz de fazer em um terreno baldio, cujas testemunhas se resumiam a qualquer cabra vadia que estivesse pastando por lá. O programa estreou em 1966 e o primeiro entrevistado foi João Havelange, então presidente da Confederação Brasileira de Desportos. Aquele era um ano de Copa do Mundo, e todas as atenções estavam voltadas para a preparação da seleção brasileira, que buscaria conquistar sua terceira Copa consecutiva na Inglaterra.

Destes programas nasciam personagens históricos construídos pela mente brilhante de Nélson e que davam um ar especial e romântico ao futebol destes tempos. As cabras vadias do Lins de Vasconcelos viravam citação constante quando o dramaturgo queria construir consensos: até as cabras vadias sabiam que as coisas tinham sido assim ou assado. Estas cabras existiam na vida real e foram do convívio das vizinhanças da família Rodrigues. O Lins é um bairro pequeno, de passagem, exprimido entre o Grajaú, o Engenho Novo e o Méier. Nélson as via diariamente depois que se casou, pastando nas encostas dos morros, pois sua primeira residência depois de casado foi na rua Barão do Bom Retiro, no Engenho Novo.

Estes personagens entravam em suas histórias estivessem estas relacionadas com o futebol ou não. Era como a viúva grã-fina das narinas de cadáver, que se gabava do sobrenome de origem na nobreza europeia, mas que vivia enclausurada pela solidão de relações frias e sem calor humano. Uma infindável, criativa e realista construção de mitos urbanos do cotidiano. Ou ainda o desconhecido íntimo, este sim um personagem todo ele construído em torno das fantasias do futebol. O desconhecido íntimo era aquela pessoa ao lado de quem se sentava nas arquibancadas para ver um jogo de futebol, e com quem, durante os noventa minutos da partida, trocavam-se as confidências mais íntimas e os detalhes mais pormenorizados de problemas particulares. Depois, terminado o espetáculo, uma troca de apertos de mão, um até logo, e os dois sujeitos, testemunhos um da intimidade do outro, davam-se as costas e nunca mais voltavam a se ver. Outros dias, outros tempos, outros mitos. E muito mais romantismo.

A torcida do Flamengo também sempre teve o dom de construir mitos. Assim como sempre teve o poder de destruí-los na mesma velocidade com que os edificara. O ano de 1964 é simbólico para mostrar esta aptidão para construir e desmontar figuras. As apostas do Flamengo para aquele ano saíram do futebol paulista: o zagueiro Ditão, do Juventus, e o atacante Berico, do Guarani. Este último foi daqueles jogadores que a torcida rubro-negra repentinamente transformou em craque e em quem se fez altas apostas pelo futuro. Ele vinha de São Paulo com a fama de que seria um novo Pelé. Suas primeiras atuações agradaram e a torcida do Flamengo logo o colocou no alto de um pedestal. Até ele se contundir, passar muito tempo entre idas e vindas ao departamento médico. Em 1965, o pedestal ruiu e os aplausos foram transformados em vaias. Berico acabou deixando o Flamengo no final daquele ano pela porta dos fundos.

Em tempos de construção de mitos, foram bem raros os casos de perdão àqueles que trocaram o manto vermelho e preto pela camiseta de um rival. Naquele ano de 1965, o Flamengo perdeu o zagueiro Ananias, que foi para o Vasco. Ele era um dos melhores zagueiros do futebol carioca. Foi titular na Gávea por muitos anos, assim como foi com a camisa da cruz de malta nos anos subsequentes, mas a torcida não quis saber de compreensão quando ele resolveu dar novo rumo à carreira. De xerife da zaga por três temporadas, o beque passou a renegado nos corações rubro-negros. Para o lugar de Ananias foi contratado o veterano zagueiro Zózimo, do Bangu, bicampeão mundial com a seleção brasileira nas Copas de 1958 e 1962. Mas ele jogou apenas o Torneio Rio–São Paulo, já sem o mesmo brilhantismo que o consagrara.

Num período sem muitos títulos, as coisas estiveram melhores para o Flamengo em 1965. O clube foi em busca de atacantes para fortalecer seu grupo. Contratou dois jogadores que fariam história com sua camisa, apesar de ambos terem tido passagens relativamente curtas: Almir Pernambuquinho e Silva, o Batuta. Almir foi contratado junto ao Santos e Silva junto ao Corinthians. Se Silva virou o ídolo da torcida, seu companheiro de ataque, o Pernambuquinho, tornou-se o símbolo da identidade entre o campo e a arquibancada. Almir era um jogador polêmico, com histórico de indisciplinas e de um futebol mesclando virilidade, raça e habilidade, bem ao gosto da torcida do Flamengo. Ele começou a carreira no Sport, de Recife, em 1956; depois jogou pelo Vasco entre 1957 e 1959, fazendo bastante sucesso. Trocou São Januário pelo Parque São Jorge em 1960, mas sua passagem pelo Corinthians não foi muito marcante. Daí seguiu para o Boca Juniors, da Argentina, onde permaneceu por um ano e meio, entre 1961 e 1962. Também tentou a sorte em gramados italianos em 1962, mas a passagem foi bem curta. Em 1963/64, vestiu a camisa do Santos. Depois, em 1965, aos 28 anos, chegou à Gávea, onde permaneceu até 1967. Depois do Flamengo foi para o América, onde encerrou a carreira, aos 32 anos. Os investimentos surtiram efeito. Em 1965, o Flamengo venceu o Campeonato Carioca do 4º Centenário da cidade do Rio de Janeiro. Tudo terminou em um grande carnaval no Maracanã. Mais um carnaval fora de época tomou conta das ruas do Rio.

Ao tempo de seu quarto centenário, a cidade do Rio de Janeiro terminava de espalhar seus tentáculos urbanos. Daquela cidade do começo do século, uninucleada, com tudo girando em torno do Porto, restara muito pouco. A continuidade de seu processo de expansão levara a cidade a dar as costas para a baía de Guanabara e correr pela costa do Atlântico. As águas calmas e o espelho d’água da baía foram trocadas pelas ondas quebrando na areia e o ir e vir agitado das águas do mar. Do Leme e de Copacabana, os edifícios já haviam tomado Ipanema e Leblon. Agora, pelos anos 60, começavam a penetrar por São Conrado e pela Barra. A cidade vivia uma constante transmutação. Os pontos de encontro da gente carioca se multiplicavam. A rua do Ouvidor de outrora, com suas vitrines parisienses, deixara sua grandeza no passado. A população passara a marcar seus encontros, consumar suas amizades e a buscar seus amores nos bares na orla da praia, de frente para a brisa fresca e salgada do mar. Os mais favorecidos buscavam redutos mais requintados. Ganhou fama o Itanhangá, ponto de encontro no meio do caminho entre o Leblon e a Tijuca, unindo a Zona Norte à Zona Sul. Para lá, chegava-se por um lado pela Estrada do Joá, e por outro pela Estrada do Alto da Boa Vista. À beira de ambos os trajetos, estavam as casas mais caras da cidade. Estas duas estradas tinham a maior concentração de renda do Rio de Janeiro dos anos 60.

No Itanhangá não demorou para surgir até campo de golfe. Um gramado enorme. Também tinha que ter Iate Clube, afinal a grã-finagem precisava de um lugar para guardar seus barcos. Seus caros restaurantes viraram parada obrigatória para o núcleo-duro do cosmopolitismo carioca. Dentre os frequentadores ilustres do Itanhangá havia desde empresários até a gente do cinema nacional emergente. Eram figuras constantes por lá nomes como Roberto Campos, Nélson Rodrigues e João Saldanha, entre tantos outros.

Muitas destas cabeças estavam voltadas para terminar de construir o projeto de grandeza do Brasil, terminando de pavimentar aquele sonhado futuro como nação desenvolvida, liberta de seu passado de atraso. A grandeza arquitetônica já fora edificada, a autoestima nacional já havia sido devidamente massageada e a taça do mundo já era nossa. Todos os brasileiros viviam a imagem de que “com o malandro brasileiro não há quem possa”.

Faltava construir as bases de uma economia forte. Em trancos e barrancos o país conseguira aproveitar o pós-Segunda Guerra Mundial para industrializar-se. Era preciso, agora, edificar a institucionalidade que civilizaria a economia brasileira. O amplo projeto de reflexões sobre reformas necessárias ao país passou, de certa forma, por muitos dos bate-papos no Itanhangá. As mãos técnicas de alguns economistas trataram de moldar aqueles anseios de avanço. O sensível progresso do Brasil nesta área durante os anos 60 foi composto por um conjunto de leis arquitetadas por Octávio Bulhões e Roberto Campos. Fez parte deste conjunto de medidas a Lei 4.595, de 1964, conhecida como Lei do Sistema Financeiro. Logo em seguida veio a Lei 4.728, de 1965, que foi batizada como Lei do Mercado de Capitais. Ali, naquele momento, se organizaram instituições como o Banco Central, o Conselho Monetário, o Sistema Financeiro Nacional, além do Sistema de Poupança e Empréstimo (“cadernetas”), o qual deflagrou a enorme onda de construções residenciais através do Sistema Financeiro da Habitação. O FGTS, outra grande inovação dos anos 60 – poupança de trabalhadores, depositada mensalmente pelos patrões – não só substituiu a rígida e atrapalhada estabilidade no emprego após dez anos de serviço, como criou a grande âncora social em caso de desemprego do cidadão. Todas as mudanças que amadureciam desde a Proclamação da República, em 1889, se somavam para dar ao país condições para o maior salto de progresso da história do Brasil, resumidos em uma década inteira de crescimento vertiginoso, com a economia avançando quase 10% ao ano.

No mesmo ritmo galopante no qual o país vinha mudando, também vinha se transformando o futebol brasileiro. Os campeonatos estaduais não definiam um dono para o título nacional. Sendo o carioca e o paulista os dois mais fortes do país, a primeira tentativa foi através do Rio–São Paulo. Mas o futebol mineiro e o gaúcho vinham emergindo em ritmo forte. Sentia-se a necessidade de um torneio nacional mais amplo.

Mas, como em todo período de transição, houve muita confusão até se construir um consenso. Em 1966, o Torneio Rio–São Paulo sequer chegou ao final, tendo sido interrompido quando havia nada menos do que seis equipes empatadas na liderança, após a realização de nove rodadas. Com suas agendas inesperadamente comprometidas, cada clube foi em busca da solução que melhor lhe convinha. Flamengo e Corinthians se uniram e saíram juntos em excursão pela América Latina. Duelaram uma vez em Guaiaquil, por um torneio quadrangular local, depois seguiram para a América Central, onde fizeram duas partidas de exibição em Manágua, na Nicarágua, e uma na Cidade da Guatemala. O Flamengo venceu a partida jogada no Equador, mas depois amargou três derrotas para os corintianos. Também nesta excursão, o Flamengo sofreu uma daquelas derrotas que podem ser classificadas quase que como inimagináveis. Perdeu por 3 a 2 para o Alianza, de El Salvador.

A derrota para os salvadorenhos pode ser vista como seu primeiro grande tropeço internacional. Até aquele ano, a camisa rubro-negra havia jogado vinte e três vezes contra equipes de fora do eixo Europa-América do Sul: duas vezes no Oriente Médio, sete na África, nove na América Central e cinco no México. Nestes jogos, haviam ocorrido quinze vitórias e seis empates. Derrotas, apenas duas, ambas em Guadalajara, no México, para as equipes locais do Atlas e do Chivas. Quem imaginaria um tropeço em El Salvador? Só o futebol é capaz de reservar surpresas assim.

Outro caso que mostra o quão confuso foram estes dias envolve um jogador rubro-negro. O Flamengo em 1964 havia contratado, ao Juventus da rua Javari, de São Paulo, o jovem zagueiro Ditão. Ele era irmão de outro zagueiro que vinha se destacando em São Paulo, só que pela Portuguesa de Desportos, mas que também havia iniciado sua carreira no Juventus. Dele, o irmão mais novo herdou o mesmo apelido. Geraldo Freitas Nascimento, nascido em 1938, era o Ditão da Portuguesa, contratado em 1966 pelo Corinthians. Gilberto Freitas Nascimento, nascido em 1942, era o irmão mais novo, o Ditão zagueiro do Flamengo. Pois bem, em 1966, nos preparativos para a Copa do Mundo, o técnico Vicente Feola convocou Ditão, já do Corinthians, para a seleção. Só que na hora de divulgar os chamados por Feola, anunciou-se o Gilberto e não o Geraldo. No dia da apresentação, já no aeroporto, chegou o Ditão do Flamengo, só então se percebendo a confusão. A CBD (Confederação Brasileira de Desportos) reconheceu o erro, mas não quis desfazer a troca; quem viajou para a Europa com a seleção brasileira foi o Ditão do Flamengo e não o do Corinthians, para a indignação paulistana.

Sem passar por um momento muito brilhante em sua história, o Flamengo tentou, a partir de 1966, reeditar o sucesso da garra portenha. Primeiro contratou, naquele ano, o atacante uruguaio Carlos Mendoza. Não deu certo, a primeira passagem de um jogador uruguaio pelo rubro-negro foi um completo fracasso. Bem pior do que a do paraguaio Monin, em 1960, que já não havia sido muito boa. Porém, no ano seguinte, em uma nova tentativa, a coisa voltou a funcionar. Mas não de imediato. Em 1967, chegou ao Flamengo o paraguaio Francisco Reyes, contratado ao Olímpia, de Assunção. Ele chegou como cabeça de área, mas sua primeira temporada não foi muito boa. Na verdade, as primeiras, porque depois sofreu contusões e ficou um tempo afastado. Só em 1971, quatro anos depois, e após uma passagem por empréstimo pelo Campo Grande, ele conseguiu efetivamente tornar-se titular na equipe, e como zagueiro. E foi na zaga que ele entrou para a história do Flamengo. Foi, sem dúvidas, um dos maiores zagueiros da história do clube.

Mas entrava e saía ano e o Flamengo não superava a dificuldade de se encontrar em campo. Um troféu aqui, outro ali, mas não apareciam mais times como aquele do tri. Depois de ganhar o Rio–São Paulo de 1961, e os Cariocas de 1963 e 1965, o rubro-negro voltou a disputar um troféu no campeonato de 66.

Em 18 de dezembro de 1966, Flamengo e Bangu se enfrentavam pela última rodada do Campeonato Carioca, sendo as duas equipes as que aspiravam ao título. O Bangu, financiado nesta época pelo contraventor do jogo do bicho Euzébio de Andrade, ficara com o vice-campeonato em 1964 e 1965. Era um time forte: Ubirajara Motta, Fidélis, Mário Tito, Luiz Alberto e Ary Clemente; Jayme e Ocimar; Paulo Borges, Cabralzinho, Ladeira e Aladim, comandados pelo técnico argentino, e ex-jogador do Flamengo, Alfredo González.

A semana que antecedeu ao jogo foi bastante conturbada. Almir, o Pernambuquinho, dava declarações dizendo suspeitar de que o jogo seria manipulado, e que haveria gente do Flamengo participando da farsa. O pessoal do Bangu retrucou. E Almir ameaçou: “Uma coisa eu garanto, não verei o Bangu dar a volta olímpica”. O jogador do Flamengo alvo das manifestações de Almir era o goleiro Valdomiro, que já não vinha muito bem naquele ano, tendo inclusive perdido a posição para Franz na maior parte do campeonato. O Maracanã estava, como sempre, lotado naquele domingo: 144 mil pagantes. Logo de cara, Ocimar faz 1 a 0 para os banguenses. Ainda no primeiro tempo, Aladim ampliou. Na volta do intervalo, Paulo Borges sacramentou a vitória do Bangu.

Almir esperou a oportunidade surgir para evitar a volta olímpica alvirrubra. Aos 25 minutos do segundo tempo, Paulo Henrique e Ladeira se desentenderam. Almir partiu para cima do atacante do Bangu, que saiu correndo, só parando quando agredido pelo zagueiro rubro-negro Itamar, que pulou com os dois pés no peito do jogador do Bangu. Deu-se início a uma confusão generalizada. Almir agredia quem aparecia em sua frente. Brigou todo mundo. Depois de serenados os ânimos, o juiz Aírton Vieira de Morais expulsou cinco jogadores do Flamengo (Almir, Silva, Itamar, Paulo Henrique e Valdomiro) e quatro do Bangu (Ary Clemente, Ubirajara Motta, Luiz Alberto e Ladeira). Como o Flamengo ficaria com seis jogadores em campo, e a regra proíbe menos de sete, deu-se por encerrada a partida, sem que os vinte minutos finais fossem jogados. O título foi para Bangu e o Maracanã protagonizou um dos espetáculos mais lamentáveis de sua história. E não houve volta olímpica.

Mesmo em tempos de poucos títulos, o Flamengo não perdia sua grandeza. O clube seguia tendo uma capacidade diferenciada dos demais de atrair e mover multidões. E a inventar moda: 1967 foi o ano em que o melhor jogador do mundo vestiu a camisa do Flamengo. O atacante húngaro Florian Albert, do Ferencvaros, da Hungria, fora um dos grandes destaques da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. No final daquele ano de 1967, ele seria eleito o melhor jogador do ano pela revista francesa France Football. E em janeiro de 1967, em dois amistosos contra o Vasco, um na Gávea, e outro em General Severiano, Albert jogou com a camisa rubro-negra. Em 15 de janeiro, o Flamengo venceu o Vasco por 2 a 0 na Gávea. Três dias depois, perdeu por 2 a 0 em General Severiano, no campo do Botafogo. Em ambos os jogos Albert foi substituído no segundo tempo, sentindo o peso do forte calor. Embora, a presença do húngaro não tenha contagiado os cariocas – na primeira partida, na Gávea, somente 6,5 mil torcedores compareceram e na segunda, em General Severiano, foram só 4,5 mil pagantes – foi uma pitada a mais naquele eterno horizonte de tornar-se o maior clube do mundo. Afinal, eram poucos que poderiam se dar ao luxo de ver sua camisa vestida pelo melhor jogador do planeta.

Depois de toda a confusão daquele confronto na final contra o Bangu, o futebol rubro-negro precisou superar mais um daqueles momentos de tentativa de reestruturação forçada. No final de 1966, Silva trocou o Flamengo pelo Barcelona, da Espanha. Outro a sair no ataque foi César Lemos, o César Maluco, que trocou o rubro-negro pelo Palmeiras, onde jogou por muitos anos e tornou-se um grande ídolo. Se a troca feita por César foi um sucesso, a de Silva foi um fracasso. Sofreu com o racismo estrutural espanhol e acabou dispensado seis meses depois. Voltou ao Brasil para vestir a camisa do Santos, mas lá não conseguiu arrumar espaço na equipe de Pelé e Coutinho. Assim, voltou ao Flamengo para jogar pelo rubro-negro no ano de 1968. Mas o futebol jogado pelo Batuta na sua volta foi muito distinto daquele que tinha sido apresentado na sua primeira passagem.

O Flamengo andava mal. O ataque rubro-negro passou por um longo período de escassez. Buscando soluções, como parte da transação da ida de César para o Palmeiras, em 1967, o Flamengo acertou o empréstimo do atacante palmeirense Ademar Pantera, que tinha sido o artilheiro do Torneio Rio–São Paulo de 1965, mas vivia fase tumultuada no alviverde paulista. No Flamengo, foi um dos poucos a se salvar na catastrófica temporada de 1967, sendo o artilheiro do time naquele ano. Mas o Palmeiras o quis de volta ao término do contrato de empréstimo, e os gols voltaram a ficar escassos.

A campanha do Flamengo na temporada de 1967 foi horrenda. A equipe perdeu mais do que venceu na temporada, o que não ocorria desde 1933 (e que só ocorrera outras duas vezes antes, em 1929 e 1930). Da mesma forma que no saldo entre as vitórias e as derrotas do ano, o saldo de gols feitos e sofridos também ficou negativo. Isso jamais havia acontecido na história do Flamengo!

O fracasso na temporada de 1967 gerou muitos protestos da torcida na Gávea. Alguns deles de certa forma até um pouco mais ásperos, embora sem violência ou quebradeira. A diretoria prometeu voltar a dar um time digno das tradições do clube. Na véspera do Natal foi anunciada a contratação do zagueiro uruguaio Manicera, vindo do Nacional de Montevidéu, por quem fora vice-campeão da Libertadores de 1967, e que era titular absoluto da seleção de seu país, tendo disputado, como titular, a Copa do Mundo de 1966. No início do ano a segunda novidade, as voltas de Silva, depois de rápidas passagens por Barcelona e Santos, e César Lemos, voltando do empréstimo em troca-troca com o Palmeiras. Zaga reforçada, com Manicera, e ataque novo, com Silva, César e Fio para suprir os gols que Ademar Pantera fizera na temporada anterior. Para finalizar o pacote, o Flamengo contratou, ao Fluminense de Feira de Santana, da Bahia, o zagueiro Onça. Seria um ano melhor?

Os dias de penúria estavam longe do fim. O período de 1967 a 1971 foi um dos mais duros da história do Flamengo, só superado, muito anos depois, pelo período de 2002 a 2005. O ano de 1968 até começou parecendo que seria melhor. No Campeonato Carioca, o time começou jogando bem, mantendo-se na disputa da ponta junto a Botafogo e Vasco. Da metade do segundo turno em diante, viu o total distanciamento do time do Botafogo na tabela, que foi quem acabou conquistando o bicampeonato.

Uma bem sucedida excursão pelo exterior deu esperanças à torcida. Mas, foi em vão. A primeira parada foi em Barcelona, para a disputa do Troféu Juan Camper. Vitória de 1 a 0 sobre o Athletic Bilbao, com um golaço de bicicleta de Silva, e uma partida memorável na final contra o Barcelona, que o Flamengo venceu por 5 a 4. Depois o time disputou o Troféu Tereza Herrera, em La Coruña, caindo diante do Racing, da Argentina, campeão da Libertadores e do Mundial Interclubes. Parada seguinte em Marrocos, para a disputa de um quadrangular, cuja final foi contra o mesmo Racing. Desta vez o Flamengo não vacilou e venceu os campeões mundiais por 3 a 2, levantando a taça.

Em seguida veio a Taça Guanabara, na qual o Flamengo venceu os quatro jogos iniciais. Daí empatou com o Botafogo e perdeu para o Bonsucesso dentro do Maracanã. Na última rodada, o Flamengo jogava por um empate contra o Bonsuça no Maracanã, estádio lotado. O Botafogo, acreditando que a parada já estava resolvida, saiu em excursão à Europa. Foi traumático. O time rubro-negro ficou 80% do tempo de jogo no campo do adversário. A bola não entrava. Finalizou inúmeras vezes e a bola não entrava. O Bonsucesso deu dois ataques no jogo inteiro, e fez dois gols. A derrota por 2 a 0 forçou a interrupção da viagem alvinegra pelo Velho Continente. Flamengo e Botafogo terminaram com nove pontos. O regulamento previa que os dois primeiros fizessem a final, na qual o Botafogo goleou o Flamengo por 4 a 1. Eram dias que pareciam ser de sofrimento sem fim.

No início do segundo semestre, Manicera se lesionou e ficou a maior parte do tempo fora da equipe, e César Lemos, que estivera todo o ano de 1967 emprestado ao Palmeiras, acertou sua transferência definitiva para o Parque Antarctica, onde, anos depois, conquistaria o bicampeonato brasileiro de 1972/73, na academia comandada por Ademir da Guia. Ele ainda jogaria no Corinthians entre 1975 e 1976. Depois da saída de César, o ataque perdeu rendimento, e sem Manicera, a defesa ficou muito mais vulnerável. A campanha no Torneio Roberto Gomes Pedrosa, no segundo semestre, foi à altura do pífio desempenho do ano anterior.

O torneio representava o primeiro esforço de realização de um campeonato verdadeiramente nacional. Depois do fiasco que foi o Torneio Rio–São Paulo de 66, interrompido pela metade quando seis times dividiam a liderança, o futebol brasileiro passou por uma profunda mudança. Em 1967, houve a realização do primeiro Roberto Gomes Pedrosa, ou Taça de Prata, como foi chamado durante algum tempo.

Desde o início do século, cada estado do Brasil tinha seu próprio campeonato, sendo o Campeonato Paulista e o Campeonato Carioca os mais expressivos. De 1950 a 1966 disputou-se o Torneio Rio–São Paulo, reunindo, a cada ano, as dez equipes mais fortes entre as cariocas e as paulistas. Como este era o eixo político-econômico do Brasil, era quase como se representasse o campeão nacional. Em 1959, criou-se a Taça Brasil, reunindo os campeões regionais em chaves eliminatórias, num torneio curto, no qual o campeão realizava não mais do que seis jogos. Somente em 1967 partiu-se para a criação de um embrião daquilo que seria o Campeonato Brasileiro, criado apenas em 1971.

Em 1967, foram reunidas quinze equipes dos cinco estados mais fortes no futebol – São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná – na disputa do Torneio Roberto Gomes Pedrosa. O modelo de disputa era fechado, assim como no Campeonato Carioca e no Rio-São Paulo. A disputa reunia os cinco times de São Paulo que sempre jogavam o Rio–São Paulo (Santos, Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Portuguesa); os cinco primeiros colocados do Carioca (Bangu, Flamengo, Botafogo, Vasco e Fluminense); os dois mais tradicionais de Belo Horizonte (Atlético Mineiro e Cruzeiro) e de Porto Alegre (Internacional e Grêmio); e um representante paranaense, que naquela edição foi o já extinto Ferroviário. Na 2ª edição, em 1968, o Atlético Paranaense foi o representante do Paraná (os outros quatorze foram os mesmos), e foram inseridas duas equipes do Nordeste: Bahia e Náutico. Em 1969, repetiu-se a fórmula, mas com América, Coritiba e Santa Cruz substituindo Bangu, Atlético-PR e Náutico. Em 1970, a Ponte Preta ocupou lugar deixado pela Portuguesa de Desportos.

O Brasil do final dos anos 60 fervia. Eram movimentos contra à ditadura militar e um caldeirão cultural produzindo a Bossa Nova e o Tropicalismo. Tempos de uma constante exaltação à pátria, emergia um nacionalismo marrom, mestiço e sem classe social. Um dos símbolos deste momento de reconstrução da identidade foi a canção País Tropical, sucesso de 1969, feita por um cantor e compositor que naqueles tempos era Jorge Ben, e mais tarde, já nos anos 90, passou a se chamar Jorge Ben Jor. Diz a letra: “Moro, num país tropical/ Abençoado por Deus/ E bonito por natureza, Mas que beleza!/ Em fevereiro, tem carnaval/ Eu tenho um Fusca e um violão/ Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza/ ‘Sambaby’, ‘Sambaby’/ Sou um menino de mentalidade mediana, pois é/ Mas assim mesmo, feliz da vida pois eu não devo nada a ninguém, pois é/ Pois eu sou feliz, muito feliz, comigo mesmo”. E lá estava mais uma vez o Flamengo, metido no meio do processo de construção de uma identidade nacional e de contestação dos valores sociais herdados da sociedade colonial.

Também em 1969 explodiu o sucesso “Aquele abraço”, composta e cantada pelo baiano Gilberto Gil, torcedor do Fluminense, e depois regravada e novamente um novo sucesso na voz de Tim Maia, já em 1977. Canta a letra: “O Rio de Janeiro continua lindo/ O Rio de Janeiro continua sendo/ O Rio de Janeiro, fevereiro e março/ Alô, alô Realengo, aquele abraço/ Alô torcida do Flamengo, aquele abraço/ Alô moça da favela, aquele abraço/ Todo mês de fevereiro, aquele passo/ Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço/ Quem sabe de mim sou eu/ Aquele abraço”.

O samba era uma exaltação à Cidade Maravilhosa, que, à voz de Gil, apesar de ter deixado de ser capital federal continuava bela, vigorosa e ainda forte o suficiente para fazer nascer em suas ruas a bossa nova, e para seguir atraindo o mundo. O Rio de Janeiro continuava lindo e continuava sendo. A torcida do Flamengo era a grande paixão do berço do samba e da bossa nova. Frank Sinatra cantava as melodias cariocas de Tom Jobim. O Rio era a identidade do Brasil com o mundo. Muitos queriam fazer parte desta identidade. O Flamengo era a cara do Rio.

Mas o futebol rubro-negro seguia enrolado e fraquejado. Para a temporada de 1969, chegou um novo pacote de reforços, com o goleiro argentino Dominguez, o atacante argentino Doval, contratado ao San Lorenzo, e o também atacante Bianchini, que havia brilhado no Bangu e no Botafogo, e estava no Vasco. Naquele campeonato, o clube tinha novamente quatro estrangeiros na equipe, numa explícita tentativa de reeditar o sucesso dos anos 40/50: Dominguez, Manicera, Reyes e Doval.

Mas a maior aposta naquela temporada, entretanto, foi no já veterano Garrincha, que depois de uma passagem razoável pelo Corinthians, onde já se mostrava longe de seus áureos tempos no Botafogo e na seleção brasileira, chegava para alimentar o ataque rubro-negro com seus dribles desconcertantes. Mas Garrincha já chegava com 36 anos, sob boatos de alcoolismo, e com os joelhos desgastados por várias lesões. Ele figurou no Flamengo durante aquela temporada, que seria sua única no clube. Em 1970, ele se transferiu para o Olaria, onde encerraria a carreira.

Garrincha não era o único veterano entre os contratados. O goleiro argentino Rogelio Dominguez chegou à Gávea já com 37 anos. Ele havia feito história como titular do poderoso time do Real Madrid, várias vezes campeão da Copa dos Campeões da Europa. Lá jogou ao lado do zagueiro Santamaría e de atacantes como Di Stéfano, Puskas e Kopa. Dominguez começou sua carreira no Racing, nos anos 50. Foi titular do Real Madrid, da Espanha, de 1958 a 1961. Daí voltou à Argentina, onde defendeu a River Plate e Vélez Sarsfield. Passou pelo futebol uruguaio, tendo defendido o Cerro e o Nacional de Montevidéu, antes de chegar ao Flamengo. Ele ficou apenas seis meses no clube, tendo causado polêmica ao ser expulso de campo logo no começo de um Fla-Flu no Campeonato Carioca daquele ano. O fato levantou a suspeita de que ele teria se vendido ao tricolor naquela partida, vencida pelo Fluminense por 3 a 2.

Sem sucesso em campo com a sua trupe de veteranos, o Flamengo saiu excursionando pelas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, chegando ainda a fazer três partidas no Suriname. Uma excursão insólita, na qual o Flamengo conseguiu ser derrotado pelo Anápolis, de Goiás, e pelo modesto Transvaal, do Suriname, e na qual venceu duas vezes no Suriname a uma equipe local chamada Robin Hood.

Neste giro, Garrincha fez seus quatro únicos gols com a camisa do Flamengo. O primeiro na abertura da temporada, sobre o América, em amistoso no estádio de Caio Martins. Depois marcou mais três vezes, sobre o Fast, do Amazonas, o Paysandu, no Pará, e o ABC, no Rio Grande do Norte. Na volta, pelo Campeonato Carioca de 1969, Garrincha jogou somente quatro partidas e encerrou sua aventura em vermelho e preto.

A campanha no segundo semestre de 1969 também não foi boa. O Flamengo passou por um momento muito difícil no triênio 1967-68-69. No Torneio Roberto Gomes Pedrosa daquele ano sofreu três goleadas por 4 a 1, para Fluminense, Santos e São Paulo. Com um ataque improdutivo e uma defesa vacilante, eram escassos os bons resultados. Foi o ápice de um período ruim numa era de escassez de conquistas. De 1956 a 1971, num intervalo, portanto, de quinze anos, o Flamengo venceu apenas quatro campeonatos: os Cariocas de 1963 e 1965, o Rio–São Paulo de 1961 e a Taça Guanabara de 1970 (lembrando que nestes tempos a Taça GB era um campeonato independente, não o primeiro turno do Campeonato Carioca, como passou a ser depois).

Mas em tempos escassos para o futebol rubro-negro, sem que seu torcedor soubesse, o universo já conspirava para transformar os dias do time vermelho e preto na direção de momentos mais gloriosos. Não era possível se prever ainda que os dois maiores ídolos da história do Flamengo já andavam refinando suas técnicas em outros campos, começando a desenvolver as habilidades de dois garotos que, em extremos opostos da cidade, aprendiam a ganhar mais intimidade com uma bola de futebol. Um nas areias da praia, e outro em quadras apertadas de salão.

Os campeonatos de futebol de areia no Rio de Janeiro moviam nesses tempos um grande público para a praia de Copacabana. Os campeonatos eram bem organizados e os jogos costumavam ser disputados nas tardes de sábado. O público se aglomerava para ver as partidas no calçadão e no entorno da cancha. Times como o Areia, o Dínamo e o Juventus eram os mais badalados e disputavam a simpatia dos fiéis torcedores que iam à praia ver as acirradas disputas. As vagas entre os titulares destas equipes eram bastante disputadas. Só aqueles com refinada habilidade conseguiam um lugar nestes times. E não era qualquer técnica. É muito diferente jogar futebol na areia, exige muito mais resistência muscular, é uma disputa com muito mais contato físico e precisa-se estar acostumado a conduzir a bola num piso que oferece muito mais resistência e atrito, exigindo um menor contato entre a pelota e o chão. Foi nestes jogos na praia, sob a camisa do Juventus, que se avistou o talento do garoto Leovegildo Lins da Gama Júnior. Para alguns era o Léo, para a história do futebol mundial o Júnior, lateral-esquerdo da seleção brasileira na Copa de 1982. Ele foi levado para treinar na Gávea e de lá só foi sair muitos anos depois, quando brilhou nos gramados italianos com as camisas de Torino e Pescara.

No outro extremo do Rio de Janeiro, e por outro esporte também derivado do futebol, nascia mais uma estrela a brilhar pela constelação vermelha e preta. Só que esta não era qualquer estrela, era a maior delas. O refinamento de sua habilidade para o futebol se deu nas estreitas quadras do futebol de salão, esporte cujo principal reduto na cidade, naqueles tempos, era a Zona Norte. Depois de se destacar nas peladas de rua em seu bairro natal, Quintino, o garoto Arthurzico foi levado para o River Futebol Clube, do bairro da Piedade, onde treinou e jogou por três anos. Arthur Antunes Coimbra, o Zico, era irmão de dois ex-jogadores de futebol, e sua técnica, logo cedo, chamou a atenção dos que o viram jogar amadoramente.

O futebol de salão é uma atividade que exige agilidade e velocidade. A quadra rápida – que naqueles tempos tinha piso de tábua de madeira corrida – com uma bola pequena e pesada, que pouco quicava, exigia rapidez de raciocínio, toques rápidos para se acertar os passes, e dribles curtos, para se desvencilhar dos marcadores adversários. O Rio de Janeiro foi pioneiro na realização de campeonatos de futebol de salão. Embora o Rio Grande do Sul e São Paulo tenham os primeiros registros da prática do esporte, criado pela Associação Cristã de Moços (ACM), a primeira competição oficial registrada foi o Campeonato Carioca organizado em 1956. Durante as vinte primeiras edições do torneio a maioria dos títulos foi parar em clubes da Zona Norte, os quais se destacavam por amplos quadros sociais. Dentre os campeões nestes tempos, destacaram-se: América, Vila Isabel, Grajaú Tênis Clube, Grajaú Country Clube, Club Municipal e Monte Sinai (estes dois da Tijuca), Imperial (de Madureira) e Mackenzie (do Méier). O River, da Piedade, brigava no segundo escalão. De suas quadras para os gramados da Gávea saiu Zico, o maior ídolo da história do clube.

O Flamengo sempre teve um histórico de grande produção de pratas da casa. Os anos 70-80 seriam marcados pelo ápice da geração de talentos nas divisões de base do clube, com o nascimento do lema “Craque, o Flamengo faz em casa”.

Entretanto, nem todas as crias da Gávea reluziram em vermelho e preto, sempre houve casos de jogadores revelados nas divisões de base do clube que acabaram fazendo história com outras camisas. Gérson foi o primeiro grande exemplo, embora o Flamengo o tenha desfrutado por cinco anos (1959-1963), ele fez história mesmo foi com as camisas de Botafogo (1964-1970), São Paulo (1971/72), e Fluminense (1973/74). Também foi o caso de César Lemos, centroavante do Flamengo de 1965 a 1968, e um dos maiores goleadores da história do Palmeiras de 1969 a 1974, por quem venceu os campeonatos brasileiros de 1972 e 1973. Outro caso foi Mário Sérgio, que jogou apenas cinco vezes pelo Flamengo na temporada de 1970, construindo sua história com as camisas de Vitória, da Bahia, Internacional, Grêmio e Corinthians. Mas a geração que estava por vir, esta sim, foi muito bem aproveitada. Porém, no início da década a realidade ainda era outra.

Dentre os que faziam parte do time na temporada de 69, Carlinhos se aposentou e Manicera trocou o Flamengo pelo Cerro, do Uruguai. Reyes, então, por fim se firmou como titular. Ainda emergiu das divisões de base o meia Zanata, que despontou muito bem naquele ano, mas acabou, a partir de 1972, na reserva. O time começou o ano muito bem, nas treze primeiras partidas do ano, venceu dez e empatou três, conquistando o Quadrangular de Verão no Maracanã, no qual venceu a seleção da Romênia, o Independiente, da Argentina, e o Vasco. Em seguida, conquistou a Taça Guanabara, que ainda era um torneio independente do Campeonato Carioca. As duas primeiras derrotas do ano só vieram a ocorrer nas quarta e quinta rodadas, ambas no Maracanã, e ambas por 1 a 0, para América e Bonsucesso. Ainda assim, o Flamengo se recuperou e conquistou o troféu da Taça Guanabara pela primeira vez em sua história.

O resto do ano não foi muito bom. Mas foi uma temporada em que aconteceu de tudo. Numa partida no estádio Luso-Brasileiro, na Ilha do Governador, pela última rodada do Campeonato Carioca, o Flamengo vencia o Madureira por 1 a 0, quando aconteceu algo raríssimo no futebol: Ubirajara Alcântara, goleiro rubro-negro, repôs a bola em jogo com um chutão para frente. Ventava muito. A bola atravessou o campo e pegou o goleiro adversário adiantado e desprevenido. A bola quicou na entrada da grande área e encobriu o arqueiro. Foi o segundo gol daquele jogo, pondo números finais à partida; e o primeiro gol de goleiro da história rubro-negra.

Para a temporada de 1971, o Flamengo se reforçou com o atacante Roberto Miranda, reserva na Copa de 1970. Buscando reformular seu ataque, emprestou Doval para o Huracán, da Argentina, por um ano, dando espaço para o jovem Caio Cambalhota, irmão de César Lemos. A opção de ataque não deu certo. Desde 1933, na era amadora, o Flamengo não fazia tão poucos gols em um ano (e jogou muito mais vezes do que fazia nos tempos do amadorismo). Foi a pior média de gols de sua história: apenas 1,07 por jogo. Fio, artilheiro na temporada, fez só doze gols durante todo aquele ano.

O desempenho só não foi ainda pior porque a defesa, capitaneada pelo paraguaio Reyes, salvava a retaguarda. As médias de gols sofridos por jogo nas temporadas de 1970 e de 1971 foram as melhores já obtidas pelo Flamengo até então. Por isso, Reyes passou a ser idolatrado e tido como um dos maiores zagueiros que vestiram a camisa rubro-negra.

A estratégia de apostar na garotada das divisões de base não deu certo no começo, mas logo gerou seus frutos, ainda que o resultado só viesse a ser visto muitos anos depois. Subiram para o time principal, no segundo semestre, para a disputa do primeiro Campeonato Brasileiro, os garotos Zico, Júnior e Rondinelli. Fato curioso e quase esquecido é que o primeiro gol do Flamengo em Campeonatos Brasileiros foi feito na segunda rodada do campeonato daquele ano, sobre o Bahia, na Fonte Nova, num empate por 1 a 1 (na estreia, o time fora derrotado por 1 a 0 pelo Sport Recife, na Ilha do Retiro). O autor desse gol foi um garoto franzino e aloirado, de 18 anos, que fazia apenas a sua quarta partida no time profissional: Zico.

Neste ano, por causa do atacante Fio, a música e o futebol voltaram a se encontrar e gerar um sucesso nas paradas das rádios. Uma música composta e cantada por Jorge Ben explodiu como o maior sucesso do ano no país. Mais uma exaltação, esta indireta, ao Flamengo. Ela descrevia um gol marcado sobre o Benfica, em amistoso no Maracanã, em 15 de janeiro de 1972, no qual o rubro-negro saiu vitorioso por 1 a 0. Dizia a letra da canção Fio Maravilha: “E novamente ele chegou com inspiração/ Com muito amor, com emoção, com explosão em gol/ Sacudindo a torcida aos 33 minutos do segundo tempo, depois de fazer uma jogada celestial em gol/ Tabelou, driblou dois zagueiros, deu um toque driblou o goleiro/ Só não entrou com bola e tudo porque teve humildade em gol/ Foi um gol de classe, onde ele mostrou sua malícia e sua raça/ Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa, e a galera agradecida se encantava/ Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa, e a galera agradecida assim cantava:/ Fio Maravilha, nós gostamos de você/ Fio Maravilha faz mais um pra gente ver”.

Embalada pela melodia dos dribles de Fio, a geração dos anos 70 começava a desabrochar em busca de mais liberdade de expressão, de maior ousadia sexual. Mais do que nunca o espírito contestador e abusado da juventude reluzia na sociedade. Com dinheiro no bolso, por conta do mais longo e mais intenso período de crescimento da economia do país, a rapaziada reluzia o carro novo, a namorada com o belo corpo a mostra nas praias e o orgulho pelo time de coração guardado para reluzir nas tardes de domingo no Maracanã.

Em cada esquina, em cada praia, em cada botequim, em cada passeio no parque, vivia-se a intensidade de ser Flamengo. Em todos os lados se encontrava um flamenguista ou outro para ser feito de desconhecido íntimo. O domingo era dia sagrado para o futebol. Mas antes, uma passada por Copacabana para ver o desfile das menininhas formosas, bem encaixadinhas em seus biquínis. Só depois de cumprida tal doce rotina, podia-se, então, enfim, desfrutar, de bandeira em punho, a ansiedade à espera do gol nas arquibancadas do estádio. Lamentos só pela aproximação da segunda-feira, que os empurraria a mais um dia de trabalho.

O Rio de Janeiro era uma cidade agitada, mas boa de se viver. O carioca desfrutava as vantagens de morar numa cidade para onde as pessoas iam passar suas férias. E com um diferencial, o de poder desfrutá-la o ano inteiro, explorando cada cantinho de maravilha de sua natureza. Nos anos 60 ainda se podia ir à praia na Barra da Tijuca e, na volta, parar e subir em coqueiros-anões para arrancar cocos, quebrá-los com pedras pontiagudas para beber a água doce ali, direto na fonte da mãe natureza, fresquinha, com a água do coco escorrendo pelas bochechas, pelo pescoço e pelo peito. Ê vida que era boa. Para o rubro-negro, só não era melhor porque estava faltando chegar a títulos de novo. Desde 1965, a torcida não comemorava para valer a conquista de um campeonato.

Para a temporada de 1972, o Flamengo teve a volta de Doval, que estava emprestado ao Huracán, e foi feita uma grande aposta sobre o craque de um rival, com a contratação de Paulo César Caju, do Botafogo. Ele havia despontado no alvinegro na segunda metade dos anos 60, numa linha de ataque fortíssima com Jairzinho, Gérson, Roberto Miranda e Paulo César, tendo estado os quatro no México, na Copa do Mundo de 1970. E ele foi o carro-chefe na equipe que, depois de seis anos, voltou a conquistar um título carioca. O ano se anunciou bom para o Flamengo logo no início, com a conquista do 2º Torneio Internacional de Verão, no Rio de Janeiro, e do 2º Torneio do Povo, que reunia Flamengo, Corinthians, Internacional, Atlético Mineiro e Bahia. Era o sinal de que bons resultados estavam por vir. A engrenagem da equipe estava se acertando. Na sequência, veio a conquista da Taça Guanabara, na primeira vez em que esta foi disputada como sendo o primeiro turno do Campeonato Carioca. O título foi conquistado em grande estilo, com goleada de 5 a 2 sobre o Fluminense.

O alto investimento deu frutos. Este Flamengo, nos primeiros oito meses do ano, levantou quatro troféus. Em 46 partidas, venceu 26, empatou dezesseis e perdeu apenas quatro. O Flamengo estava maduro para voltar a seus grandes dias e encerrar de vez o período mais escasso em títulos de sua história.

A disputa entre os quatro grandes clubes do Rio de Janeiro era muito acirrada até esses dias. A contagem dos títulos cariocas mostrava: na era amadora, entre 1906 e 1936, o Fluminense havia vencido dez vezes o campeonato, o Botafogo oito, o Flamengo e o América seis, o Vasco cinco, e Bangu, São Cristóvão e Paissandu uma vez cada. Na melhor fase dos primeiros cinquenta anos de história do futebol do Flamengo, entre 1937 e 1955, o Flamengo venceu sete vezes, o Fluminense seis, o Vasco cinco e o Botafogo uma. Na pior fase da história rubro-negra, de 1956 a 1971, o Botafogo venceu cinco campeonatos, o Fluminense quatro, o Vasco três, o Flamengo dois, e América e Bangu uma vez cada.

O ano de 1962 é simbólico na medição do quão acirrada era a disputa. Com o título conquistado pelo Botafogo naquele ano, o futebol carioca ficou com o momento mais pareio em termos de levantamento de taças de sua história, o Fluminense acumulava dezesseis títulos do Campeonato Carioca, o Flamengo tinha treze, o Vasco doze e o Botafogo onze. Levando-se em consideração que o tricolor das Laranjeiras fora campeão das três primeiras edições, em 1906, 1908 e 1909, no período de 1910 a 1962, Fla e Flu conquistaram treze vezes cada um, seguidos de pertinho pelo Vasco com doze e o Botafogo com onze. A disputa era niveladíssima!

Daí para frente muita coisa começou a mudar no futebol brasileiro e no futebol carioca, mudanças muito rápidas, reflexo do próprio amadurecimento do Brasil como país e como economia. Dos anos 70 em diante, a troca de clubes pelos jogadores começou a se tornar uma constante maior. Nestas cirandas, surgiu o primeiro caso de um jogador que vestiu as camisas dos quatro grandes clubes do Rio de Janeiro, e foi justamente Paulo César Caju. Muitos já haviam rodado por três dos quatro grandes. Nos anos 40, apareceu o primeiro caso de um jogador que vestiu três camisas rivais, o atacante Perácio jogou por Botafogo (1937-1940), Flamengo (1941-1945) e Fluminense (1946-1948). Gérson, o Canhota de Ouro, campeão do mundo em 1970, jogou por Flamengo (1960-1963), Botafogo (1964-1970) e Fluminense (1973/74). O atacante Bianchini, depois de um brilhante começo de carreira no Bangu, passou por Botafogo (1966), Vasco (1967/68) e Flamengo (1969).

Dois jogadores titulares na Copa do Mundo de 1970 também entraram nesta ciranda: o capitão e lateral-direito Carlos Alberto jogou por Fluminense (1963/64), Botafogo (1971), novamente no Flu (1976) e Flamengo (1977). O zagueiro Brito jogou de 1958 a 1969 no Vasco, no Flamengo em 1970 e no Botafogo de 1971 a 1974. Outros casos: o zagueiro Abel Braga jogou por Fluminense (1968-1975), Vasco (1976/77) e Botafogo (1982-1984), o ponta-esquerda Dirceu, destaque do Brasil nas Copas de 1974 e 1978, jogou por Botafogo (1973-1976), Fluminense (1976) e Vasco (1977 e, novamente, em 1988), Zanata, meia-armador, jogou por Flamengo (1970-1973), Vasco (1974/75) e Botafogo (1976), e Zé Mário, também meia-armador, jogou por Flamengo (1971-1974), Fluminense (1975) e Vasco (1976-1979). O futebol cada vez mais se mercantilizava.

O primeiro a vestir as quatro foi Paulo César. Destacou-se no Botafogo, onde começou a carreira, e por quem brilhou de 1968 a 1971. Em 1972, foi contratado pelo Flamengo, onde ficou até 1974, quando se transferiu para o Olimpique de Marselha, da França. Em 1975, voltou ao Brasil para defender o Fluminense, onde permaneceu até 1977. Para fechar o quarteto, jogou no Vasco em 1979. Não tardou a outro jogador também fazer a ciranda das quatro camisas: Cláudio Adão. Ele chegou ao Flamengo, contratado ao Santos, e nele esteve de 1977 a 1980. Foi para o Fluminense em 1980, e depois de uma rápida passagem esteve no Vasco entre 1981 e 1982. Daí foi para o Botafogo, onde jogou entre 1983 e 1984. Já tendo vestido as camisas dos quatro grandes, ainda achou espaço para se destacar no Bangu entre 1984 e 1985. Voltou ao Botafogo em 1988 e, nos anos 90, ainda vestiu, no Rio de Janeiro, as camisas de Campo Grande e Volta Redonda. Sete camisas só no Rio, um recorde de um cigano da bola, que vestiu a camisa de mais de vinte clubes diferentes em sua carreira.

Mas não foram os ciganos da bola que viraram mitos, muito pelo contrário, mitos foram aqueles que defenderam por muitos anos a mesma camisa. E dentre muitos mitos, o maior: a partir de 1973, Zico tomou para ele a posição de titular absoluto do time do Flamengo. Ele estava com 20 anos naquela temporada. Somente na temporada de 1984, onze anos depois, a torcida veria o Flamengo sem Zico como titular, quando ele se transferiu para a Udinese, da Itália, onde jogou por duas temporadas. Em 1973, para conquistar a vaga, ele deixou Zanata e Zé Mário no banco, praticamente encerrando a relação dos dois com o Flamengo, tendo o primeiro se transferido para o Vasco e o segundo para o Fluminense.

Só que o primeiro ano tendo Zico como titular não foi um ano bom nos resultados obtidos. O Flamengo até conseguiu faturar o bicampeonato da Taça Guanabara, mas perdeu o título carioca para o Fluminense. Depois fez uma campanha muito ruim no Campeonato Brasileiro, mesmo com uma linha de frente que tinha Zico, Doval, Dadá Maravilha e Paulo César Caju. O time ficou sem vencer entre 3 de outubro e 11 de novembro. Neste intervalo, em sete partidas do Campeonato Nacional, perdeu seis e empatou uma: derrotado por 2 a 0 para o Palmeiras no Maracanã, por 3 a 0 para a Portuguesa no Pacaembu, por 1 a 0 para a Desportiva – do Espírito Santo – em Vitória, por 2 a 1 para o Remo em Belém, por 2 a 1 para o Grêmio no Maracanã, empatando por 0 a 0 com o Vitória na Fonte Nova, e perdendo por 1 a 0 para o Atlético Paranaense no estádio Belfort Duarte, em Curitiba. Quebrou a série negativa com uma vitória de 1 a 0 sobre o Figueirense, em Florianópolis. Esta sequência negativa superou a pior do Flamengo até então, que era de seis derrotas consecutivas em 1954.

Os agonizantes anos vividos pelo Flamengo entre 1967 e 1973 foram longos, mas o clube conseguiu superar estes sete difíceis anos antes que eles fossem capazes de deixar marcas mais profundas. Como canta o samba composto por Adílson Bispo e Zé Roberto e que estourou como sucesso na voz de Almir Guineto: “deixe de lado este baixo astral, erga a cabeça e enfrente o mal, que agindo assim será vital para o seu coração. Em cada experiência se aprende uma lição. Tem que lutar, não se abater”. E como sempre em sua história, o vermelho e o preto se levantaram, sacudiram a poeira e deram a volta por cima. O rubro-negro levantou-se sem se abater, porque seguiu sempre lutando. Sempre esteve presente o eterno espírito de sua raiz jovial, sempre disposto a recomeçar a andar, porque a cabeça não aguentaria se fosse parar. Passada a tormenta, o que estava por vir em sua história seria a recompensa para todo e qualquer esforço e superação. Estava prestes a se iniciar a fase mais próspera da história do Clube de Regatas do Flamengo.




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