segunda-feira, 16 de maio de 2022

A NAÇÃO (2ª edição) - Capítulo III: A consolidação do mais querido (1936-1955)


A NAÇÃO

Como e por que o Flamengo se tornou

o clube com a maior torcida do Brasil



Capítulo III – A consolidação do mais querido (1936-1955)


O final dos anos 30 e o início dos anos 40 são cruciais para a compreensão daquilo que transformou a paixão pelo Flamengo em um fenômeno de dimensão nacional. Um dos pontos centrais girou em torno do maior avanço de telecomunicações que a humanidade conseguira produzir até então: o rádio. Embora as primeiras transmissões de rádio no Brasil tivessem ocorrido nos anos 20, só nos anos 30 o aparelho de rádio se disseminou socialmente nas residências. Em 1936, foi inaugurada a rádio Nacional, no Rio de Janeiro, transmitindo seus sinais, direto da capital federal, para os quatro cantos do Brasil. As novelas de rádio, a música brasileira e as transmissões de futebol viraram mania e mudaram completamente os costumes, de norte a sul, do leste ao oeste. Nasceram verdadeiras obsessões públicas, como o Programa César de Alencar, e a paixão pelas vozes de cantores como Silvio Caldas, Marlene, Emilinha Borba e Carlos Galhardo; surgiram grandes fã-clubes e estouraram como sucesso os programas de auditório. A rádio Nacional foi a grande tribuna para o contato com o povo brasileiro, e foi a plataforma de consagração definitiva do futebol. O universo masculino viajava com a imaginação durante as transmissões das partidas, que se espalhavam pelas ondas do rádio para todos os rincões do território brasileiro. O espírito festeiro daquela turma do Flamengo, que festejava como nenhuma outra, com suas músicas de fanfarra e batucada que não se calavam um único momento durante as partidas, comemorando carnavalescamente suas vitórias retumbantes, cativava espíritos e forjava sentimentos, fazendo a gente de todas as partes também querer ser parte daquele jubilo de grandeza coletiva do sentimento de nação que desabrochava no brasileiro.

O Brasil ingressava num novo projeto de grandeza. Assim como após a Proclamação da República, o Rio de Janeiro, a capital federal, era mais uma vez o palco para a construção da grandeza nacional. Com o advento da modernidade – entre 1892 e 1913 – cuja inovação foi marcada por grandes obras e monumentos, a preocupação já não era mais a arquitetônica, mas a construção do orgulho e da autoestima. O Rio de Janeiro era o epicentro deste gigantismo nacional. Tanto que, no início dos anos 40, a política da boa vizinhança dos Estados Unidos, por conta da Segunda Guerra Mundial, levou o multimilionário norte-americano Nelson Rockefeller a encomendar um personagem brasileiro a Walt Disney, que em 1934 havia ficado mundialmente conhecido pela criação dos personagens Mickey Mouse e Pato Donald. Disney buscará justamente exaltar o bom malandro, criando um papagaio, batizado como Zé Carioca.

Neste mesmo momento explodiu Carmen Miranda como sucesso máximo na Broadway, cantando em português e acompanhada pelo batuque do samba. Com seu chapéu carregado de bananas, um rebolado que só a baiana tem e um carisma tipicamente brasileiro, ela encanta o espírito frio da América do Norte. O Brasil sentia-se orgulhoso, parecia ter superado seu complexo de inferioridade. Já se orgulhara de ter tido o primeiro cardeal latino-americano da Igreja Católica, dom Arcoverde, goiano de nascimento, eleito pelo consistório de Roma em dezembro de 1905. Teve razões para orgulhar-se do gaúcho Oswaldo Aranha, ex-aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro, ex-governador do Rio Grande do Sul, ex-ministro da Justiça, ex-ministro da Fazenda, ex-ministro de Relações Exteriores, e que presidiu, em 1947, a 2ª Assembleia Geral da recém-criada Organização das Nações Unidas – ONU, na qual foi criado o Estado de Israel.

O Brasil também se sentiu vencedor da Segunda Guerra Mundial, afinal o exército brasileiro confrontou-se e venceu tropas do exército da Alemanha e da Itália na batalha de Monte Castello, em solo italiano. A batalha durou três meses, entre dezembro de 1944 e fevereiro de 1945. As tropas aliadas tiveram a presença majoritária de soldados brasileiros e ocorreram sob as ordens brasileiras do comandante Mascarenhas de Morais. Em abril, novo embate entre o exército brasileiro e as forças nazifascistas, na batalha de Montese, com o exército do Brasil novamente logrando vantagem. Episódios relativamente pequenos na dimensão daquela guerra, que tomava todo o continente europeu, mas razões inquestionáveis para um orgulho nacional imenso. A rádio Nacional difundia estes sonhos e este orgulho nascente, e em meio a este projeto de grandeza, crescia o Flamengo.

Os rubro-negros não venciam um Campeonato Carioca desde 1927. Houve grandes investimentos em 1936, com a contratação de Domingos da Guia, Fausto dos Santos e Leônidas da Silva. E não foi só, em suas aspirações de grandiosidade, o clube foi buscar um centroavante na Europa, importando Fritz Engel para trazer uma novidade aos campos do país. O Flamengo não foi campeão carioca naquele ano, mas venceu o Torneio Aberto – que reuniu equipes da Guanabara (da Liga Carioca de Futebol), do antigo Estado do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O Torneio Aberto foi, inclusive, o mais longo que o time rubro-negro disputou no ano, tendo sido jogado entre abril a setembro, enquanto o Campeonato Carioca foi realizado entre outubro e dezembro. O Flamengo foi campeão com uma vitória por 1 a 0 sobre o Fluminense, no dia 20 de setembro, em partida jogada nas Laranjeiras.

Mas quem teve um desempenho impressionante em sua primeira temporada pelo Flamengo foi Leônidas, levando-o a cair imediatamente nas graças da torcida. Em apenas três meses de 1936 (ele estreou na metade de setembro) ele marcou 23 gols com a camisa rubro-negra, tornando-se vice-artilheiro do clube no ano inteiro. E num momento em que o time tinha outro grande goleador, pois neste ano o centroavante Alfredo fez 45 gols, a maior marca até então de um jogador do Flamengo em um único ano, superando ao ídolo Nonô, que em 1925 havia feito 30 gols (em 1934 e 1935, Alfredinho já havia chegado perto de superar esta marca, com 28 gols em cada uma destas duas temporadas).

Alfredo foi o segundo jogador a superar a marca de cem gols com a camisa do Flamengo (Nonô tinha feito 123 entre 1921 e 1929). Mas o ídolo que chegou para vestir a camisa rubro-negra naquele ano superaria todos os seus antecessores. Leônidas se tornou celebridade no Rio de Janeiro. Não é exagero dizer que ele foi o primeiro jogador de futebol a ganhar status de celebridade no Brasil. Ainda que Friedenreich já tivesse sido deveras exaltado, Leônidas viveu dias explícitos de tietagem que nenhum futebolista vivenciara no país até então. Desde os primórdios, tudo que acontecia em vermelho e preto ganhava proporções diferenciadas, porque ganhava uma dimensão maior da multidão apaixonada de seguidores que seguiam o clube nas folhas dos jornais e nas audiências do rádio.

O presidente do Flamengo, José Bastos Padilha, estava disposto a transformar o Flamengo no maior clube do mundo. Este projeto começou com a tentativa de formação de um supertime em 1936, para voltar a vencer o Campeonato Carioca, coisa que, como foi dito, o Flamengo não conseguia desde 1927. O segundo ponto do projeto foi a construção do estádio da Gávea (na época, dizia-se que aquela área era um lodaçal de fim de mundo, num terreno que anos depois se tornou uma das áreas mais nobres e de maior concentração de renda da cidade, entre os bairros da Lagoa e da Gávea).

O Flamengo carecia, com urgência, de um estádio. De 1912 a 1915, mandava seus jogos no campo do Botafogo, em General Severiano. De 1916 a 1932, passou a mandá-los em seu próprio campo, na rua Paissandu, no bairro do Flamengo, em um terreno pertencente à família Guinle, a mesma que era dona do hotel Copacabana Palace. Ao fim de 1932, os proprietários solicitaram o terreno, e o Flamengo voltou a ficar sem casa. Foi então que se conseguiu o terreno na Gávea, onde começou a construção do novo estádio. Entre 1933 a 1938, antes da conclusão da obra, o Flamengo teve que mandar seus jogos no campo do Fluminense, nas Laranjeiras, que ficava em frente – literalmente do outro lado da rua – ao campo da rua Paissandu.

O terceiro passo foi a contratação, em 1937, de um treinador estrangeiro, o húngaro Dori Kurschner. E aquilo causou alvoroço na cidade. A presença de treinadores estrangeiros não era novidade do futebol da cidade. Mas quando o Flamengo decidiu ter um, foi um alvoroço! Todos os treinadores do Fluminense entre 1911 a 1928 foram estrangeiros: ingleses, uruguaio, dinamarquês e húngaro. Depois, entre 1934 e 1945, novamente o time tricolor só foi treinado por estrangeiros. Todos os primeiros treinadores do Vasco entre 1923 e 1946 também foram estrangeiros. O Botafogo também teve técnicos europeus entre 1929 e 1933. Quando o time da rua Paissandu decidiu trazer um nome da Europa, a polêmica foi enorme!

A Hungria, vice-campeã do mundo em 1934, era tida como a elite do futebol mundial, junto à Itália, que vencera as Copas do Mundo de 1934 e 1938. Kurschner não falava português, necessitava de tradutor. Mas, ainda assim, introduziu um sistema de jogo até então novo no Brasil, a formação tática batizada de WM. A revolução na forma de jogar à qual se propôs o levou a ter problemas de relacionamento com jogadores, que questionavam seus métodos. O maior problema foi com Fausto, uma das estrelas do time, e conhecido amante das noites cariocas. O húngaro ficou exatos dezessete meses no Flamengo. Estreou em 11 de abril de 1937 e saiu em 11 de setembro de 1938, uma partida após a primeira que foi disputada no recém inaugurado estádio da Gávea (derrota de 2 a 0 no Fla-Flu).

O quarto passo de Padilha, complementando a internacionalização do Flamengo, foi a contratação de uma leva de jogadores estrangeiros. O primeiro a chegar foi o goleiro espanhol Talladas, que estreou em 11 de abril, na vitória sobre o Atlético-MG, na qual também estreava o treinador húngaro Dori Kurschner. Em 11 de julho, o Flamengo fez um amistoso contra o combinado Becar-Varella, formado por jogadores argentinos que, insatisfeitos, haviam abandonado a liga de seu país. Deste combinado, o Flamengo adquiriu quatro argentinos, os meias Arcadio Lopes e Villa, e os atacantes Cosso e Valido. O primeiro a estrear foi Cosso, em 27 de julho. Em 22 de agosto, o Flamengo estreou Arcadio Lopes e Valido. Uma semana depois, em 29 de agosto, estreou Villa. Mas foi somente em 17 de outubro, em um empate com o América por 1 a 1, que o Flamengo conseguiu escalar todos os estrangeiros juntos, em jogo na rua Campos Sales, na Tijuca, no campo do América. Detalhe: Talladas entrou no segundo tempo no lugar de Yustrich. Uma partida com os cinco estrangeiros jogando desde o início só foi ocorrer em 31 de outubro de 1937 (inclusive, a única em que isso ocorreu), numa vitória por 2 a 1 sobre o Madureira no antigo estádio da rua Domingos Lopes, em Madureira.

Deles, foi Agustín Valido quem entrou para a história rubro-negra, como autor do gol do primeiro tricampeonato, em 1944. Mas quem se tornou sensação quando chegou foi Cosso. Ele fez vinte gols na temporada, atrás apenas do artilheiro Leônidas, com 31, e do ponta-esquerda Jarbas, com 30 (Valido, em seu primeiro ano no Flamengo, fez apenas três). Agustín Cosso talvez tivesse se tornado uma lenda com a camisa rubro-negra, uma destas que até os que não viram jogar fazem referências detalhadas. Mas, ao final daquele ano, ele preferiu voltar a Buenos Aires.

O Flamengo, apesar do supertime, também não conseguiu vencer o campeonato de 1937, apesar de ter ficado invicto no returno. Terminou o torneio três pontos atrás do Fluminense, apesar da bela campanha: quinze vitórias, cinco empates e duas derrotas. O Flu levou a taça e o bicampeonato com dezessete vitórias, quatro empates e só uma derrota. O Flamengo começou a perder o campeonato daquele ano logo na estreia, quando tomou uma goleada de 4 a 0 do São Cristóvão. Perdeu de vez na derrota para o próprio Fluminense, por 1 a 0, na última rodada do primeiro turno. Na partida final, ainda teve a oportunidade de ser campeão. Mas empatou por 1 a 1 com o Fluminense, nas Laranjeiras. Se tivesse vencido, teria levado a disputa para um jogo de desempate. A campanha foi bonita, apesar do vice-campeonato, as inovações táticas trazidas pelo seu treinador europeu atordoavam adversários e o time esteve ofensivamente avassalador, aplicando muitas goleadas. Destaque para a vitória por 5 a 1 sobre o Vasco. Ainda goleou duas vezes ao Bangu – 6 a 3 no turno e 5 a 1 no returno – e ao Bonsucesso – 7 a 1 no turno e 7 a 0 no returno – e aniquilou à Portuguesa, da Ilha, por 8 a 1, e ao Andaraí, por 9 a 3. A revolução tática gerava bons resultados. Mas o time não foi campeão.

Dori Kurschner chegou com a fama de maior técnico de futebol da Europa. Seus problemas no Flamengo começaram quando ele achou que Fausto não aguentava mais dois tempos. Quis botá-lo de beque, jogando na defesa. A turma do Café Rio Branco, com o ex-técnico Flávio Costa à frente, resmungou. Fausto recusou-se a jogar na zaga. Foi afastado por Padilha. O Café Rio Branco arrumou até advogado para ele. Eclodiu a perseguição a Kurschner. Onde já se vira aquilo, mandar buscar um treinador na Europa? Onde já se vira querer ensinar futebol? Futebol já se nascia sabendo, o que era bom se nascia feito, resmungava a turma do Rio Branco. Em sua primeira temporada, as vitórias abafaram a crítica. Em seu segundo ano à frente da equipe, sem Fausto, que, para o Café Rio Branco inteiro, caíra pelas mãos do húngaro, aumentaram as críticas. Piorou depois da decisão de recuar um pouco o Leônidas. Aí o Rio Branco decidiu que deveria vaiar o time, para forçar a queda de Kurschner. Ele foi batizado de “O Açougueiro de Viena”, em alusão ao império austro-húngaro, que apoiara os alemães na Primeira Guerra Mundial. Assim foi, tome vaia cada vez que o time entrava em campo. Não demorou muito e Kurschner caiu.

Apesar da bela campanha no Carioca de 1937, o vice-campeonato ficou entalado. Após o fim do torneio, dos cinco jogadores estrangeiros que chegaram, apenas Valido continuou. No Torneio Municipal – entre os Cariocas de 1937 e 1938 – o Flamengo fez campanha pífia: cinco vitórias, um empate e dez derrotas. Mas vale ressaltar que seus dois principais jogadores, Domingos e Leônidas, estavam disputando a Copa do Mundo de 1938, na França. O receio de novo fracasso colocou o húngaro na berlinda. O técnico Dori Kurschner, depois do fim do campeonato, passou a ter problemas com o grupo, que parece que o boicotou propositalmente para que ele caísse. Ele acabou demitido, mas o título não veio mesmo assim. O Flamengo foi novamente vice-campeão, e o Fluminense conseguiu conquistar o segundo tricampeonato carioca de sua história naquele ano.

Os números daquela temporada parecem justificar a tese de que houve boicote dos jogadores. Até o Torneio Início de 1938, o húngaro havia dirigido o Flamengo em 48 oportunidades, vencendo 31, empatando nove e perdendo oito. Daí por diante, até sua demissão, tudo mudou, foram oito vitórias, dois empates e 14 derrotas. E foi só ele cair que o time desandou a vencer, ganhando seis partidas consecutivas.

Mantendo a pujança de seu sonho de grandeza, para o Campeonato Carioca de 1938 o Flamengo voltou a investir em jogadores argentinos. Valido continuava no clube, e a ele se juntaram o cabeça de área Volante e os atacantes Alfredo González e Francisco Provvidente. Na segunda rodada do Carioca de 1938, o Flamengo jogou pela primeira vez em sua história no estádio da Gávea. Perdeu para o Vasco por 2 a 0. Na terceira rodada, o segundo jogo na Gávea e uma nova derrota: 2 a 0 para o Fluminense. Dori Kurschner foi demitido.

E por uma ironia, esta fatídica, o ano de 1938 marcou não só a despedida do húngaro, como também foi o último ano de Fausto dos Santos no Flamengo, no futebol, e na vida. No final do ano lhe foi diagnosticada uma tuberculose. Meses depois, em março de 1939, a doença levou o Maravilha Negra à morte, aos 33 anos.

Os sonhos brasileiros viviam a efervescência da construção de um futuro de glória. O futebol se fez presente neste contexto, e aquelas coisas das quais só a turma do Flamengo parecia ser capaz também estavam lá. O Brasil da Carmen Miranda, do Zé Carioca, do Oswaldo Aranha, do Cardeal Arcorverde, das vitórias bélicas nas batalhas de Monte Castello e de Montese, das marchinhas, do maxixe e do samba, aspirava a grandiosidade mundial também no futebol. E na Copa do Mundo de 1938 mostrou a todos, para grande orgulho nacional, que não tinha nada a deixar a desejar para argentinos, uruguaios, ingleses, italianos ou húngaros, o futebol dos brasileiros era de padrão mundial, terceiro lugar no Mundial disputado na França. E aonde estavam as principais estrelas nacionais daquela gloriosa campanha? Estavam vestindo o vermelho e o preto. Quando a FIFA divulgou o “Onze Ideal” que desfilara pelo gramados franceses, entre eles estavam dois brasileiros, dois jogadores do Flamengo, o zagueiro Domingos da Guia e o centroavante Leônidas da Silva, que figuravam ao lado do goleiro tchecoslovaco Planicka, dos defensores italianos Pietro Rava, Foni, Andreolo e Locatelli, dos avançados húngaros Zsengeller e Gyorgy Sarosi, e dos atacantes italianos Silvio Piola e Colaussi. Só mesmo a bravura e a desenvoltura daquela turma do Flamengo.

Foi crucial que nesta época, o Flamengo tenha tido a felicidade de ter pessoas à frente do clube com projetos que lhe davam uma dimensão de grandeza num momento em que todo o Brasil sonhava alto. Os sonhos reverberavam pelas ondas do rádio. E o Flamengo não parava. Para a temporada de 1939, investiu na contratação de um campeão mundial. Isso sacudiu o mundo esportivo do Rio de Janeiro. O argentino naturalizado italiano Raimondo Orsi, ex-jogador na Argentina de Independiente, Boca Juniors, Platense, Almagro, e da Juventus de Turim, da Itália, chegava já veterano ao clube após passagem pelo Peñarol, do Uruguai. Campeão mundial com a Itália na Copa do Mundo de 1934, chegou ao Flamengo, já aos 37 anos. Ninguém se importou com sua idade. Ter um campeão mundial vestindo suas cores foi um feito. Ele ficou duas temporadas com a camisa rubro-negra, e em nenhum momento mostrando o mesmo brilho do passado. Mas atraiu plateia aos estádios para vê-lo jogar. Orsi chegou como uma grande sensação, na seleção da Itália, campeã da Copa do Mundo de 1934, jogou ao lado de Filó, brasileiro naturalizado italiano. E naquele tempo, para o brasileiro, se não fosse naturalizando-se e vestindo as cores de outro país, ser campeão do mundo de futebol era um sonho muito longínquo.

Em 1939 o Flamengo, por fim, interrompeu o jejum de onze anos sem a conquista do Campeonato Carioca. Com Domingos da Guia comandando a zaga e um forte ataque, com Valido, Gonzalez, Waldemar de Brito, Leônidas e Jarbas, o Mengo sacramentou o título. De quebra, Leônidas foi o quarto jogador na história do Flamengo a superar a marca de cem gols pelo clube, chegando a 108 e superando Alfredinho (1934/37) com 103 e Jarbas – seu companheiro de ataque. Ficou atrás apenas de Nonô (1921/29) que tinha 123 gols. O clube vivia dias de raios fúlgidos de sucesso.

O time campeão em 1939 também tinha cinco argentinos. Além de Volante, Gonzalez e Valido, remanescentes do campeonato de 1938, e da chegada de Orsi, o Mengo contratou o também atacante Naon. O clube vivia a era do platinismo rubro-negro. Entre 1937 e 1945, quatorze jogadores argentinos jogaram com a camisa do Flamengo. No Carioca de 1937 foram quatro: Villa, Arcadio Lopez, Cosso e Valido. No Carioca de 1938 também quatro: Volante, Provvidente, Gonzalez e Valido. No Carioca de 1939, foram cinco: Volante, Gonzalez, Valido, Naon e Orsi. Em 1940, também houve quatro argentinos: Volante, Valido, Orsi e Castillo. Entre todos, Valido passou a ser um grande ídolo depois de ter feito o gol do título, em 1944, mas entre os que brilharam inicialmente estiveram o cabeça de área Carlos Volante e os atacantes Agustín Cosso, Alfredo González e Julio Castillo.

O vermelho e preto começava a crescer no cenário futebolístico carioca. Até aquele momento, o Fluminense tinha doze títulos estaduais, o Botafogo oito, o Flamengo venceu seu sétimo, o América tinha seis e o Vasco cinco títulos, com Paissandu, São Cristóvão e Bangu vencendo uma vez cada. Foi crucial galgar posições naquele momento da história carioca e nacional.

O Rio de Janeiro era um intenso caldeirão cultural, colhendo os frutos das sementes plantadas ao longo da década de 1930. O samba e o chorinho foram lançados para o mundo e terminaram aclamados. O maestro Heitor Villa-Lobos havia composto o Choro nº 1 e dado uma melodia erudita a ritmos das ruas do Rio. As raízes eruditas do maestro se reencontram à vertente popular e deram forma ao chorinho, principalmente através das mãos de Pixinguinha. Até o chorinho ser eternizado com a composição Brasileirinho, de Waldir Azevedo.

Em paralelo, explodem as raízes do samba como o ritmo tipicamente brasileiro, através das composições de Donga, Cartola, Zé Kéti, Ismael Silva e Carlos Cachaça. O elo entre Vila Isabel e Estácio explode como berço do samba. A praça XI é seu palco. Mas, do outro lado da cidade, mais ao norte, em Madureira, surgem fortes concorrentes. Começam a ganhar impulso as escolas de samba, com seus sambas-enredo marcados ao ritmo do batuque da bateria. O primeiro desfile de escolas de samba é organizado pela prefeitura em 1935, reunindo várias agremiações que, até então, faziam seus carnavais separadamente pela cidade.

O samba tipo exportação se torna moda mundial. Carmen Miranda explode como sucesso na Broadway. Nascida em Portugal, Carmen chegou ao Rio de Janeiro com menos de um ano de idade. No Rio, ela cresceu. Tornou-se ícone musical. Quando chegou aos Estados Unidos, mostrou toda sua brasilidade. Ninguém entendia o que ela cantava, todas as letras eram em português, mas todos ficavam hipnotizados na plateia. Ninguém jamais havia visto uma mulher como aquela por lá. Como diziam os gringos, quando ela adentrava o recinto, era como se todo o ambiente se iluminasse.

O espírito brasileiro pós-moderno ia se moldando. Carmen Miranda foi uma das primeiras a sentir isso. Depois de uma temporada de sucesso lá fora, ela voltou ao Brasil. Apresentou um show na Urca que foi um fiasco. A plateia carioca que a assistia – a elite mais rica – não entendia como aquela música, o samba, o ritmo das massas, podia agradar no estrangeiro. A plateia reagiu com desdém. Ao final, a vaiou. A velha mania carioca de contestar e polemizar até sobre o que já é fato.

Carmen Miranda se deprimiu profundamente. A garota portuguesa respondeu com estilo, mostrando o quanto ela era brasileira e carioquíssima. Respondeu com a música “Dizem que eu voltei americanizada”. Depois, fez um último show, este longe da Urca, para uma plateia popular. E daí se foi. Ficou quatorze anos erradicada na América do Norte, vivendo em Beverly Hills. Ela jamais esqueceria aquele desdém e aquelas vaias com que fora recepcionada. Lá fora, seus contratos não paravam de crescer em cifras. Não demorou para que passasse também a fazer cinema. Ela era a rainha da Fox. Tornou-se a atriz com maior cachê dos EUA. Seu nome entrou na Calçada da Fama de Hollywood.

Ela eternizou a Aquarela do Brasil de Ary Barroso. Por todas as partes, desde então, passou a se associar o país sonoramente a: “Brasil, lá rá lá rá lá rá lá lá...” Se antes a acusavam de estar americanizada, depois de quatorze anos fora então... Parecia haver cada vez menos brasilidade por detrás de todas aquelas fantasias. Só os gringos, que compravam o estereótipo e não o artista, ainda viam. Inconscientemente, ela ajudou a construir o conceito pejorativo de república das bananas. Mas, rendido a seu renome, o brasileiro a aclamou. Consumida pelo sucesso nos EUA, ela se tornou dependente de remédios para conseguir dormir. O fim acabou sendo trágico. Carmen Miranda morreu aos 45 anos, em 5 de agosto de 1955, por conta de um ataque cardíaco fulminante provocado pela dependência química dos calmantes. Seu enterro, no Rio de Janeiro, causou uma das maiores comoções coletivas da história do Brasil. Foi um curioso capítulo do processo de metamorfose social e de autoestima da vida nacional.

Desde suas raízes, formadas por jovens que se levantavam contra a aristocracia e que eram capazes de desafiar à mão colonizadora, percorrendo toda a era do amadorismo, combinando a construção de atos de heroísmo inconsequente com certa irresponsabilidade descompromissada, o Flamengo casava perfeitamente com aquela alma nascente e libertada, tanto da cidade quanto do país, que aspirava ser protagonista e não coadjuvante. Era onde os diferentes espíritos da cidade se encontravam.

Foi o tricolor Nélson Rodrigues quem afirmou nas páginas do Jornal dos Sports: "Poucas instituições serão tão abrangentemente nacionais quanto o Flamengo - a Igreja Católica, sem dúvida, é uma delas, e, talvez o jogo do bicho. E olha que o Flamengo não promete a vida eterna e nem o enriquecimento fácil. Ao contrário, às vezes mata de enfarte e, quase sempre, só dá despesa. Mas uma coisa ele tem em comum com a religião e o bicho: a Fé! Por onde vai, o Rubro-Negro arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com o seu nome gravado no coração, a ponta de canivete. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, no Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Cada brasileiro, vivo ou morto já foi Flamengo por um instante ou por um dia".

O samba também compartilha desta química de sinergia social que representou o Flamengo, só que pelo caminho inverso. Ele notoriamente nasceu popular, nos morros da cidade. Mas a elite e a classe média também deram uma contribuição diferencial para torná-lo grandioso. Um exemplo está em um dos maiores sambistas e compositores da história do Rio de Janeiro: Noel Rosa. Filho de um típico bairro de classe média, a Vila Isabel, Noel, assim como Villa-Lobos, foi educado pelos monges beneditinos do Colégio de São Bento, uma escola de elite. Boêmio, criativo, festeiro, morreu de tuberculose aos 26 anos de idade, em 1937, depois de deixar gravados mais de trezentos sambas. Mas Noel Rosa sempre esteve perto da massa. Como ele cantou: “lá em Vila Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba” (parte da letra de Feitiço da Vila).

Há uma canção de Noel, em especial, que é uma pérola na formação da imagem em nossas cabeças de como era o Rio de Janeiro daqueles tempos. A letra mostra o freguês abusado, que entrava no recinto e, depois de instalado em sua mesa, fazia uma série de exigências. Ao final, descaradamente, manda pendurar a conta, que pagaria num futuro que ninguém sabe o quão próximo estaria. Eis tal pérola: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada/ Um pão bem quente com manteiga à beça/ Um guardanapo e um copo d’água bem gelada/ Feche a porta da direita com muito cuidado/ Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol/ Vá perguntar ao seu freguês do lado/ Qual foi o resultado do futebol/ Se você ficar limpando a mesa, não me levanto nem pago a despesa/ Vá pedir ao seu patrão: uma caneta, um tinteiro, um envelope e um cartão/ Não se esqueça de me dar palitos, e um cigarro pra espantar mosquitos/ Vá dizer ao charuteiro que me empreste umas revistas, um isqueiro e um cinzeiro/ Telefone ao menos uma vez para 34-43-33/ E ordene ao Seu Osório que me mande um guarda-chuva aqui pro nosso escritório/ Seu garçom me empresta algum dinheiro/ Que eu deixei o meu com o bicheiro/ E vá dizer ao seu gerente que pendure esta despesa no cabide ali em frente”.

Malandragem, samba e futebol representavam a essência da orgulhosa alma carioca, e sempre andaram muito próximas entre si. E contagiaram o orgulho no espírito brasileiro, aquele forjado na capital federal da república nascente que percorria o país pelas ondas do rádio. Reforça-se uma imagem exaltando uma forma de ser levemente indisciplinada, alegre, polemista e cordial.

O futebol foi um pequeno retrato dessa sociologia. Toda a construção da grandiosidade em torno do Rio de Janeiro a partir da qual se alimentava o espírito brasileiro – lhe inflando o orgulho e a autoestima – gerou uma grande rivalidade com São Paulo. Para as terras paulistas migraram, no final do século XIX, as plantações de café, que já não encontravam solos produtivos no interior do Rio. Com a Primeira Guerra Mundial, o Brasil foi impulsionado em direção à industrialização, e as indústrias nasceram onde estava a maior concentração do capital do café: o Estado de São Paulo. Os paulistas cresceram em ritmo exuberante na primeira metade do século XX e passaram a bipolarizar a força econômica do país, até então deveras concentrada na capital federal. Dessa bipolarização econômica nasceu uma forte rivalidade nos anos 30 e 40, que perdurou até o início dos anos 90, quando a força econômica paulista, que já superara a carioca desde os anos 60, dá sinais inequívocos de hegemonia.

O emergente e capitalizado futebol paulista, quando quis provar sua força econômica, foi bater de frente com quem? Justamente com o Flamengo, que era o símbolo do que o Rio de Janeiro representava para o Brasil. Havia outros clubes tão fortes quanto na capital federal, mas nenhum tão popular quanto o Flamengo. Quando os paulistanos quiseram provar quão forte seu futebol era, recorreram justamente às grandes estrelas que tinham tido seu apogeu para o Brasil vestindo vermelho e preto. Nos anos 1940 e 1950, foram atraídos pela força deste capital emergente estrelas como Leônidas da Silva e Zizinho, que já veteranos foram brilhar com a camisa do São Paulo, e Domingos da Guia, que também veterano ainda encontrou tempo para construir história no Corinthians.

O economista Carlos Lessa, no belíssimo livro “O Rio de todos os Brasis”, conta um episódio que retrata muito bem o clima desta rixa entre cariocas e paulistas: “Carlos Lacerda disse, por ocasião do quarto centenário da cidade, que o Rio era ‘a capital cultural do país’. O (jornal) Estado de S. Paulo retrucou em editorial: ‘Não é a primeira vez que abordamos a questão e levantamos dúvidas sobre a posição que no campo da cultura ocupa a velha cidade de São Sebastião (do Rio de Janeiro)’. Este episódio é revelador da dimensão arrogante carioca de querer ser o polo e a reação provinciana de São Paulo, querendo medi-lo. Um esforço para medir a ‘polaridade relativa’ beira o provincianismo”.

Palavras que sintetizam uma era no Brasil: os paulistanos jamais conseguiram pensar projetos nacionais em toda a história do país, só sendo capazes de planejar algo no qual a capital paulista fosse o epicentro. Daí o provincianismo, expressão cunhada na divisão territorial do país em províncias no tempo colonial e monarquista. Foi só no século XXI que os paulistas caminhariam para superar esta âncora provinciana.

A condição cosmopolita sempre foi uma virtude carioca. Aquele Rio de Janeiro, por ser a capital do país, estava pensando sempre primeiro nos projetos nacionais, antes mesmo de pensar em seus problemas regionais. O Rio de Janeiro viria a pagar caro por esta postura após a transferência da capital para Brasília. A cidade jamais havia formado uma oligarquia política local, estruturada em torno da defesa dos interesses regionais. O carioca sempre esteve acostumado a ser administrado por elites regionais, recrutadas por todos os lados do Brasil, que davam sustentação à capital.

No futebol, essa rivalidade entre cariocas e paulistas ainda não aguçava os confrontos entre os clubes. Até porque ocorriam poucos jogos e sempre em caráter amistoso. A coisa só começou a mudar de figura quando se criou o Torneio Rio–São Paulo, que foi uma espécie de pré-história de um campeonato nacional. Mas isso é história para ser contada mais adiante.

Em 1940, surgiu no Flamengo um dos maiores craques da história do clube: Zizinho. Ele estreou numa vitória sobre o Independiente, da Argentina, em partida amistosa disputada em São Januário, e agradou de imediato, ainda jovem e franzino. Foi mantido no time num segundo jogo contra o Independiente e, depois, em três amistosos mais, todos contra o San Lorenzo, também da Argentina. Todos estes cinco primeiros jogos de Zizinho foram disputados no campo do Vasco da Gama, em São Januário, e com apenas uma vitória – três derrotas e um empate nos demais. Isto poderia ter sido um empecilho a que se avistasse o brilho daquele jovem. Felizmente, para o rubro-negro, e para o futebol brasileiro, não foi assim.

A base do time que jogou no ano de 1940 era maravilhosa: Domingos da Guia na zaga, o argentino Volante ao lado de Zizinho no meio, e um ataque forte com Leônidas da Silva no centro, o argentino Valido pela direita e o ponta-esquerda Jarbas. Mesmo assim, o Flamengo não foi campeão, assim como também perdeu o campeonato seguinte, em 1941. Mas foram nestes anos que se plantaram as sementes do time que deu ao clube o primeiro tricampeonato de futebol. Era a mesma base, só que sem Leônidas. O Diamante Negro havia superado Nonô em sua última temporada no clube e se tornado o maior artilheiro do Flamengo até então: ao final de 1940, Leônidas da Silva tinha 148 gols pelo Flamengo. Jarbas, seu companheiro de ataque, terminara a temporada com um total de 133, contra Nonô, que fizera 123, e Alfredo, com 103.

Naquele ano, os rubro-negros tiveram também que superar a morte do atacante argentino Julio Castillo, que despontara muito bem, fazendo seis gols em nove jogos. Ele morreu de forma prematura, aos 25 anos, meses depois de chegar ao Flamengo, por causa de uma diabete. Os jornais da época afirmavam que o jogador vinha escondendo a doença dos médicos desde que chegou ao Rio.

Foi impressionante a quantidade de argentinos que vestiram o vermelho e o preto naqueles tempos. Há uma razão para explicar este platinismo rubro-negro entre 1937 e 1940: o futebol brasileiro era um grande freguês de seu vizinho. A própria seleção brasileira costumava perder mais do que vencer. Em Campeonatos Sul-Americanos, até então, havia sete títulos uruguaios, seis argentinos e apenas dois brasileiros. Em 25 confrontos entre as seleções de Brasil e Argentina, entre 1914 e 1941, os argentinos venceram quatorze e o Brasil só conseguiu vencer a metade disso (sete vezes), havendo quatro empates. E a seleção brasileira sofreu grandes goleadas: só em 1940 foram duas, 6 a 1 em 5 de março, e 5 a 1 em 17 de março, ambas as partidas jogadas em Buenos Aires. Um ano antes, entretanto, nem o fator campo foi capaz de mudar tal tendência: Argentina 5 x 1 Brasil, no Rio de Janeiro. A Argentina era uma potência econômica. O tamanho da economia argentina (seu PIB), nos anos 40, era maior que a soma das economias de todos os demais países da América do Sul juntos (incluído o Brasil). Ao final da Segunda Guerra Mundial, a Argentina era a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

O Fla-Flu emergiu, definitivamente, como o grande clássico da cidade naquela virada dos anos 1930 para os 1940. A rivalidade entre Flamengo e Fluminense teve aí seu auge. Durante seis anos só um dos dois levou a taça de campeão carioca: o Fla em 1939, o Flu em 1940 e 41, e o Fla em 1942, 43 e 44. Rivalidade que levou o tricolor Nélson Rodrigues, numa de suas crônicas esportivas, a afirmar que o primeiro Fla-Flu aconteceu quarenta minutos antes do nada. Antes mesmo de decidir que criaria o mundo, Deus já houvera decidido que haveria o Fla-Flu em seja lá o que Ele estivesse por criar.

E a grandeza, o folclore e a simbologia em torno do clássico estavam se espalhando para além das fronteiras nacionais, espalhando o mito pela América do Sul. No início de 1941, o Flamengo foi excursionar na Argentina junto com o Fluminense. Em cinco partidas, venceu uma e perdeu quatro (o Fluminense perdeu as cinco). Era muito raro conseguir uma vitória sobre adversários sul-americanos naqueles tempos. Entre 1912 e 1941, o Flamengo enfrentou-os dezenove vezes (doze vezes argentinos e sete vezes uruguaios), conseguindo apenas quatro vitórias e três empates, sofrendo doze derrotas (mesmo com a maioria destas partidas sendo jogadas no Rio de Janeiro). Daí por que encher a equipe de estrangeiros deu um status diferenciado de grandeza para o time rubro-negro. Mas, ao mesmo tempo, nada teria tido a mesma dimensão se a camisa rubro-negra não se sustentasse em ídolos nacionais. E eles estavam lá, como ícones para o orgulho nacional.

Em 1941, porém, o Flamengo perdeu o maior deles, seu matador: Leônidas. Ele trocou a camisa rubro-negra pela do São Paulo. Leônidas da Silva havia sido preso no início daquele ano, acusado de ter, anos antes, forjado documentos para evitar o serviço militar. Ficou sete meses na cadeia. Quando saiu, não quis mais saber de continuar no Rio de Janeiro. Não houve quem o fizesse mudar de ideia. Desgostoso, quis se afastar do governo federal e do comando das Forças Armadas, ambos estabelecidos no Rio. Foi-se o ídolo... mas não se diminuiu a intensidade do brilho do vermelho e do preto.

O Flamengo naquele ano esteve arrasador. Para o lugar de Leônidas foram contratados dois atacantes: Perácio, do Botafogo, e Silvio Pirilo, ex-Internacional de Porto Alegre, que vinha se destacando no Peñarol, do Uruguai. E então não faltaram gols para suprir a falta que Leônidas fazia. No Campeonato Carioca, o Flamengo esteve arrasador, goleou duas vezes a Madureira (5 a 2 e 4 a 1), São Cristóvão (4 a 0 e 6 a 0), Bangu (7 a 1 e 6 a 2) e Canto do Rio (4 a 0 e 6 a 1), ainda arrasou ao Bonsucesso por 5 a 1.

E, no primeiro turno, o time rubro-negro havia goleado os campeões de 1941, o Fluminense, por 4 x 1. O time parecia ter uma força imparável. Mas no returno chegou à última rodada para jogar um Fla-Flu a ser disputado no estádio da Gávea. O tricolor das Laranjeiras tinha a vantagem do empate. O jogo terminou 2 a 2 e entrou para a história porque no segundo tempo os jogadores do Fluminense passaram a isolar a bola sobre o muro do estádio, para dentro da lagoa Rodrigo de Freitas, que àquela época chegava até bem perto do campo. Perdia-se muito tempo para que os remadores do Flamengo saíssem a remo para trazer a bola de volta. A partida ia assim esfriando e terminou empatada, e os tricolores conquistaram o bicampeonato, no jogo eternizado como o “Fla-Flu da Lagoa”.

No Campeonato Carioca de 1942, o Flamengo se vingou. Desta vez, jogando nas Laranjeiras, bastava um empate para o Flamengo ser campeão. A diferença é que uma vitória do Fluminense não lhe daria o título, mas sim ao Botafogo. O empate saiu graças a um gol de Pirilo. Começava ali a saga do primeiro tri. O Flamengo havia começado mal a temporada, mas foi se recuperando durante a competição. Acabou embalando e terminando o ano com uma arrancada sensacional e uma série de 23 jogos sem perder, a maior invencibilidade de sua história até então. O orgulho rubro-negro estava nas alturas.

O Flamengo tinha um espírito próprio, herdado daqueles jovens corações rebeldes e desbravadores que fundaram a República Paz e Amor, e dos que montaram um time à base do heroísmo para desbancar a turma poderosa da elite e de fraque. Era aquele que em outros tempos desbancara o time dos colonizadores. Um espírito que sempre foi pioneiro e inovador. Já em 1941 foi criada a primeira torcida organizada do futebol: a Charanga Rubro-Negra, organizada por Jaime de Carvalho. Longe de ter a cara das torcidas organizadas do final do século XX, com seus gritos de guerra e suas filiações, a Charanga tinha mais a cara de uma bandinha. No livro “Almanaque do Flamengo”, de Roberto Assaf e Clovis Martins, há um interessantíssimo registro, extraído da revista Esporte Ilustrado, edição de outubro de 1945. Comentário extraído da coluna de Alberto Mendes, referindo-se a uma vitória de 6 a 1 do Flamengo sobre o São Cristóvão: “Prosseguem os rubro-negros na sua campanha do tetra e com fundadas razões. Apenas julgamos que a sua torcida organizada deve adaptar melhor as suas iniciativas ao espetáculo futebolístico. Domingo, por exemplo, tivemos uma música, misto de fanfarra e batucada, de todo inoportuna, pois não se calou um único momento durante os noventa minutos, enfadando todos. Por outro lado, achamos excelente a demonstração dessa torcida, que após o prélio desfilou pelo gramado, comemorando carnavalescamente a vitória retumbante. Para o futuro, sempre música após o jogo e nunca durante o mesmo”.

Foram dias que o clube viveu constantemente em festa. Qual teria sido o melhor time? O Flamengo de 1937, o de 1939 ou o de 1942? O de 1937 não ganhou o campeonato, apesar de haver feito uma grande campanha. Perdeu apenas 16% das partidas que jogou naquele ano, fez 3,35 gols por partida e sofreu 1,8 por jogo. Em 1939, levou o campeonato que não vencia havia onze anos, perdendo só 20% das partidas que jogou, com uma média de 2,7 gols feitos e 1,5 gol sofrido. Um ataque com desempenho inferior ao de 1937, mas uma defesa mais segura. Em 1942, o time também foi campeão, e sua base foi a que garantiu o primeiro tricampeonato carioca rubro-negro. Naquele ano, perdeu somente 10% dos jogos, com 1,9 gols-pró por jogo e 1,3 gols contra. Ou seja, um ataque forte e uma defesa que se mostrou quase impenetrável aos padrões da época.

Para 1943, na campanha do bicampeonato, o Flamengo tinha duas baixas em relação à equipe campeã. Deixaram o clube os argentinos Volante e Valido, que decidiram se aposentar antes do Carioca. Para o lugar de Volante, o Flamengo foi buscar outro estrangeiro, o paraguaio Modesto Bria, que viria a vestir a camisa rubro-negra por dez anos. Foi Bria quem inaugurou a tradição de jogadores paraguaios no clube, encerrando a “era Argentina”.

Após o bicampeonato de 1943, o Flamengo perdeu mais uma de suas maiores estrelas: Domingos da Guia trocou o Flamengo pelo Corinthians. O time se desfigurou: a solidez de sua defesa parecia haver se perdido com sua saída. No início do ano, o Fla foi goleado por Botafogo (6 a 2) e Vasco (5 a 2) e fez péssima campanha durante todo o primeiro semestre no Torneio Relâmpago e no Torneio Municipal. A equipe não parecia estar cotada para faturar o tri. Ainda mais porque mais uma vez, assim como havia acontecido na Primeira Guerra Mundial, quando um de seus jogadores se tornou combatente, tendo daquela vez sido Sidney Pullen, recrutado pelo exército da Inglaterra, durante os dias de fervor de muitas vitórias, o clube teve mais uma vez que conviver com um de seus jogadores recrutados pelas forças armadas para se tornar combatente. Desta vez foi Perácio, um dos goleadores da equipe, quem foi convocado para ir às armas durante a Segunda Guerra Mundial.

Os dirigentes buscaram então repetir a velha fórmula portenha e contrataram três argentinos: o zagueiro Coletta e os atacantes Sanz e De Teran. Nenhum deles fez grande sucesso, mesmo assim no segundo semestre o Flamengo se reergueu. Começou o Carioca com uma campanha instável, mas engrenou no segundo turno, vencendo, consecutivamente, suas sete últimas partidas. As duas rodadas que antecederam à partida decisiva lembraram a campanha de 1943. No ano anterior, o Flamengo aplicou três goleadas nas três rodadas finais: 5 a 1 no Bonsucesso, 6 a 2 no Vasco e 5 a 0 no Bangu. Em 1944, aplicou 7 a 1 no Bangu e 6 a 1 no Fluminense e assim foi enfrentar o Vasco na última rodada.

Para o Fla-Flu, os dirigentes tinham recrutado Valido de volta da aposentadoria (ele já abandonara os gramados havia mais de um ano). Ele jogou apenas os dois últimos jogos do campeonato. E foi dele, do argentino Valido, o polêmico gol que sacramentou a vitória por 1 a 0 sobre o Vasco. Polêmico porque ele supostamente fez falta no beque vascaíno na disputa, no ar, em que cabeceou para as redes, gol que garantiu o tricampeonato rubro-negro.

Aquela decisão de 1944 consagrou de vez o duelo Flamengo e Vasco. O jogo foi na Gávea e o Flamengo se preparou. Os portões foram abertos mais cedo e os torcedores rubro-negros ocuparam as posições mais estratégicas na arquibancada. Havia gente de mapa em punho fazendo a distribuição dos que chegavam. Quando Valido cabeceou para o fundo das redes, no gol que seria o do título e do tricampeonato, todo o Vasco começou a protestar que o argentino teria subido nas costas do zagueiro Argemiro antes de meter a testa na bola. Até filme, o Vasco exibiu, no Capitólio, em sessão especial, para provar que estava com a razão. Quem era Vasco via com precisão, quem não era ficava na dúvida. O eterno Ary Barroso foi quem pôs um ponto final na discussão: o ideal de uma vitória sobre o Vasco para decidir campeonato é Flamengo 1 a 0 e gol feito com a mão, todo mundo vendo, inclusive o juiz, porque se o juiz não visse, não tinha graça nenhuma.

Quando acabou o jogo, o campo da Gávea foi tomado. Não havia ninguém no vestiário do Flamengo que não estivesse chorando e rindo ao mesmo tempo. Todos cantavam a música tradicional das arquibancadas, herdada de cânticos ingleses, e que, à época, era cantada por todas as torcidas: “Glória, Glória, Aleluia/ Glória, Glória, Aleluia/ Nós somos campeões”. Lá estavam Galo, Joaquim Guimarães e flamenguistas de outros tempos. Também o escritor paraibano José Lins do Rêgo tinha vontade de cantar. Não cantava, gritava Flamengo e ia abraçar, um a um, todos os jogadores. Se Ary Barroso estivesse lá cantaria “Flamengo que me faz chorar”. E Jaime de Carvalho, da Charanga Rubro-Negra, correndo de um lado a outro para avisar que a torcida iria a pé da Gávea até a sede do Flamengo. Nada de bonde. Os bondes estavam bons para a torcida do Vasco, que ia embora de cabeça baixa. O torcedor do Flamengo tinha que levantar a cabeça e empinar o queixo. Tinha era de se espalhar, sambar, pular, puxar cordão, alegrando todas as ruas, fazendo escancarar todas as janelas, com a gente que vinha para ver toda aquela festa. O bloco tinha de atravessar o Jardim Botânico, a rua São Clemente inteira, a praia de Botafogo, a avenida da Ligação e a praia do Flamengo. Ninguém, porém, achava longe. Parecia que a sede do Flamengo era logo ali. A festa do tricampeonato foi inesquecível.

No ano seguinte, a possibilidade do quarto título consecutivo logo naufragou. O primeiro semestre já havia sido ruim, com o Flamengo sendo goleado por Fluminense (4 a 0), Vasco (5 a 1) e América (6 a 2). Logo no primeiro turno do Carioca, o Flamengo vacilou, com derrotas para América, Botafogo e Vasco e se afastou dos líderes. Ameaçou mostrar reação no segundo turno, mas não mostrou força suficiente. Mas nada apagava o que havia representado o primeiro tri carioca.

O espírito do Flamengo se encaixou perfeitamente na imagem modernista do carioca: amante da festividade orgiástica, de personalidade levemente transgressora, que improvisa e é criativo nas relações interpessoais, manipulando com simpatia aqueles com quem se relaciona. Um personagem até então essencialmente cordial. O Rio pagaria o preço por este perfil exatamente quando, muitos anos depois, ao enfrentar sua decadência econômica, social e política (nessa ordem), esta última característica (a cordialidade) se perdeu. Sem o tom cordial de outrora, essa sociologia migraria para uma predominante e exacerbada falta de respeito para com o próximo, que passa a ser um mero otário da vez. Ignoram-se lições do passado. Como cantaria Jorge Ben Jor, anos depois: “Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem”. Estes tempos deveriam servir de inspiração para a cidade.

De onde teria vindo este perfil? Ele não foi hipocritamente forjado, nasceu de uma constatação e só foi exaltado. Talvez fosse tão só o encontro das virtudes de todas as partes do país que se reuniam na capital federal. Gaúchos, mineiros, baianos, pernambucanos, paraibanos, paraenses, amazonenses e cada povo do Brasil. Os diferentes Brasis se encontravam no Rio de Janeiro, atraídos pelos serviços públicos, pela esperança do progresso do país, por um futuro de modernidade esperada, pela Paris dos Trópicos, pela Princesinha do Atlântico.

O Flamengo havia deixado para trás os tempos de crise, havia mudado de patamar, definitivamente estava engrandecido. Ganhara a multidão e ia fazendo vítimas em sua caminhada. Uma das vítimas preferidas foi o time do Bonsucesso, a quem em 1946 meteu duas goleadas acachapantes (12 a 1 na Gávea e 10 a 0 em Teixeira de Castro), em 1945 já o havia metido 10 a 1. Mas nem tudo foi felicidade nestes dias. Sempre há capítulos tristes na história que vai sendo escrita. Um dos mais tristes para o Flamengo, até então, ocorreu no dia 6 de julho de 1946, numa vitória sobre o Bangu, por 4 a 0, pela primeira rodada do primeiro turno do Campeonato Carioca, em jogo disputado no campo do São Cristóvão, na rua Figueira de Melo. Zizinho, o maior ídolo rubro-negro, o substituto de Leônidas no coração dos torcedores, sofreu entrada violenta e fraturou tíbia e perônio. A contusão o deixou seis meses fora dos gramados. O maior craque rubro-negro só voltou aos campos em 1947.

Triste coincidência na história rubro-negra. Quase quarenta anos depois, foi também contra o Bangu que Zico, o maior ídolo da história flamenguista, sofreu fratura de tíbia e perônio, após uma violenta entrada do lateral direito banguense, Márcio Nunes. Esta partida ocorreu em 29 de agosto de 1985, num empate por 0 a 0 no Maracanã, pela segunda rodada do primeiro turno do Campeonato Carioca daquele ano. Numa história muito parecido, Zico só viria a voltar aos gramados sete meses depois, no Carioca de 1986. Triste paralelo na história dos dois maiores jogadores da história do Flamengo.

Todos queriam ver o Flamengo jogar. As cores rubro-negras tinham ganhado uma dimensão nacional. A gente de todos os cantos queria visualizar fisicamente aquilo que viajava por seu imaginário nas transmissões de rádio. No ano de 1947, o Flamengo deu seu mais longo giro de até então pelo Brasil, fazendo amistosos. Sobretudo no primeiro semestre, enquanto disputava o Torneio Municipal. Nunca o clube havia viajado tanto e levado suas cores a tantos diferentes lugares do Brasil. Entre fevereiro e abril, foi primeiro a Belo Horizonte, jogar contra Atlético Mineiro e Cruzeiro. Daí partiu para o interior de São Paulo, enfrentando Nacional, Ponte Preta, um Combinado de Campinas, Sanjoanense, Fortaleza de Sorocaba, e XV de Piracicaba. Em maio, foi para o sul, para Porto Alegre, onde enfrentou Internacional e Cruzeiro Gaúcho. Em junho, partiu para o Nordeste, onde enfrentou Vitória, Guarani Baiano e Bahia, em Salvador; Sport e Santa Cruz, em Recife; e a seleção do Rio Grande do Norte, em Natal. Ainda fez um Fla-Flu amistoso na Ilha do Retiro, em Recife. Foi a segunda vez na história em que houve um Fla-Flu fora do Rio de Janeiro (a outra tinha sido no Pacaembu, em 1942). Dois anos depois, em 1949, Fla e Flu voltaram a excursionar juntos pelo Nordeste, enfrentando-se em Fortaleza e em Salvador.

Com suas viagens pelo Brasil, o Flamengo também começou a receber cada vez mais jogadores vindos de outros rincões do país, aspiravam vestir o vermelho e o preto. Eles costumavam ficar hospedados em pensões próximas à sede do clube, na praia do Flamengo. Muitas vezes não havia sequer quartos para todos, que estavam temporariamente na cidade, à espera de um teste no futebol. Muitos dormiam na sala mesmo, em colchões e colchonetes improvisados. Iam-se construindo personagens, algumas vezes mitológicos. Pelo calor, as casas costumavam pernoitar de janelas abertas no verão. Naquele tempo, infrator era o chamado ladrão de galinha, ou gatuno, como o povo chamava. Desarmado, entrava numa residência ou outra, de madrugada, tentando conseguir um punhado de dinheiro ou de joias. Nas pensões ocupadas pelo pessoal do Flamengo era difícil ver um. Mas vez por outra havia aquele que, desavisado, metia-se a besta. Uma vez, pulou um pela janela no meio da noite. Com o barulho, os seis homens que dormiam no chão e sofás do recinto pularam todos de uma vez. Assustado, o intruso deu meia-volta, pulou pela janela e desapareceu. Nunca mais voltou a aparecer por aquelas bandas.

Mas o pessoal do bairro estava preocupado com as invasões às residências, elas vinham aumentando depressa. Resolveram então pagar uns contos de réis a um vigia noturno, que faria a ronda por três quarteirões para tentar reprimir os gatunos. Foi a turma dos atletas do Flamengo que arrumou um candidato, o seu Simião, um baixinho de cabelos grisalhos, que acabou ficando com o posto. Deram-lhe um revólver. Mas avisaram: Seu Simião, não vai dar tiro em ninguém, pelo amor de Deus. Isso aí é só para intimidar os bandidos e mantê-los longe daqui. Não arruma problema para a vizinhança, ou a prefeitura vai vir reclamar.

E eis que um dia o Seu Simião vê um rapazote pulando o muro de uma casa do bairro e põe-se a correr atrás dele. Lá pelas tantas, já esbaforido, puxa a arma e dá um tiro para o alto. O disparo acertou o lustre da varanda, no segundo andar da casa do doutor Helberto, médico de todas as famílias dali. No dia seguinte, o Helberto o procurou: Seu Simião, como é que o senhor me vai dar um tiro em direção à minha varanda? Imagina se eu tivesse acordado com a barulheira e saído para ver o que se passava? O senhor poderia ter me matado. Ouviu o outro retrucar: mas doutor, eu juro que atirei foi para cima. É que estava ventando muito e a bala foi parar na luminária do senhor. Mas não foi culpa minha não, foi o vento. Eram tempos de formação, camufladas pelo anonimato, de figuras mitológicas daquele Rio antigo.

O Flamengo sempre foi diferente dos outros. Para jogar no time rubro-negro tinha que ter um algo mais. Quem melhor capturou este espírito em palavras foi mais uma vez o dramaturgo Nélson Rodrigues. Em artigo publicado no jornal O Globo em 25 de novembro de 1963, ele assim recitou: "Amigos, para os idiotas da objetividade, a camisa é um vago trapo. Mas para quem conhece o Flamengo, a coisa é muito mais misteriosa e muito mais dramática. Nos momentos da catástrofe, o rubro-negro iça a camisa como um estandarte de chama".

E o rubro-negro não aceitava quem não desse a alma por ela, ou quem ele achava que não tinha dado, estivesse ele certo ou não. Eis que para o Campeonato Carioca de 1947 o Flamengo foi buscar um craque no time do Vasco: Jair da Rosa Pinto. Ele foi o principal nome do time na temporada, ao lado de Zizinho, mas, mesmo assim, o Flamengo ficou fora da luta pelo título. Como também ficou em 1948 e 1949. Jair acabou sendo mandado embora em 49 após uma partida contra o Vasco na Gávea. O motivo? Falta de raça. Apesar de craque do time, ele saiu de campo naquela partida, segundo dirigentes e torcedores, com a camisa seca. Por não haver corrido em campo, foi expulso do clube. Foi para o Palmeiras, onde viveu os melhores momentos de sua carreira. E foi titular da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1950. Não importava seu status, pois o rubro-negro concluiu que para ele o Jair não servia. Pouco antes, pela porta que entrara Jair, havia saído Pirilo, que após nada menos do que sete temporadas como artilheiro rubro-negro, trocou o Flamengo pelo Botafogo. O vermelho e o preto já não eram mais cores de um ou outro ídolo, já eram de uma penca deles.

Nada abalava o prestígio rubro-negro. Não era só o interior do Brasil que queria ver o Flamengo jogar, a fama do clube expandia cada vez mais fronteiras. No início de 1948, o Flamengo fez a terceira excursão ao exterior de sua história. Em 1933, havia feito três partidas em Montevidéu e uma em Buenos Aires. Em 1941, jogou quatro amistosos em Buenos Aires e um em Rosário. Até então, o Flamengo só havia enfrentado adversários estrangeiros da Argentina (doze vezes) e do Uruguai (sete vezes). Desta vez, em 1948, o Flamengo foi ao Chile, participar do Quadrangular de Santiago, enfrentando à seleção universitária chilena, o Magallanes local, e o Olímpia, do Paraguai. Todos os jogos foram no estádio nacional de Santiago.

Foi igualmente em 1948 que o Flamengo enfrentou pela primeira vez um clube europeu. O Southampton, da Inglaterra, veio em excursão ao Brasil. A partida contra o Flamengo foi em 6 de junho de 1948, em São Januário, e juntou, segundo estimativa da Polícia Militar feita à época, 40 mil pessoas no estádio do Vasco (que tem capacidade oficial para 35 mil). Foi o acontecimento do ano. O Flamengo perdeu por 3 a 1, mas a torcida saiu satisfeita, dizendo que o Mengo havia conseguido jogar de igual para igual contra os ingleses, inventores do futebol.

Os europeus também vinham ao Brasil enfrentar outros adversários, não só ao Flamengo. Mas nenhum duelo reverberava mais e causava expectativa maior do que aqueles contra a camisa rubro-negra, que eram os que efetivamente arrastavam maiores multidões. Se, no ano anterior, o Flamengo havia jogado sua primeira partida contra uma equipe europeia, só em 1949 vieram excursionar no Brasil: Arsenal, da Inglaterra; Rapid Viena, da Áustria; e Malmoe, da Suécia (com quem o Fla jogou duas vezes). O Flamengo ainda fez uma excursão absolutamente insólita naquele ano: foi à América Central, na primeira vez na qual as cores do clube jogaram fora da América do Sul. Fez cinco jogos consecutivos contra a seleção da Guatemala num intervalo de somente oito dias, vencendo os cinco.

Os projetos rubro-negros galgavam cada vez horizontes mais distantes. E o Rio via cada vez maior grandeza vindo pelo horizonte. A dimensão e a grandiosidade dos projetos que cercaram o Rio de Janeiro atraíram gente de todas as partes. Em 1940, a população da cidade era de 1,75 milhão de habitantes. Ao final desta década, saltou para 2,5 milhões. Nos anos 40, calcula-se que chegaram cerca de 700 mil migrantes à cidade, oriundos principalmente das regiões mais pobres de Minas Gerais e do Nordeste. Explodiu o processo de favelização nas encostas da cidade. Mas o grosso desta massa migrante se instalou nos municípios periféricos à capital federal: Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis (na Baixada Fluminense) e São Gonçalo (periferia de Niterói) tiveram um crescimento populacional vertiginoso.

Em 1940, as cidades da Região Metropolitana à exceção do Rio de Janeiro tinham somadas uma população de 450 mil pessoas. Em 1950, já eram 800 mil. Em 1960, 1,6 milhão. Já na cidade do Rio, a população saltara para cerca de 2,5 milhões em 1950 e para cerca de 3,3 milhões em 1960. Neste processo se deu a favelização. Não parava de chegar gente. Afinal, num país onde 40% da população, no início do século XX, era de ex-escravos, socialmente desassistidos, não faltaria povo carente. O Rio, como vitrine para o mundo, possibilitava alguma ascensão na escala socioeconômica, e isto atraia muita gente.

A própria velocidade com que estas mudanças ocorreram foi responsável por uma construção desordenada e descontrolada dos grandes centros urbanos. O deslocamento de uma enorme quantidade de trabalhadores rurais e ex-escravos para os grandes centros foi um movimento gigantesco para longe de uma vida organizada em escala menor para uma organizada em larga escala. As pessoas fugiram de uma sociedade autossuficiente e isolada na tentativa de aumentar seus padrões de vida por meio da interdependência de uma economia mais ampla e mais dinâmica.

O Rio de Janeiro sempre conviveu com as dificuldades de transporte, impostas por sua linearidade geográfica exprimida entre a montanha e o mar. O translado do trabalhador era caro. Para se reduzir os custos com transporte, minimizando o deslocamento trabalho-residência, incentivou-se a ocupação das encostas. As preocupações sociais da Igreja e de parte da elite com a subsistência do trabalhador seriam cruciais para estimular a ocupação de tais terrenos.

Só cinquenta anos depois, quando o tráfico de drogas passaria a usar o alto dos morros como posição militar estratégica de proteção no confronto armado contra a polícia, é que a sociedade carioca começaria a se questionar por que as favelas estavam ali, em cima dos morros. Só com a explosão da criminalidade, na década de 1980, é que o incentivo à formação da favela passou a ser enxergado como um erro. Mas poderiam elas ter estado em outro lugar?

Com este processo de migração em massa, pequenas ocupações, muitas delas existentes desde o começo do século XX, ganham porte. A primeira grande favela foi o morro da Providência, no Centro. Depois se expandem Mangueira, Salgueiro, Favela da Maré, Cidade de Deus, Vigário Geral, Vidigal e Rocinha. A soma dos moradores de todas as favelas da cidade superou 150 mil nos anos 40. Nos anos 60, já chegara a 350 mil. E não parou mais de crescer. Nos anos 70, superava 650 mil. Nos anos 80, já passava de 850 mil o número de cidadãos nestas comunidades de baixa renda.

A população que chegava para ocupar as favelas vinha essencialmente da zona rural do Brasil. Não há nome mais sugestivo para realçar essa ocupação do que o da favela da Rocinha. Porque é o que elas eram no início: pequenas roças. No Rio, ao redor dos ricos, sempre se instalavam pobres prestadores de serviço e fornecedores de perecíveis. Na favela, o quintal dos pequenos casebres tinha galinheiro e plantação de hortaliças. Tudo acabaria na mesa dos abastados, por um precinho naturalmente mais em conta, de forma que todos se satisfaziam com aquele “equilíbrio econômico”: menos custos para o rico e alguma grana no bolso dos menos assistidos.

Mas houve tentativas de remoção e de regulação por parte de sucessivos governos. Só que essa multidão migrava de um lugar desocupado para um abandonado com uma facilidade indescritível. E, logo, áreas novas viravam outra favela, com gente removida aqui ou acolá em uma nova tentativa de reordenamento urbano qualquer. Quando essa multidão chegou e conheceu o Flamengo – e foi caso de paixão à primeira vista – o vermelho e o negro já tinham tomado cores de gigantismo. A atração pelo clube correu Brasil afora pelas cartas de saudade dos migrantes para os parentes que tinham sido deixados para trás. Se o rádio foi o primeiro difusor a construir sonhos na imaginação, as cartas chorosas dos migrados foram o cimento a solidificar a dimensão nacional do rubro-negro carioca.

A Copa do Mundo de 1950 deu um impulso ainda maior de crescimento ao futebol no Brasil. A derrota para o Uruguai na final, em pleno Maracanã, foi uma grande decepção. Mas com o espírito da Copa, aflorou o sentimento da necessidade de organização de um campeonato em nível nacional. Organizou-se o 1º Torneio Rio–São Paulo no primeiro semestre de 1950. O desempenho do Flamengo, entretanto, foi um fiasco: uma vitória, dois empates e três derrotas. Por este fracasso, Zizinho saiu do Flamengo e foi para o Bangu alguns meses antes de a Copa do Mundo ter começado.

O maior legado da Copa, entretanto, foi o Maracanã, o maior estádio de futebol que o mundo já havia visto. Neste mesmo ano, o Flamengo pisou no estádio pela primeira vez. A relação inicial do clube e do estádio foi muito ruim, apesar de ter conseguido uma vitória sobre o Bangu em sua primeira atuação no Maracanã (3 a 1, numa partida amistosa em 23 de julho de 1950).

A segunda vez foi muito pior. Também contra o Bangu, mas agora já valendo pelo Campeonato Carioca, acabou com goleada banguense por 6 a 0. A campanha do Flamengo no Carioca daquele ano foi muito ruim, o rubro-negro não passou de um sétimo lugar, tendo terminado à frente apenas de Madureira, Bonsucesso, Canto do Rio e São Cristóvão. Depois de goleado pelo Bangu, os jogos do Flamengo que se seguiram no Maracanã foram: empate por 2 a 2 com o América, derrota de 2 a 1 para o Vasco, derrotas de 1 a 0 para Botafogo e de 2 a 1 para Fluminense, vitória de 4 a 2 sobre o Bonsucesso, derrotas para Olaria (2 a 1), Grêmio (3 a 1, em amistoso comemorativo dos 48 anos do Flamengo), Vasco (4 a 1) e Botafogo (4 a 2). Uma nova vitória, agora sobre o Madureira (5 a 3), e mais uma derrota: 2 a 1 para o América. Um catastrófico começo na relação com o maior do mundo: nas treze primeiras vezes que jogou no Maracanã, o Flamengo venceu só três, empatou uma e perdeu nove!

Em 1951, o clube fez sua primeira excursão à Europa. Até então o Flamengo havia duelado cinco vezes contra equipes europeias, sempre no Rio de Janeiro, das quais vencera três, empatara uma e perdera outra. A excursão à Europa neste ano teve dez jogos, entre Suécia, Dinamarca, França e Portugal. O Flamengo deixou a equipe reserva jogando o Torneio Municipal e embarcou para o Velho Continente. Empatou com o Malmoe, da Suécia, na estreia em solo europeu; depois deslanchou. Já na segunda partida venceu o AIK, em Estocolmo, por 6 a 1. Voltou a jogar com o Malmoe, desta vez vencendo. Seguiram-se mais quatro vitórias na Suécia e uma em Copenhagen, na Dinamarca. De lá o Flamengo seguiu para Paris, onde enfrentou o Racing no Parc des Princes. Goleou os franceses por 5 a 1. Última parada em Lisboa, com vitória de 3 a 0 sobre o time do Belenenses – a nona consecutiva em território europeu. A excursão foi um sucesso absoluto. Empolgado, na volta, o time venceu o Torneio Início de 1951 e entrou motivado para tentar o título do Campeonato Carioca, que não vencia desde a conquista do tri, em 1944. Começava a ser formado o time que voltaria a lhe dar um título.

No embalo da Copa do Mundo no Brasil, o time do Flamengo recebia convites para jogar em todas as partes. Em janeiro de 1952, houve um amistoso no Maracanã contra o Deportivo Cali, da Colômbia, no qual o Flamengo saiu vencedor por 3 a 1. Desta partida, surgiu um convite para uma excursão pela América do Sul, logo após o Torneio Rio–São Paulo. O Flamengo agendou partidas no Peru, na Colômbia e no Equador. Deixou a equipe reserva jogando o Torneio Extra do Rio de Janeiro e embarcou para o exterior com a equipe titular. Fez onze partidas, vencendo sete e empatando três. Sofreu só uma derrota, mas por goleada: 4 a 1 para o Millonarios, da Colômbia.

O Rio crescia. O Brasil aflorava como impávido colosso. O futebol brasileiro amadurecia. O Flamengo lançava-se às Américas e à Europa. As coisas ganhavam novas dimensões. Podia-se ver tal rearranjo mesmo dentro do futebol carioca. Não paravam de ser construídos estádios de futebol na cidade. Em 1941, foram inaugurados os estádios da rua Conselheiro Galvão (Madureira) e o Caio Martins, em Niterói (pertencente ao Canto do Rio). Em 1947, inaugurou-se o estádio da rua Bariri (Olaria) e, no ano seguinte, um novo estádio para o Bangu, em Moça Bonita. Mais tarde, em 1960, ainda viria a ser inaugurado o estádio de Ítalo Del Cima (Campo Grande). Era o segundo ciclo de profissionalização e crescimento do esporte bretão.

O futebol carioca, depois que adentrou a era profissional, tornou-se um clube fechado. Todo ano eram os mesmos times que disputavam a Primeira Divisão. Aos mais tradicionais (Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo e América), juntavam-se Bangu, São Cristóvão, Madureira, Olaria, Portuguesa, Canto do Rio e Bonsucesso. Estes doze disputavam ano após ano o Campeonato Carioca. Mudança só em 1962, quando o Canto do Rio foi substituído pelo emergente Campo Grande. E foi só. Daí para a frente, só houve novos participantes depois da fusão entre o Estado da Guanabara (cuja capital era a cidade do Rio de Janeiro, uma cidade-estado) e o antigo Estado do Rio de Janeiro (cuja capital era Niterói).

O Flamengo não levantava um campeonato de futebol havia nove anos. O padre Góes, da Igreja de São Judas Tadeu, flamenguista fanático, sofria. Em 1953, quando não aguentou mais, foi à Casa Grande da Gávea e lá, sem preâmbulo, com os jogadores em volta – Fleitas Solich mostrando os dentes de coelho num riso, Gilberto Cardoso sério, como numa igreja – garantiu que, em nome de São Judas Tadeu, o Flamengo ia ser campeão de 1953. Mas os jogadores tinham que ajudar um pouco: não custava nada ir às missas de domingo na manhã antes de cada jogo. Quando chegou a manhã da partida decisiva, Gilberto Cardoso, Fleitas Solich, Alves de Morais, todos os jogadores, até o dr. Rúbis, com velas na mão, ajoelharam-se diante do altar da Igreja de São Judas Tadeu, no Cosme Velho. Foi tiro e queda: Flamengo campeão. Isto, evidentemente, irritou os beatos de outros clubes, como se São Judas Tadeu viesse a interferir no campeonato da cidade. Escreveram uma reclamação ao cardeal dom Jaime Câmara contra o padre Góes. Só que não demorou muito e apareceram, em outros campeonatos, padres vestidos de Vasco e Fluminense embaixo da batina.

Antes do título carioca, no início de 1953, o Flamengo conquistou seu primeiro título internacional, o Quadrangular de Buenos Aires, disputado entre Flamengo, Botafogo, San Lorenzo e Boca Juniors. O time empatou os dois primeiros jogos, disputados em La Bombonera – 2 a 2 frente ao San Lorenzo e 1 a 1 frente ao Boca Juniors – e foi para a final contra o Botafogo. Dois cariocas enfrentando-se no estádio Monumental de Nuñez. O Mengo venceu por 3 a 0 e levantou a taça.

Para voltar a ser campeão carioca, o Flamengo contratou, em 1953, ao técnico paraguaio Fleitas Solich. Em 1949, quatro anos antes, já havia contratado o goleiro titular da seleção paraguaia, Garcia. Antes do campeonato de 1953 também trouxe outro goleiro estrangeiro: o argentino Chamorro. E ainda adquiriu mais um paraguaio, o centroavante goleador Benítez. Assim, foi novamente com quatro estrangeiros no elenco, três paraguaios (Bria continuava no time) e um argentino, e com um no banco como treinador, que o Mengo voltou a ser campeão.

Quando chegou à Gávea, Fleitas Solich, o Feiticeiro, acabara de vencer o Campeonato Sul-Americano com o Paraguai, disputado no Peru em março de 1953, no qual venceu o Brasil na final. Em abril, ele foi apresentado como novo técnico do Flamengo (nenhum dos três paraguaios – Garcia, Modesto Bria e Benítez – participou da campanha do título sul-americano com Solich). Logo de cara, o Feiticeiro ganhou o Carioca daquele ano, levando o Flamengo de volta a uma conquista. E não parou de conquistar, vencendo o segundo tri (1953/54/55). Ele ficou no Flamengo até 1962, com uma interrupção para uma temporada no futebol europeu (1959/60) quando seu sucesso na Gávea o levou a ser contratado como treinador do Real Madrid. Neste período, Solich dirigiu o Flamengo em 464 partidas. Ainda voltou no segundo semestre de 1971, quando o dirigiu por mais 39 vezes.

O Flamengo interrompeu uma sequência de oito campeonatos sem títulos com um dos trios de ataque mais fortes de sua história: Rubens, Índio e Benítez. Nas pontas ainda tinha a Joel pela direita, e a Esquerdinha pelo lado esquerdo. O goleador do time na temporada foi Índio, com 41 gols. O dr. Rúbis, como ficou conhecido Rubens, era o cérebro do meio de campo. Chegara ao clube em 1951, depois de haver passado por Ypiranga e Portuguesa, ambos de São Paulo. Foi o grande articulador do Flamengo nesta geração, o jogador que decidia partidas. O terceiro matador do time tricampeão era o paraguaio Benítez, que chegara em 52, quando havia sido o goleador rubro-negro na temporada. Para completar o grupo que levantou o segundo tricampeonato carioca da história rubro-negra, estrearam no Flamengo, em 1953, os jovens Mário Zagallo e Evaristo de Macedo. Ambos entraram para a galeria de grandes jogadores da história do Flamengo, foram técnicos de sucesso e chegaram a dirigir ao time da Gávea.

O Flamengo, cada vez mais grandioso, três anos depois de sua primeira excursão à Europa voltou a pisar em solo europeu, fazendo uma das mais longas excursões de sua história, foram quase dois meses inteiros viajando. O Mengo passou pela Itália, onde empatou por 2 a 2 com um combinado Milan-Internazionale, em pleno estádio San Siro, em Milão. Empatar, aliás, foi a tônica da excursão, foram sete em doze jogos; nos demais: três vitórias e duas derrotas. O Flamengo passou ainda por Alemanha, Hungria e Áustria. Foi, inclusive, o primeiro time brasileiro a jogar no Leste Europeu – naquele tempo sob a Cortina de Ferro do comunismo da União Soviética. Na Alemanha, o time empatou com Stuttgart e Hamburgo, e goleou por 4 a 1 o Werder Bremen. Vencer os duelos contra os poderosos clubes europeus passou a significar um sinal de grandeza. Mas não foi por estas vitórias que as cores vermelha e preta tingiram a multidão.

No Carnaval de 1954, estourou nos salões de baile uma marchinha de carnaval que ajuda, em muito, como uma pista, a entender de onde vinha a popularidade do Flamengo. O autor era o Capitão Mengo, um folclórico torcedor rubro-negro, personagem das arquibancadas dos estádios de futebol do Rio daqueles tempos. A letra da marchinha cantava: “Doutor Gilberto, quero o tricampeonato/ Mister Solich, quero ser tricampeão/ 42-43-44, imitando, é uma boa imitação/ Mengo, tu és o maior/ Mengo, tu és do farol/ Ser Flamengo é viver num desacato/ Ser Flamengo como o Capitão”.

Numa cidade que sempre teve aversão a regras e normas, que debochava da ordem e que cultivava a indisciplina, ser Flamengo era viver em desacato, avesso à ordem, à disciplina e às normas. Era o velho espírito jovem que montou um clube para desbancar os clubes dos velhos aristocratas, que encarnava a República Paz e Amor, que defendia o elmo nacionalista frente aos colonizadores portugueses. Foi assim que o Flamengo foi conquistando multidões.

Mas eram necessárias também grandes vitórias e grandes epopeias. No dia 27 de fevereiro de 1955, houve uma grande festa no Maracanã para comemorar a conquista do bicampeonato. A Estação Primeira de Mangueira desfilou pelo gramado na presença de três beldades: a Miss Brasil Marta Rocha e as estonteantes atrizes de Hollywood Ginger Rogers e Elaine Stewart, estrelas do primeiro escalão das grandes produções norte-americanas. A estonteante loira Ginger Rogers, então, era o grande sonho a eletrizar os desejos masculinos do Brasil e do mundo. Eram os velhos tempos em que Hollywood frequentava a praia de Copacabana para desfrutar o verão carioca. Muito distante da realidade de trinta a quarenta anos depois, quando Cindy Crawford, Gwyneth Paltrow, Nicole Kidman e tantas outras jamais cogitavam passar férias no Brasil.

O ano de 1955 foi soberbo. Não só pelo tri. O Flamengo atingiu a incrível marca de vitória em mais de 70% das partidas disputadas durante o ano, incluindo o Torneio Rio–São Paulo, o Campeonato Carioca e amistosos. Teve entre os adversários o Estrela Vermelha, da Iugoslávia, e o Benfica, de Portugal (ambos no Maracanã), o Nacional e o Peñarol, do Uruguai, e o Racing e o Independiente, da Argentina.

O Flamengo gozava de grande prestígio internacional naquele momento. Antes do surgimento do Santos de Pelé, a popularidade do vermelho e do preto no Rio de Janeiro fazia com que não houvesse outro clube brasileiro mais requisitado do que ele para mostrar seu futebol pelo mundo. Desde 1952 não perdia para um adversário estrangeiro da América do Sul (oito vitórias e quatro empates). E no confronto histórico com equipes europeias, incluindo duas excursões à Europa e amistosos no Rio de Janeiro, acumulava, de 1948 a 1955, dezoito vitórias, nove empates e somente três derrotas.

Era mais uma vez um momento realmente mágico para o torcedor rubro-negro. Com o tricampeonato do Flamengo, compôs-se uma das canções sobre futebol mais marcantes no Brasil. O samba no Rio de Janeiro sempre deu espaço para letras referentes ao esporte bretão, foram muitas as músicas de salão que falavam do esporte nos anos 30 e 40. Porém, nenhuma até então havia pegado tanto como aconteceu com o Samba rubro-negro, na boca de Roberto Silva, que em 1955 apareceu cantando: “Flamengo joga amanhã, eu vou pra lá/ Vai haver mais um baile, no Maracanã/ O mais querido, tem Rubens, Dequinha e Pavão/ Eu já rezei pra São Jorge, pro Mengo ser campeão/ Pode chover, pode o sol me queimar/ Que eu vou pra ver, a Charanga do Jaime tocar/ Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar/ Quando o Mengo perde, eu não quero almoçar, eu não quero jantar” – letra de Wilson Batista e Jorge de Castro. O samba foi regravado no início dos anos 80 pelo sambista João Nogueira, com o refrão substituindo “Rubens, Dequinha e Pavão” por “Zico, Adílio e Adão”, e voltou a fazer muito sucesso.

Tudo estava dando certo para o clube naquele momento. Em 1955, explodiu mais um craque no Flamengo, ainda que na reserva do time que conquistou o tricampeonato: Dida. Ele foi descoberto em Maceió, durante uma excursão do time de vôlei feminino do Flamengo. No Rio de Janeiro, passou na seletiva e ingressou no futebol do clube. Despontou quando foi escalado para o lugar de Evaristo na partida decisiva contra o América: 4 a 1 Flamengo – tricampeão carioca, com quatro gols de Dida. Naquele mesmo campeonato ele já havia feito quatro num único jogo, na vitória por 5 a 0 sobre o Canto do Rio. Foram os primeiros sinais de que um grande jogador chegava ao Flamengo. Depois dos outros quatro na finalíssima não restava mais dúvida. O clube ganhava um novo ídolo. O jogador que chamou a atenção do garoto Zico, que jogava suas primeiras peladas nas ruas de Quintino, vindo a tornar-se o ídolo do maior ídolo do Flamengo.

A grandeza rubro-negra só fazia crescer, era o clube brasileiro mais demandado para viagens para mostrar seu futebol no Brasil e no exterior. Nada aconteceu como um plano consciente de popularização da marca vermelha e preta. Era uma consequência natural da conquista das multidões. Nos anos de 1910, foi um Flamengo e Botafogo que lotou General Severiano e mostrou, pela primeira vez, que o futebol estava superando o remo no gosto e no conceito popular. Nos anos de 1920, um Flamengo x Vasco superlotou as Laranjeiras de uma forma que não havia acontecido nem na final do Sul-Americano para a gente ver a conquista da seleção brasileira. Ao final dos anos 40, foi um jogo do Flamengo em São Januário, contra o Southampton, que marcou o recorde de público em jogos de futebol na era pré-Maracanã. A sua capacidade diferenciada de arrastar multidões era fato consumado e inquestionável. E dentro de um contexto de construção do Rio de Janeiro como símbolo da brasilidade e da modernidade, reluzia o vermelho e o negro para o país inteiro e para o estrangeiro que olhava para o Brasil, que constatavam ali uma paixão diferenciada.

O Flamengo não era a elite, nem era a classe média nem a camada mais pobre. O Flamengo não representava a Zona Sul, apesar de estar nela, e jamais foi Zona Norte. Mas o Flamengo tocava no espírito do Rio de Janeiro – carnavalesco, malandro, irreverente, libertino – e com isto penetrou a elite, a classe média, a massa, o povão, da Zona Sul à Zona Norte. Conquistou o Rio inteiro. A cidade que era a capital federal, que era onde se encontravam os representantes de todos os estados do país, que era o berço do samba, a pérola do Atlântico, onde Hollywood vinha passar suas férias. Aquela alegria festiva das arquibancadas – que a torcida do Mengo fazia como ninguém – correu o Brasil pelas ondas do rádio, fazendo brasileiros de todos os cantos fantasiarem aquela festa que não era tão comum em seu cotidiano. O Flamengo conquistou o país inteiro.





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