sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Flamengo, uma bagunça geral


Recordar é viver, diria a sabedoria popular. Quem vê o Flamengo de 2018 a 2021, duas vezes campeão brasileiro e duas vezes vice, sem mal lembrar o que é mais um terceiro lugar a nível nacional, uma vez campeão da Libertadores e uma vez vice continental, após trinta e oito anos sem chegar a uma final, talvez precise ser relembrado de outrora. A reestruturação financeira conduzida por um grupo de vários executivos rubro-negros a partir de 2013 em muitos comentários parece ser relegada a segundo plano, até porque a cultura nacional prefere endeusar individualmente e buscar heróis solitários, fazendo fácil para a massa esquecer que tudo foi resultado de um esforço coletivo.

Durante este processo de reestruturação e reerguimento, foram muitas as vozes rubro-negras que bradaram que finanças e orçamento não ganhavam jogo, que eram necessários pesados investimentos de curto prazo mesmo que não houvesse dinheiro em caixa para contratar e contratar, sem prudência. Foram muitas as vozes que diziam que fazer dívida desenfreadamente era parte do jogo, que qualquer um se endividava, e esta devia ser a regra. Muitos discursos endossaram a calamidade de uma diretoria que estava trocando dívida pública por dívida privada, ainda que estivessem endossando crimes, já que dívida pública é sonegação fiscal, devidamente enquadrada no código penal. E mesmo depois das finanças enquadradas e das taças conquistadas em 2019, foram muitas as vozes de fora do clube, reverberando na imprensa arco-íris, descaradamente bairrista e clubista, ecoando sobretudo da maior cidade em poder econômico deste país, que desdenhavam os resultados financeiros do Flamengo, e diziam que a saída para os outros clubes que quisessem acompanhar a pujança rubro-negra, era apostar em pesados investimentos de curto prazo mesmo que sem lastro ou dinheiro em caixa para contratar e contratar, sem prudência ou responsabilidade.

Pelo peso de tudo, é sempre válido voltar no tempo e revisitar as consequências finais calamitosas ao fim de um longo período de pesados investimentos sem lastro que geraram dívidas exorbitantes desenfreadamente, amarradas por engenharias financeiras que prometiam soluções miraculosas de curto prazo que só a ousadia irresponsável é capaz de proporcionar. Para revisitar este passado, vamos reler uma série de matérias publicadas a partir de 15 de outubro de 2003 pela Agência Placar, mostrando a bagunça geral instaurada no Flamengo.


Eis abaixo a íntegra destes textos:

"A notícia teve ar tragicômico: após o treino da tarde do último dia 12 de agosto, o banho dos jogadores do elenco profissional do Flamengo teve que esperar. Não havia água nos vestiários. A Cedae, empresa responsável pelo abastecimento de água no Rio de Janeiro, resolveu secar as torneiras da Gávea — o clube não pagou a conta. As agências internacionais trataram de espalhar a vergonha pelo mundo. No texto, não havia necessidade de se explicar que "o Flamengo é um clube brasileiro". O rubro-negro é conhecido nos quatro cantos e a notícia ganhou força justamente por isso — algo como se o Los Angeles Lakers, da NBA, não pudesse treinar por goteiras em seu ginásio ou se o Real Madrid não entrasse em campo por falta de uniforme.

O Flamengo é o maior campeão dos Campeonatos Brasileiros, com cinco títulos, e tem uma torcida estimada em 35 milhões. No entanto, não é nem sombra da fama que tem. Quem trabalha, visita diariamente ou já passou por lá dificilmente não aponta pelo menos um problema grave no funcionamento da Gávea. Salas de ginástica obsoletas, dependências que mais parecem fornos pela falta de ar-condicionado, inadimplência com funcionários e fornecedores, falta de um centro de treinamentos, desrespeito a horários e normas de conduta são apenas alguns desses pontos.

Os vexames se sucedem dentro do campo (vide as três humilhantes goleadas para equipes paranaenses no Brasileirão: 6 x 2 contra o Paraná, 4 x 1 contra o Atlético e 5 x 0 contra o Coritiba) e também fora dele. A campanha mais recente de marketing do clube, por exemplo, foi o carnê "Sempre Flamengo", que dá ingressos a todos os jogos do Brasileiro e direito a participar de promoções no intervalo das partidas e a entrar em campo com os jogadores. Atraiu míseras 75 pessoas. O time oscila hoje no pelotão intermediário do campeonato. Só tem alguma altivez quando comparado aos rivais cariocas, que conseguem estar pior que o Flamengo na tabela. Desde 1992, quando ganhou seu último título nacional, o clube se classificou para a segunda fase do Nacional apenas duas vezes — a melhor colocação foi um quinto lugar em 1997. Nas duas últimas temporadas, quase foi rebaixado.

Hoje, o superlativo do Flamengo é outro: é provavelmente o dono da maior crise financeira do futebol brasileiro. E tudo por conta do desrespeito à regra número um da economia: nunca gastar mais do que se ganha. "Em raros momentos, nós conseguimos um equilíbrio. Mas o Flamengo sempre foi deficitário", afirma Márcio Braga, ex-presidente do clube. A locomotiva rubro-negra começou a se descarrilar de vez em meados dos anos 80. De um clube superavitário — ainda que às custas da venda de Zico, em 1983 —, o Flamengo passou a não pagar mais os encargos sociais e voltou a operar no vermelho. Desde então, a dívida galopa ao ritmo de juros, correção monetária e investimentos furados. Há dez anos, durante a gestão de Luiz Augusto Velloso, o rombo era de 25 milhões de reais. Depois de quatro anos da gestão Kléber Leite, pulou para 83 milhões de reais. E dois mandatos de Edmundo dos Santos Silva a elevaram para impressionantes 200 milhões de reais, apesar da injeção de 80 milhões de dólares da parceria com a ISL. Metade desta dívida responde por impostos, FGTS e outras tributações sociais.

O Flamengo carrega mais de 400 ações trabalhistas — desde a milionária dívida com Romário, que gira em torno de 14 milhões de reais, até salários e prêmios a receber de Sócrates, que passou pelo clube em 1986. Em 2002, pagava salários a sete técnicos simultaneamente: Carlinhos, Evaristo de Macedo, Zagallo, Carlos Alberto Torres, Carlos César, João Carlos e Lula Pereira — todos haviam treinado o time nos três anos anteriores. No início de agosto, uma ação do Sindicato dos Funcionários de Clubes quase levou o rubro-negro à lona. A Justiça bloqueou durante 18 dias a conta corrente na qual o Flamengo recebe depósitos do seu patrocinador, do Clube dos Treze e das mensalidades sociais. Resultado: o atraso nos salários soma dois meses e o episódio da água cortada é só mais um dos vexames do clube. Por uma dívida com a empresa Marcosul, o Flamengo também corre o risco de perder os ônibus que transportam a equipe. 

"Estamos à beira de um abismo. A herança das administrações é um fardo enorme", afirma o presidente Hélio Ferraz. Entretanto, Ferraz também desperdiçou um patrimônio valiosíssimo: o apoio de Zico, maior ídolo da história do clube. O Galinho manifestou sua decepção e rompeu com a diretoria. "Estive reunido com um grupo numa quarta-feira e no dia seguinte estava tudo nos jornais. Como vou confiar? Não posso trabalhar com pessoas assim", disse Zico. "Essa administração me decepcionou muito. Esperava um pensamento de vanguarda, um discurso de mudança adequado à grandeza do clube. Vejo o clube assinando embaixo nos desmandos do futebol do Rio e do Brasil", disse o Galinho.

Por não-cumprimento da opção de compra, o antigo Fla-Barra, um centro de treinamento com quatro campos e uma estrutura bem razoável, é ocupado hoje pelo rival Vasco da Gama. Acanhada, a Gávea oferece apenas um campo e dependências ultrapassadas, com salas pequenas e desconfortáveis. Há menos de um ano, o goleiro Júlio César decidiu bancar do seu bolso um aparelho de ar-condicionado para a sala de fisiologia. "Do lado de fora, você pensa que aqui tem uma baita estrutura... Depois, vê que não é bem assim", diz Edílson.

É um círculo vicioso: o Flamengo não tem receita para bancar suas despesas, atrasa salários, gera dívidas... e queima o filme — seja nos bancos, seja entre os próprios jogadores. É cada vez mais difícil convencer um grande nome a ir para a Gávea. "Ninguém mais tem o desejo de jogar no Flamengo, pois sabe que dificilmente vai receber. Infelizmente, virou um clube com fama de mau pagador", afirma o atacante Caio, ex-xodó rubro-negro, hoje no Grêmio. O clube colecionou, nos últimos anos, negativas de atletas da "expressão" de Wellington Dias, do Brasiliense, e Marcelo Ramos (ex-Cruzeiro). Para desafogar-se da crise financeira, o Flamengo foi obrigado a vender revelações como Reinaldo, Juan e Adriano, que saíram antes de completar 23 anos. "Tínhamos um belo time na campanha do tri, mas o clube se desfez de jogadores e perdeu força", diz o ex-técnico Zagallo, sobre o Brasileiro de 2001, que quase rebaixou o Flamengo.

O caos nas finanças do clube espelha as seguidas más administrações. O resultado é um paternalismo corrosivo ou a falta completa de comando. A promessa recente do presidente Hélio Ferraz de pagar os dois meses de atraso até o fim de agosto foi recebida com ironia. "Tudo bem, eu acredito em Papai Noel", disse Felipe. Alex, estrela cruzeirense neste Brasileiro, teve seu ponto baixo quando passou pelo Flamengo, em 2000. "Foram os três meses mais caóticos de minha carreira. Não havia cobrança, era uma zona. O treino acabava e um ônibus estava ali para levar todos à concentração. Você entrava e só havia quatro jogadores. O resto tinha ido no próprio carro e chegaria sabe-se lá que horas. Na hora do jantar, a mesma coisa: você olhava para o lado e não estavam todos. Chegava 11 horas da noite e seu companheiro de quarto ainda não havia chegado. Sem o mínimo de disciplina, não se vai a parte alguma", afirma. O diretor do Milan, Leonardo, que deu seus primeiros passos numa geração vitoriosa do clube, voltou para uma breve passagem em 2002 e se surpreendeu. "Via uma falta de referência enorme. Tem tantas pessoas que você não sabe quem, de fato, é o chefe, onde ele está, se ele vai te dar alguma satisfação... Cria-se uma distância enorme entre jogadores e direção. E se você não consegue criar esse vínculo, como vai exigir que o jogador demonstre amor à camisa?", diz. O clube chegou a ter, recentemente, três dirigentes para o futebol: o vice-presidente Radamés Lattari, o vice de futebol Paulo Dantas e o supervisor Paulo Angione.

"O Flamengo não pode ter mais um presidente ou um diretor que apenas dê uma passadinha lá no fim do dia. Ele tem de ter dedicação integral", afirma Leonardo. Porém, quem tentou confrontar o amadorismo da Gávea até hoje guarda dúvidas sobre sua viabilidade. "O Flamengo e o profissionalismo hoje me parecem incompatíveis", diz o ex-goleiro e empresário Gilmar Rinaldi, superintendente de futebol remunerado do clube em 1999. "Sempre que tentei fazer mudanças, esbarrava em interesses contrários e não conseguia implantá-las. Até ameaça de morte sofri", afirma.

"O problema é que tem muito ex-presidente vivo", diz um conselheiro rubro-negro. Brincadeira à parte, pelo menos quatro ex-presidentes têm forte presença política no clube. A chapa vencedora de Hélio Ferraz e Radamés Lattari teve de buscar a benção dessas "oligarquias". "O Lula, quando era puritano, perdeu todas as eleições. Quando formou composições, foi menos radical, ganhou", diz Radamés.

O ídolo rubro-negro Júnior reage à alternância dos mesmos grupos no poder. "Esses caras são os grandes responsáveis. E o pior é que ninguém abre espaço neste clã! Essa forma de conduzir as coisas não permite ao clube crescer", afirma. E seja para eternos cardeais rubro-negros, dirigentes atuais ou ídolos eternos, o horizonte rubro-negro anda com nuvens negras. "Precisamos de cinco anos para sair dessa", diz o presidente Hélio Ferraz. "Não há mágica. Em menos de dez anos, nada feito. Se o Flamengo oscila no pelotão intermediário do Brasileiro, é porque hoje não tem como ir além disso", afirma Márcio Braga.





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