sexta-feira, 13 de maio de 2022

A NAÇÃO (2ª edição) - Capítulo II: A era amadora (1912-1936)


A NAÇÃO

Como e por que o Flamengo se tornou

o clube com a maior torcida do Brasil



Capítulo II – A era amadora (1912-1936)


No Brasil, assim como na América Latina como um todo, a estrutura social pós-independência sempre teve particularidades enraizadas na estrutura colonial. Em colônias como os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália, os colonizadores, expulsos da Europa, chegaram com a necessidade de construir uma sociedade nova, para servir de hábitat para suas famílias. A realidade no Brasil foi diferente, pois a colonização de suas terras teve um caráter única e exclusivamente exploratório, sem preocupação de se construir uma sociedade justa e que servisse de hábitat para os que aqui chegavam. Quem vinha, chegava com o intuito de enriquecer e partir.

Nesse ambiente inóspito, sob a força de laços sociais exploratórios destrutivos, valia a disputa por cada fragmento do espaço. Ainda mais numa sociedade enraizada em um sistema que só em 1888 deu fim à escravidão dos negros e em 1889 se desacorrentou das influências da Coroa Portuguesa, com a Proclamação da República. Quando o Flamengo nasceu, em 1895, foi dentro desse contexto de um Brasil novo, emergente. Porém, quase metade da população era de ex-escravos, sem acesso à educação e às condições de inserção social.

O Brasil adentrou o século XX como uma sociedade em que, mais do que nunca, prevalecia a herança de pequenos adensamentos urbanos e das grandes fazendas, comandadas por um coronel e povoadas por uma imensidão de iletrados que constituíam o grosso da mão de obra, mas sem qualquer consciência política. Nessa mal forjada estruturação política, prevalecia a figura dos coronéis, verdadeiros senhores feudais, servindo para edificar um poder político à base da força, cujos valores e ética predominantes, em formação, não eram propícios para cimentar uma república forte e coesa. Nem a tolerância, nem a busca por compromissos e pelo respeito à lei tinham o peso que deveriam ter como virtudes. A carência de um sistema de leis justas e universais fazia com que a admiração se voltasse para a valentia individual, para a audácia, para os vínculos mais primitivos de solidariedade com os mais próximos de seu bando. Fomentava-se o clientelismo para a criação de zonas de respaldo em torno do poder dos coronéis.

O clientelismo urbano é um pilar na complexa ordem social daí emergida. Os donos da riqueza e do poder usam de prestígio para construir uma articulação com o poder público e operar relações de clientela. Ao mesmo tempo, estes têm seus protegidos em meio à massa, os quais operam uma outra clientela fundada exclusivamente neste prestígio adquirido junto ao andar de cima, sob a tutela de um coronel protetor. É nessa estrutura social que emergem a malandragem e a esperteza, vistas como necessárias para sobreviver à escassez extrema. Os protegidos trocam lealdade por proteção, gerando um escambo social no qual a troca de favores funciona como um mercado à parte, paralelo às trocas financeiras e monetárias do mundo da economia.

O carioca, acostumado a viver tão próximo dos três poderes da República, virou expectador preferencial da história e, em muitos momentos, até figurante. Fato que não ocorreu com Brasília, arquitetada para ser uma ilha de poder, onde o povo foi relegado, na periferia das cidades-satélites. Por conta desta proximidade entre a massa e o poder político, o carioca, em seu processo pedagógico de politização, sempre esteve muito mais atento e preocupado com os problemas nacionais do que com a esfera de planejamento local. Esta passará a ser uma característica marcante sua. Enquanto Distrito Federal, a pujança de recursos do serviço público – da capital e do capital – tapava qualquer desarranjo aqui ou acolá no planejamento local. O carioca pagou caro por este espírito cosmopolita de ser depois que Brasília passou a ser Distrito Federal e descapitalizou a cidade.

A experiência pedagógica da proximidade ao poder, ao mesmo tempo, sempre produziu no cidadão uma maior consciência de impotência. Era uma atmosfera, em verdade, pouco hospitaleira, propícia para o beneficiamento, descompromissado com a justiça, em torno dos governantes e de seus achegados na obtenção de vantagens. A ironia foi desenvolvida como um remédio e um exercício de afirmação. E os momentos de festa popular propiciavam um sentimento de fuga frente a tudo isso.

Nesta sopa de culturas, a pitada maior de mescla cultural veio com a explosão da chegada de imigrantes. Com uma indústria incipiente entre o Rio de Janeiro e as plantações de café, que de São Paulo davam o suporte financeiro à economia republicana nascente, a elite, sem ter mão de obra capacitada, apostou no incentivo à imigração como opção econômica. Chegaram ao Brasil, em massa, alemães, italianos, japoneses, finlandeses, húngaros, libaneses, sírios, judeus e ingleses. Com estes últimos, chegava um esporte novo: o futebol.

O futebol brasileiro foi semeado em São Paulo, pelas mãos do Charles Muller. Mas, por suas características, logo se espalhou. Não demorou muito para a novidade navegar para o Rio de Janeiro, tendo o 1º Campeonato Carioca de Futebol sido disputado em 1905. Durante seus primeiros passos, estava longe de conseguir atrair as mesmas plateias que o remo atraía. Um remador traspassava uma imagem de vigor físico esplêndido, tornando-se um símbolo viril para os homens, e um atraente contorno às mulheres. O jogador de futebol não podia competir. Mais não tardou a que as coisas mudassem de figura. E no momento que começavam a mudar, nasceu o futebol no Flamengo.

Durante o Campeonato Carioca de 1911 houve um grande desentendimento entre diretoria e jogadores do Fluminense. A divergência política principal era entre os velhos barões e o capitão e líder do time, Alberto Borgerth. O desentendimento levou a presidência tricolor a afastar Borgerth do time a duas rodadas do fim do campeonato. Ainda assim, o Fluminense manteve-se na liderança e conquistou o título. Após a conquista, Alberto Borgerth, então com 19 anos – e outros nove titulares da equipe campeã de 1911 – anunciou que deixaria o clube.

Na noite em que anunciaram tal decisão, os dez jogadores se reuniram numa república de estudantes na rua do Catete, no dormitório do zagueiro Píndaro de Carvalho, para decidir o que fazer. Para onde ir? A primeira opção que lhes ocorreu foi o Botafogo. Mas lá já havia um time, eles não teriam o mesmo espaço que tinham no Fluminense. A segunda opção seria o Paissandu. Mas lá era um clube só de ingleses, eles não ficariam a vontade, não teriam muita liberdade. Estas eram as opções mais expressivas na Zona Sul, os outros clubes eram todos da Zona Norte, ficaria difícil ir treinar e manter o grupo coeso. Foi Borgerth, que além de jogador de futebol do Fluminense era remador do Flamengo, quem então sugeriu que procurassem a turma da praia do Flamengo. Eles não tinham departamento de futebol. Lá, os dez poderiam estar à vontade, teriam seu espaço, e treinariam perto de casa. Todos aceitaram. Eles, no dia seguinte, foram fazer a sugestão aos diretores do Flamengo. Os remadores aceitaram com ressalvas: que fosse feito um teste para ver se a coisa iria vingar, senão fechava-se o departamento de futebol. Foi assim que, em 1912, o Flamengo tornou-se o primeiro clube de futebol e regatas, embora só conserve a regata em seu nome oficial. O começo foi difícil, pois sem ter um campo, o time tinha que treinar na praia do Russel.

O Rio de Janeiro da época em que o futebol do Flamengo foi criado já tinha cerca de um milhão de habitantes. A cidade ainda conservava as principais características dos tempos coloniais. Ela nasceu dentro de um quadrilátero, entre os morros de São Bento, do Castelo, de Santo Antônio e da Conceição, que cercavam os três principais píeres. O principal era o da praça do Carmo (futura praça XV), por onde desembarcavam os navios que traziam escravos da África. O segundo era o Porto dos Mineiros, que ficava numa área posteriormente ocupada pelo Arsenal da Marinha. O nome deste píer estava associado ao enorme fluxo de embarcações que traziam mineradores portugueses para extrair o ouro e a prata nas Geraes. O terceiro píer era o da Prainha (onde depois foi construída a praça Mauá), por onde chegavam os barcos que traziam alimentos perecíveis vindos de outros pequenos portos no interior da baía de Guanabara. Não por acaso, a rua do Acre tornou-se o Mercado de Alimentos, dominado por comerciantes portugueses e, por causa disso, por muitos anos, um forte reduto do Vasco da Gama.

Ligando os três píeres estava a rua Direita (futura rua Primeiro de Março), principal via da cidade até 1904, quando se inaugurou – paralela a ela e mais larga – a avenida Central (que depois passou a se chamar avenida Rio Branco). No meio deste quadrilátero estava a rua do Ouvidor, que concentrava os principais escritórios comerciais e bancos, e que se tornou um reduto de lojas de luxo, trazendo as últimas modas de Paris para o Rio de Janeiro. Mas no Rio, luxo e lixo sempre andaram perto um do outro. A três quarteirões de lojas luxuosíssimas estava o Campo dos Infames, um reduto cigano alocado onde, anos depois, se construiu a praça Tiradentes.

Do quadrilátero onde cresceu a cidade, partiam dois caminhos: um pela avenida Beira-Mar, em direção à praia Vermelha, que abrigava o comando militar, começava no morro do Castelo e acompanhava a baía, cortando os bairros da Glória, do Flamengo e de Botafogo; o outro, na direção norte, rumo a São Cristóvão, reduto de abastados comerciantes que viviam em torno da antiga residência da Família Real.

As famílias mais ricas viviam em Laranjeiras e Santa Teresa, mais próximas às fontes de água potável. Também havia engenhos de açúcar e cachaça na Lagoa e na Gávea. O maior deles era o Engenho Real da Lagoa, situado onde hoje é o bairro do Jardim Botânico. A região do litoral onde hoje estão os bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon abrigava algumas poucas casas de veraneio. A avenida Atlântica começou então a ser construída.

Assim desenvolveu-se o Rio de Janeiro, com uma estrutura ganglionar de povoados e vilas. Em torno das chácaras, tanto ao norte quanto ao sul da cidade, surgiam núcleos de habitação popular. Ao redor dos ricos, instalavam-se pobres prestadores de serviço e fornecedores de perecíveis. Uma anatomia social peculiar, que mesclou fortes traços do período colonial a modernas inovações urbanísticas.

Quando o futebol começou a ser praticado no Brasil, havia muita desconfiança em relação a ele. Aquele esporte era visto como coisa de ingleses. Só o pessoal metido a besta das Laranjeiras, que se sentia meio europeu, praticava. O povo dizia que aquilo era coisa de grã-fino, não era coisa para a gente não.

Tanto que, nos primórdios do futebol carioca, muitos ingleses radicados no Brasil jogaram por equipes do Rio de Janeiro. Dentre eles se destacaram Edwin Cox e Welfare, no Fluminense, e Harry Robinson, Sidney Pullen e Eustace Pullen, no Paysandu. Eustace e Sidney Pullen depois se transferiram para o Flamengo. Welfare também jogou no Flamengo, mas somente durante uma excursão a Belém do Pará, entre dezembro de 1915 e janeiro de 1916. E no grupo dos dez jovens que trocaram o Fluminense pelo Flamengo também havia um inglês de nascimento, Lawrence Andrews.

Os censos populacionais do começo do século mostram o caldeirão cultural instalado no Rio de Janeiro: de cada cem habitantes da cidade, só 55 haviam nascido nela. Dos demais, 22 eram nascidos em outros estados do Brasil e 23 eram estrangeiros. Entre os 23 oriundos de outros países, quinze eram portugueses, três eram franceses, dois eram alemães, um era inglês e dois tinham as mais diversas nacionalidades, vinham de todos os cantos do mundo.

Dentro deste contexto, ocorreu um fato curioso e pouco conhecido na história do futebol carioca. Na decisão do campeonato de 1912, o primeiro disputado pelo Flamengo, a partida que decidiu o título entre Paysandu e Rio Cricket, ambas as equipes da colônia inglesa, havia 22 jogadores de nacionalidade inglesa dentro de campo. O Paysandu venceu e ficou com o troféu, deixando o Flamengo com o vice-campeonato.

Apesar da ainda pequena popularidade deste esporte, já nos primórdios, era o Flamengo o clube a conseguir aglomerar mais gente para ver um jogo de futebol. A partida entre Flamengo e Botafogo, no dia 30 de maio de 1915, em General Severiano, levou cerca de 15 mil expectadores ao estádio, um recorde para aqueles tempos, numa época em que a população do Rio de Janeiro ainda era de pouco menos de 1,5 milhão de habitantes. O Flamengo vinha de duas vitórias consecutivas por 5 a 0 sobre Fluminense e São Cristóvão, deixando sua torcida empolgada. E venceu mais uma, por 2 a 1. Já se manifestava o florescimento da popularidade do vermelho e preto.

Naqueles tempos do futebol no Rio de Janeiro, um grande problema para as equipes era o transporte. Na primeira década do século XX, a cidade investiu no processo da troca dos bondes puxados a burro pelo bonde elétrico. Foi um avanço substancial, incorporou-se a eletricidade numa velocidade impressionante, antes mesmo de algumas das maiores cidades do mundo à época. O conceito de Paris dos trópicos foi construído à base da luz. A cidade era extremamente bem iluminada para os padrões da época, e isto virou uma razão de orgulho para as elites nacionais, diminuindo os complexos de atraso frente ao mundo desenvolvido.

O mundo começava a ingressar na revolucionária era do desenvolvimento dos transportes urbanos. Em 1900, havia apenas cinco automóveis em toda a cidade do Rio; em 1910, eram 615 veículos. O que para a época, em nível mundial, era um respeitadíssimo padrão. Afinal, nos Estados Unidos, só em 1913, foi forjada a primeira linha de montagem automobilística. Em 1920, já eram cerca de três mil automóveis circulando pelas ruas da cidade. Em 1930, este número saltou para quase 35 mil.

Entretanto, em meio à formação cultural de um país nascente, nem tudo eram flores. Foi traumático o mês de outubro de 1918. Subitamente, surgiram casos de febres altíssimas e morte por todos os lados. Era a gripe espanhola. Rio de Janeiro, Santos, Salvador e Recife, as quatro maiores zonas portuárias do Brasil, viveram a epidemia. Mas no Rio o problema foi, de longe, o mais grave. Morreram cerca de 15 mil pessoas num intervalo de 15 dias. Eram 1.000 mortes por dia. Isso numa população de 1,1 milhão habitantes, aproximadamente. Numa metrópole de 10 milhões de habitantes, seria o equivalente à morte de 136 mil pessoas em duas semanas (9.000 mortos por dia), ou como se morressem 18 mil pessoas por dia numa megalópole de 20 milhões de habitantes.

O que os cariocas não sabiam, em tempos de pouca difusão de notícias, é que na Europa morreram 3 milhões e na Índia 15 milhões em apenas um mês. Traumatizadas, as pessoas não saíam de casa. Até que, tão repentinamente como chegou, a epidemia foi embora. Superado o pior, a população inteira da cidade passou uma semana andando de preto pelas ruas, em luto, pois não houve família a não perder ao menos um ente, mesmo que de parentesco mais distante.

O Rio, na década de 1910, já havia começado a esparramar seus tentáculos urbanos. Ferrovias foram esticadas pelos subúrbios, inflando os adensamentos populacionais no Méier, em Madureira e Cascadura. A extensão do porto do Rio de Janeiro para além do píer da praça Mauá, através do aterro de uma parte da baía de Guanabara, inflou a região do Santo Cristo e da Saúde, deixando a área de São Cristóvão menos atrativa, com perda de valor dos imóveis. Isso projetou a população em direção à Zona Norte, fazendo crescer os bairros Tijuca (ex-Engenho Velho), Vila Isabel e Grajaú, que se tornaram os típicos redutos da classe média carioca, adensados basicamente por funcionários públicos de menor escalão, caixeiros de armarinhos, pequenos comerciantes, militares e alguns imigrantes recém-chegados.

Graças ao bonde elétrico, a organização de campeonatos de futebol se tornou logisticamente viável. No entanto, o serviço de transportes à base de eletricidade ainda era muito caro. Esta foi uma das razões de o futebol ter nascido e se mantido por algum tempo como um esporte elitizado. Era caro ir de um bairro a outro para ver ou disputar jogos.

O grande desafio no início dos campeonatos cariocas era superar as barreiras econômicas e conseguir levar o futebol para pontos mais distantes da cidade. Chegou até o quase recém-inaugurado bairro de Bangu, na Zona Oeste, fundado em 1890. Exatamente esta dimensão geográfica dos campeonatos de futebol foi o pulo do gato para alçar este esporte na preferência da população. Ao contrário do remo, cuja praça esportiva era de acesso restrito, exclusivo aos mais abastados, o futebol ia a todas as partes.

Os clubes que disputaram os primeiros torneios se dividiam entre o norte e o sul da cidade. Entre os times da Zona Sul estavam o Fluminense e o Botafogo, pioneiros do futebol carioca, o próprio Flamengo e seu vizinho de bairro, o Paysandu – da colônia inglesa – e o Carioca, do Jardim Botânico. Os jogos destes times eram mandados nas Laranjeiras, campo do Fluminense, ou em General Severiano, do Botafogo. Foi neste último que o rubro-negro jogou suas primeiras partidas como mandante. Do outro lado da baía, havia o time da colônia inglesa de Niterói, o Rio Cricket. O seu campo? A praia de Icaraí. Estes seis clubes eram os mais elitizados da turma. Na outra banda estavam os times da Zona Norte, concentrados, sobretudo, nos bairros que circundavam Vila Isabel. Eram eles o América, o Andaraí, o Vila Isabel e o mais modesto deles, o Mangueira. Estes mandavam seus jogos no campo da rua Campos Sales, de propriedade do América. Completando o cenário, o São Cristóvão, que tinha estádio próprio, na rua Figueira de Melo.

Quem estava mais distante, fisicamente, para todos, era o Bangu. Time ligado à fábrica têxtil, numa área de mais difícil acesso naqueles dias. A equipe banguense tinha campo próprio, na rua Ferrer. Só que chegar lá era uma verdadeira viagem. Mas foi pela capacidade de superar essas barreiras que o futebol, muito rapidamente, caiu nas graças do povo.

Não tardou muito para que fossem feitos intercâmbios. Os principais times de São Paulo – Paulistano, Associação Atlética das Palmeiras (estes dois clubes que se fundiram nos anos 30 e deram origem ao São Paulo Futebol Clube), Palestra Itália (que depois passou a se chamar Palmeiras) e os extintos Ypiranga e São Bento – marcavam partidas contra as equipes cariocas. Apesar de o futebol ainda ser amador, excursões a Minas Gerais, Paraná, Pará – entre outros estados – ocorreram não muito depois da criação do time de futebol rubro-negro, época em que a viagem do Rio ao norte do país durava uma semana inteira.

Em 10 de maio de 1917 o Flamengo realizou o primeiro jogo internacional de sua história, contra o Barracas, da Argentina (que ainda fez dois amistosos contra a seleção brasileira). Nesta partida, o Flamengo esteve reforçado pelo maior jogador brasileiro da época, Arthur Friedenreich, emprestado pelo paulista Ypiranga. Friedenreich ainda voltou a atuar pelo Flamengo, em fim de carreira, nos anos 30. Ele era mulato, o que dá um significado todo especial na sua utilização no amistoso contra os argentinos, pois o preconceito na sociedade dos anos 10 era muito forte. Longe de ter sido a revolução feita pelo Vasco nos anos 20, que inseriu o negro no futebol carioca, a presença de Friedenreich tinha, frente aos argentinos, um simbolismo de afirmação da mestiçagem do povo brasileiro.

Rivalidade à parte, o brasileiro sempre conservou uma admiração pelos vizinhos boleiros da América do Sul. Nos primórdios do futebol, o Brasil mantinha certa freguesia frente à Argentina e ao Uruguai. Essa admiração não demorou muito a florescer também dentro do rubro-negro da praia do Flamengo. Em 1921, o clube teve sua primeira experiência com um técnico estrangeiro, o uruguaio Ramón Platero, campeão do Sul-Americano de 1917 com o Uruguai e campeão carioca de 1919 com o Fluminense – título que voltaria a conquistar em 1923, com o Vasco.

Mas no Flamengo ele não vingou, caiu após sete jogos apenas. Quatro anos depois, outro técnico uruguaio chegou ao Flamengo, Juan Carlos Bertoni; este conseguiu emplacar, dirigiu o time por quatro anos, de 1925 a 1928 (95 partidas no total). Ainda engatinhando no futebol, os brasileiros, com muita frequência, recorriam a técnicos estrangeiros para ajudar na estruturação tática do time. O Fluminense e o Botafogo importaram húngaros, foram trazidos da Europa Eugenio Medgyessy pelo tricolor e Nicolas Ladanyi pelo alvinegro.

Tudo isso era reflexo do rápido crescimento do futebol. Mas ainda era amador. Os jogadores treinavam pouco; afinal, tinham que se dedicar às suas carreiras profissionais. As partidas eram realizadas nas tardes de domingo, já que de manhã todos iam acompanhar as regatas na baía de Guanabara. O ponto de encontro dos jogadores do Flamengo era numa pensão perto da República Paz e Amor, pouco depois da hora do almoço. Afinal, a ceia de domingo era sagrada e tinha que ser em família. Ali, na calçada, à sombra de algumas amendoeiras, descansava-se e se começava a pensar a partida que teria início em poucas horas.

Os treinos de véspera de jogo tinham cara de bate-bola descontraído. Era onde se contavam as melhores piadas, aquelas que não podiam ser reveladas na frente das damas. Depois da brincadeira, ainda sobrava tempo para, já de banho tomado, combinar-se um piquenique de fim de tarde lá para os lados do Leme e de Copacabana. Grupos de jogadores partiam com suas respectivas esposas, a cavalo, para desfrutar um saboroso lanche à sombra das famosas pitangueiras e cajueiros daquelas bandas, nos últimos momentos históricos de uma Copacabana ainda pouco povoada, antes da construção da avenida Atlântica.

O bairro de Copacabana cresceu depois do controle das grandes epidemias de doenças tropicais, quando então as elites desceram das encostas, onde se mantinham longe da imundice do Centro e perto da água potável. Logo descobriram as belezas do oceano. Em 1923, inaugurou-se o Copacabana Palace, um majestoso palacete, luxuosíssimo hotel. Daí para a frente, nada mais freou a explosão imobiliária do bairro.

Com os hotéis Copacabana Palace e Glória – este inaugurado em 1920 – o Rio de Janeiro viveu uma completa mutação. A cidade estava pronta para dar um salto no recebimento de turistas. O Rio, a partir de então, cada vez mais deu as costas para a baía de Guanabara e virou-se para o mar aberto – era a transmutação da Paris dos trópicos para a Princesinha do Atlântico.

Mas não eram dias de todo tranquilos. A vida política na capital andava cada vez mais agitada. Em 1922, o jornal Correio da Manhã publicou uma carta do candidato à presidência da República, Arthur Bernardes, governador de Minas Gerais, para o ministro da Marinha, Raul Soares, na qual o presidenciável fazia referência à venalidade de oficiais do Exército. A matéria era de autoria de Mário Rodrigues, pai dos meninos Mário Filho e Nelson Rodrigues. Explodiu uma crise sem precedentes dentro das Forças Armadas. Em paralelo a este acontecimento, o presidente Epitácio Pessoa, paraibano, promoveu uma intervenção federal no governo de Pernambuco, colocando dois navios de guerra, destroieres, em frente a Recife, com seus canhões apontados para a cidade.

O marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar do Rio de Janeiro, disputava com o ex-presidente Nilo Peçanha o posto de candidato da oposição na corrida presidencial. Mesmo com toda a polêmica, Arthur Bernardes se elegeu, num pleito do qual dizem que até os mortos participaram, tamanha a fraude. Depois das eleições, apareceu um interlocutor, Oldemar Lacerda, ligado ao marechal, assumindo a falsificação da assinatura de Bernardes na tal carta publicada por Mário Rodrigues. Furioso, Epitácio Pessoa mandou fechar o Clube Militar e prender Hermes da Fonseca. Houve então a insurreição dos tenentes no Forte de Copacabana. As Forças Armadas entraram em choque. Ao fim, dezoito tenentes, abandonados pelos demais revoltosos, marcharam pela praia em direção às forças governistas e acabaram mortos no Calçadão de Copacabana.

Já não se tinha mais a mesma paz para os piqueniques à sombra das pitangueiras. Os tempos de farra para os jogadores de futebol estavam mesmo prestes a sofrer uma grande mudança. Quando os comerciantes lusitanos resolveram se meter naquela história de futebol, tudo passou a ser diferente.

Eles começaram a levar o negócio mais a sério. Assim, os jogadores do Vasco não faziam outra coisa senão treinar. De manhã cedo eram acordados por Ramón Platero, já de charuto na boca. Tomavam um café com leite, bem reforçado, com ovos e presunto, e saíam correndo, ida e volta, da rua Morais e Silva à praça Sete, no fim do Boulevard 28 de Setembro. Por outro lado, jogadores do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo e do América eram rapazes boêmios. Muitos deles, os cobras, os mais finos, os de melhor família, chegavam em casa, no domingo, às cinco da manhã. De repente, surge um time como o Vasco da Gama, pensando só em futebol, treinando dia e noite. Não havia quem aguentasse.

O Vasco teria sido campeão invicto se não fosse o Flamengo. O mais curioso é que a cidade inteira pensou junto “só podia ser o Flamengo”. Mesmo quem não era rubro-negro depositou nele a última esperança. Era questão de honra bater a soberba do colonizador português. Se não fosse o Flamengo, quem poderia defender a honra do futebol da cidade e do país? Meteu-se até o Brasil na história. Hoje, pouca gente pode imaginar o que foi aquele jogo para o Rio. Quem não era Vasco – e àquela época era um clube quase só de portugueses – sentia-se ofendido mortalmente, sem exagero. A vinda do Vasco para a Primeira Divisão exacerbou recalques do Brasil Colônia. Veio gente de várias partes do país ver aquela partida.

A República fazia um esforço monumental para apagar as heranças coloniais lusitanas de seu passado. Aí o português se ofendeu, meteu a mão no bolso e construiu São Januário, até então o maior estádio no Brasil. Daí o Vasco ficou grande. Mas, em 1923, as vitórias do Vasco feriam fundo os torcedores dos outros clubes. O Flamengo então resolveu fazer o que ninguém fizera. Os jogadores iam para o campo da rua Paissandu e treinavam até ficar escuro. Era uma revolução que o Flamengo estava tramando. Na manhã do jogo, o Jornal do Brasil esgotou suas edições nas bancas do largo do Machado à galeria Cruzeiro. Até do Pará vieram portugueses para ver o jogo no campo do Fluminense, que era o Maracanã da época. Basta dizer que o estádio não lotara nem no Campeonato Sul-Americano de 1922. Pois bem, no Vasco x Flamengo de 1923 ficou gente de fora. Manda a verdade que se diga, muito mais vascaínos que rubro-negros.

O jogo começou em campo. Ganhou o Flamengo, 3 a 2. Para o Vasco foi 3 a 3. Houve uma bola entrou não entrou, o juiz deixou a partida continuar. Quando acabou o jogo, foi mesmo 3 a 2. Aí começou o carnaval. Toda a cidade soube, sem rádio sem nada, na mesma hora, que o Flamengo tinha vencido. E como era o Flamengo, esperou-se pelo carnaval rubro-negro. Estava tudo preparado. Organizou-se um cortejo de automóveis enorme, mais de cem carros, com bandeiras do Flamengo cobrindo os capôs, as capotas arriadas, os jogadores sentados em cima, torcedores de pé nos para-lamas. O itinerário era: praia do Flamengo, Glória, largo da Lapa, avenida Mem de Sá, rua Evaristo da Veiga, avenida Rio Branco, praça da República, rua Visconde de Itaúna e praça Onze, passando pela cervejaria Vitória, onde os torcedores vascaínos gostavam de fazer suas comemorações. Durante toda a noite o Flamengo festejou o triunfo. E de madrugada, na hora de desfazer o corso, já de poucos carros, penduraram um tamanco de dois metros e meio, roubado de uma tamancaria na rua do Catete, na porta da sede do Vasco, na Santa Luzia. Como se não bastasse, foram para a Glória e enfeitaram a estátua de Pedro Álvares Cabral com colares, como de baianas, de réstias de cebola.

Aqueles jovens rubro-negros cresceram no conceito popular. A sua autoestima cresceu. Mas no Campeonato Carioca de 1924, nem uma campanha arrasadora no returno foi capaz de dar o título ao Flamengo. Foram sete vitórias, sem empates ou derrotas. Entretanto, uma campanha regular no turno foi suficiente para impedir o título, com derrotas para Bangu e Botafogo (esta última, por implacáveis 5 a 0), e empates com Fluminense e São Cristóvão. O título ficou com o Fluminense. Estimulou a campanha rubro-negra, a disputa, partida a partida, entre Nonô e Junqueira para ver quem seria o artilheiro da equipe naquele ano. Ninguém ousava tocar no assunto publicamente, mas todos sabiam da competição interna entre os dois. Nonô havia sido o goleador nas três temporadas anteriores, seguido por Junqueira. Naquela temporada, ao fim do campeonato, Junqueira tinha dezessete gols, contra dezesseis de Nonô; entretanto, em um amistoso frente ao Paulistano, para fechar o ano, o Flamengo venceu por 4 a 2, com três gols de Nonô e um de Junqueira. Nonô, pelo quarto ano consecutivo, foi o goleador da temporada. Virou o primeiro grande ícone do futebol rubro-negro. Era celebrado pela cidade como maior jogador de futebol já visto nestas bandas.

Naquele ano, a polêmica novamente rondou os gramados do Rio de Janeiro. A desavença foi com o Vasco, que havia estreado na Primeira Divisão e sido campeão no ano anterior. O clube dos portugueses foi renegado por razões racistas. Acabou dividindo-se o futebol do Rio, com a disputa de dois campeonatos. Em um figuravam Fluminense, Botafogo, Flamengo, América e Bangu; deste, o Fluminense saiu-se campeão. O Vasco, renegado porque utilizava jogadores negros, disputou outro torneio, do qual participaram Andaraí, Vila Isabel e Carioca, e deste, sagrou-se campeão. Pela terceira vez em sua história, o título ficou dividido. Em 1907, o campeonato não terminou, e Botafogo e Fluminense ficaram empatados na liderança. Em 1912, uma disputa política gerou o desligamento do Botafogo e a criação de outra liga. No campeonato em que participaram os principais clubes da época (Fluminense, América, Flamengo, Rio Cricket, Paysandu, etc.), o campeão foi o modesto Paysandu. De outro lado, o Botafogo venceu facilmente um torneio junto a clubes de várzea. A polêmica sempre andou de mãos dadas com o espírito do Rio de Janeiro. Numa sociedade que era extremamente segregacionista, ainda sob influência da cultura colonial e do império, havia um espírito partido. De um lado, a alma dos grandes salões, do outro, a das esquinas.

O mundo já colocava seus olhos sobre as belezas do litoral do Rio de Janeiro, mas os cidadãos cariocas ainda não sabiam disso. Em 1925, por exemplo, a visita de Albert Einstein ao Rio de Janeiro passou quase despercebida para o grande público. O pai da Teoria da Relatividade, que ganhou o Prêmio Nobel em 1921 por seus estudos que revolucionaram a física construída por Newton, foi recebido efusivamente pela comunidade judaica do Rio. Os grandes salões se abriram para ele. A maior mente do século XX, entretanto, passeou despercebida pela praia de Copacabana. Primeiro, porque em tempos nos quais a comunicação que cruzava os oceanos só chegava por livros e manuscritos, os rostos não eram popularizados. Segundo, porque uma sociedade que 21 anos antes gerara uma total quebradeira de uma semana contra a aceitação de ter que tomar vacina não estava preparada para celebrar a ciência.

A turma do Flamengo, dentro dos extremos, também marcou seu território na cidade. O alto clero rubro-negro se reunia na luxuosa Confeitaria Colombo, na rua Gonçalves Dias. A umas poucas quadras dali estava o ponto de encontro do baixo clero, na esquina da rua São José com a Primeiro de Março, o Café Rio Branco. Foi nestes dois pontos que a história rubro-negra se construiu.

Não faltavam assunto e decisões a serem tomadas. No final da década de 1920, parecia que o Flamengo ia ficar para trás. O Fluminense era o clube da aristocracia, do estádio das Laranjeiras, o Vasco tinha construído São Januário, o Botafogo levantava a sede colonial, o América desfazia um estadiozinho para erguer outro estadiozinho, enquanto o Flamengo continuava com a velha garagem e o campo alugado à família Guinle na rua Paissandu onde, em tardes de sol, deitavam-se os jogadores, espreguiçando-se, esticando-se, às sombras das palmeiras imperiais.

O crescimento do Vasco, então, dava para assustar. Era o clube de mais dinheiro. Foi quando o Jornal do Brasil criou a Taça Salutaris, em 1927. Enorme, quase do tamanho de um homem, toda de prata lavrada, seria o prêmio no concurso de clube mais popular. O Vasco se movimentou logo e tocou a comprar jornais para recortar cupons. Parecia que os portugueses iam ganhar longe e dar a vitória ao clube, que não saía da frente nas apurações. Havia uma porção de sacos cheios de votos na garagem do Flamengo, mas quantos teria o Vasco?

Mário Filho conta em sua obra que, pelos corredores da República Paz e Amor, o Renato Meira Lima andava bradando que todo português aprendeu, desde menino pequeno, a guardar seu pezinho de meia. Não havia dono de quitanda, de venda, de açougue, de peixaria, de padaria, que não fosse torcedor do Vasco. Chegava o fim do mês e o caixeiro passava de casa em casa perguntando se não tinha jornal velho para vender. Tinha sim. No monte de jornais velhos havia muitos Jornais do Brasil. E se alguém tinha dúvida da vantagem do Vasco, deixava de ter sempre que abria o Jornal do Brasil. O Vasco estava em ampla vantagem na apuração, tinha 60 mil votos à frente. Mas as providências estavam sendo tomadas.

Na manhã da apuração final, cada pessoa que chegava ao Café Rio Branco recebia um escudo grande do Vasco para colocar na lapela quando chegasse o momento, e um bigodão postiço. Duas horas antes de começar a apuração, as portas do Jornal do Brasil foram ocupadas. Havia, em cada porta, um flamenguista com escudo do Vasco ao peito para perguntar a cada vascaíno que chegava, carregando um saco de votos, com voz bem aportuguesada, se era para o Vasco. Se sim, o saco passava da mão de um flamenguista para a de outro flamenguista, para outro flamenguista, até chegar ao elevador, tudo rapidinho. Iam direto para as privadas. Antes do início da apuração, as privadas do Jornal do Brasil, andar por andar, estavam todas entupidas. Aí, Renato Meira Lima lembrou-se do poço do elevador. E para lá se foram o Silvio Pessoa, o Plácido Peito de Pombo e o Nélson Tinoco. Ao parar no andar térreo, o elevador parecia experimentar um colchão de molas. Na contagem final dos votos, quando o Flamengo ultrapassou o Vasco, parecia um gol do Nonô na rua Paissandu.

Foi assim que a Taça Salutaris foi levada para o Flamengo. Era mais um título: o clube mais querido do Brasil. De nada valera o dinheiro dos vascaínos. A história se espalhou, mesmo porque os vascaínos descobriram tudo, não se conformando. E o Flamengo subiu no conceito do brasileiro, que tanto admira o mais esperto, o mais sabido.

O Flamengo tinha imaginação, audácia, peito. Como naquela história maluca de Angelú, Engole-Garfo e Boca Larga fazerem uma travessia Rio–Santos numa embarcação iole de dois com patrão. A Capitania dos Portos, tomando conhecimento, proibiu. Não se permitiriam loucuras no mar. Onde já se viu ir do Rio de Janeiro a Santos a remo? Só mesmo coisa da cabeça do Flamengo. Angelú, Engole-Garfo e Boca Larga sairiam da garagem da praia do Flamengo, mas tiveram que rumar escondidos para a praia do Leblon. Diante do número 22 da praia do Flamengo, uma multidão, que não sabia de nada, vaiava os policiais que ocupavam a rampa. E os policiais diziam que não tinham nada com aquilo, mas que ordens eram ordens. Enquanto isso, no Leblon, com queima de fogos, Angelú, Engole-Garfo e Boca Larga pareciam cristãos dos primeiros tempos, com os olhos acesos de fé. Empunhavam os remos, abrindo-os e fechando-os sobre as ondas. A iole foi se tornando pequena, até que desapareceu, engolida pela noite. Durante quase dois dias não se soube deles. Chegou-se a imaginar que o Flamengo teria seus primeiros mártires. Nada disso, eram heróis. A Marinha mandou um cruzador, o Baía, ir buscá-los. Foi uma recepção como não se costumava ver. Em carros de capota arriada, abrindo o cortejo, os três remadores do Flamengo, em pé nos para-lamas, erguiam os remos. O cortejo interminável varreu a avenida Rio Branco, da praça Mauá à Cinelândia. Só o Flamengo era capaz de transformar um raide de remadores numa festa da cidade.

Ruy Castro, no livro “Anjo Pornográfico”, conta que este episódio quase mudou a história das telecomunicações no Brasil. Tudo porque quatro jornalistas – Mário Filho, Nélson Rodrigues, um fotógrafo e Roberto Marinho, herdeiro do recém-criado jornal O Globo – no dia seguinte à partida dos remadores, pegaram uma lancha da família Marinho e partiram para tentar localizar os remadores e cobrir a história. Não os acharam. Quando estavam na altura da Ilha Grande, o motor do barco se incendiou. Os quatro foram resgatados por um barco de pescadores próximo à ilha, minutos antes de a embarcação explodir. Por pouco não morreram os irmãos Rodrigues junto a Roberto, aquele que alguns anos depois viria a ser o maior empreendedor das telecomunicações no Brasil, proprietário de um império, com televisão, rádios, jornais e revistas: as Organizações Globo.

O Fluminense tinha um hino, música do maestro Cardoso de Menezes Filho, que não era cantado. Quer dizer, bem que o quiseram cantar. Mas começava assim: o Fluminense é um crisol. E a molecada emendou: é um urinol. E acabou-se o hino, só tocado, de longe em longe, por orquestras de violino e tudo. Quando apareceu o hino do Flamengo ou quando o Flamengo achou que era o momento de hino, quem era Flamengo cantou-o como um “God Save the Queen”. Letra de Paulo Magalhães, que noutros tempos entrava em campo para jogar de goleiro no time de aspirantes do Flamengo: “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar.” O que era mais profundo do que parecia. O Flamengo entrava em campo e poderia estar por baixo, mas sabia-se que ia lutar, que ia molhar a camisa, que ia correr até o último instante. Só se reconhecia o Flamengo assim, como o clube da força de vontade. Ou da fibra. Quem vestia a camisa do Flamengo, tinha que encharcá-la de suor.

A letra do hino oficial do Flamengo, composto em 1920, dizia: “Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar/ Saudemos todos/ Com muito ardor, o pavilhão do nosso amor/ Preto e encarnado, Idolatrado/ De mil campeões, o vencedor/ Flamengo, Flamengo/ Tua gloria é lutar/ Flamengo, Flamengo/ Campeão de terra e mar/ Lutemos sempre com valor infindo/ Ardentemente com denodo e fé/ Que o futuro ainda será/ Mais lindo que o teu presente, que tão lindo é/ Flamengo, Flamengo/ Tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo/ Campeão de terra e mar”.

O hino mais popular foi composto por Lamartine Babo mais tarde, em 1945: “Uma vez Flamengo/ Sempre Flamengo/ Flamengo sempre eu hei de ser/ É o meu maior prazer, vê-lo brilhar/ Seja na terra, seja no mar/ Vencer, vencer, vencer/ Uma vez Flamengo/ Flamengo até morrer/ Na regata ele me mata, me maltrata, me arrebata de emoção, no coração/ Consagrado no gramado/ Sempre amado/ Mais cotado nos Fla-Flus/ É o ‘ai Jesus’/ Eu teria um desgosto profundo/ Se faltasse o Flamengo no mundo/ Ele vibra, ele é fibra, muita libra já pesou/ Flamengo até morrer, eu sou”.

Mas as coisas realmente não estavam indo bem. A temporada de 1929, então, foi para ser esquecida. Pela primeira vez em sua história o Flamengo perdeu mais do que venceu durante um ano, e pela primeira vez perdeu mais de dez partidas em um ano (dezoito). Pela primeira vez também teve saldo de gols negativo num ano. Teve a pior média de gols por jogo até então (1,49). Acumulou resultados ultrajantes: foi goleado pelo modesto Andaraí por 4 a 1, e perdeu por 3 a 0 para o também modesto Sírio e Libanês (ambas as partidas valendo pelo Campeonato Carioca). Sofreu goleadas para Botafogo e Vasco, e, em amistoso, para o Palestra Itália, de São Paulo. Terminou o Campeonato na décima e penúltima colocação (na época ainda não existia um campeonato de segunda divisão, não havendo descenso). Em 1930, a onda negativa continuou. Mais uma vez o Flamengo perdeu mais do que venceu. Os números mostravam a tragédia: em 1929, havia vencido apenas 31% dos jogos; em 1930, o Flamengo só venceu 29% dos jogos no ano inteiro. De quebra, sofreu a pior derrota para um time pequeno em toda sua história, perdendo por 6 a 1 para o Sírio e Libanês, pelo Campeonato Carioca.

No ano de inauguração da estátua do Cristo Redentor, no alto do Corcovado (em 1931), o Flamengo conseguiu dar os primeiros sinais de recuperação. Venceu um pouco mais do que nas campanhas dos anos anteriores, entretanto seguiu acumulando vexames. Perdeu por 7 a 0 para o Vasco, por 6 a 2 para o Bonsucesso, por 5 a 1 para o Botafogo, por 4 a 1 para o América e por 4 a 1 para o São Cristóvão. Pelo terceiro ano consecutivo, terminou a temporada com um saldo de gols negativo. Entre onze participantes do Campeonato Carioca, foi décimo lugar em 1929, oitavo lugar em 1930 e sexto lugar em 1931. A República Paz a Amor sucumbia em tristeza.

A tristeza ficou ainda maior quando, também em 1931, morreu aquele que foi o primeiro grande goleador da história do Flamengo: Nonô. Contratado em 1921 ao Palmeiras, da Guanabara, por quem se destacou no Campeonato Carioca de 1920, o grandalhão Nonô foi o artilheiro do Flamengo por cinco temporadas consecutivas, de 1921 a 1925. Jogou até 1930. Fez, no total, 123 gols com a camisa do Flamengo, sendo o primeiro a ultrapassar a marca centenária de gols pelo clube. Morreu em 1931, prematuramente, aos 32 anos, por tuberculose. E sobre suas cinzas o clube preparou seu renascimento, sob o eterno espírito do levante sua mão sedenta e recomece a andar.

A temporada de 1932 foi de redenção para o Flamengo. Ainda que o clube não tenha conseguido voltar a conquistar o Campeonato Carioca (o jejum iria de 1928 até 1939, onze anos sem título), pôs um freio à sequência de vexames. Porém, aquele ano também começou na balada horripilante, com goleadas por 7 a 0 para o Botafogo e por 5 a 0 para o Bonsucesso. Porém, a partir da oitava rodada do primeiro turno, o Flamengo engatou uma sequência de quinze jogos de invencibilidade, dos quais venceu dez e empatou cinco, recompondo-se de um longo período vergonhoso em sua história.

O Flamengo sempre parecia mais vivo, mais agitado, como em ebulição permanente. No início dos anos 30, o Flamengo estava em guerra, e estando em guerra, aceitou a disciplina prussiana de Bastos Padilha, seu novo presidente. O mais curioso é que Padilha pertencera à República Paz e Amor, vivera aquela vida de estudantes. Padilha queria transformar o Flamengo no maior clube do mundo. Mandou construir o estádio da Gávea (há anos o Flamengo fora despejado de seu primeiro estádio, na rua Paissandu). Aquilo foi taxado como uma loucura. Construir um estádio de futebol naquele pântano de fim de mundo. Em 1930, se questionava como as pessoas chegariam à região da Gávea. Não dava.

Padilha foi ainda buscar um técnico europeu e encheu o Flamengo de jogadores argentinos. Também contratou os maiores jogadores que haviam passado pelo Rio de Janeiro. O clube parecia pronto para consolidar-se como o mais querido do Brasil.

Mas nem o Flamengo nem o futebol carioca ainda estavam preparados para ingressar, todos juntos, numa era profissional. O futebol carioca voltou a se dividir com a implementação do profissionalismo. Fluminense, Vasco, América, Bangu e Bonsucesso fundam a Liga Carioca de Futebol (LCF) e organizam um campeonato independente. Do outro lado, a Associação Amadora (AMEA) reuniu em seu campeonato o Botafogo, campeão de 1932, o Andaraí, o modesto Brasil, e o Olaria (este último que estreara na Primeira Divisão em 1932) e mais um punhado de clubes que jamais haviam disputado a Primeira Divisão: Portuguesa da Ilha, Engenho de Dentro, Confiança, Mavílis, Cocotá e River.

O Flamengo começou a disputar o torneio da AMEA, mas, após a terceira rodada, abandonou o torneio, juntamente com o São Cristóvão e o Carioca. Porém, dos três, o Flamengo foi o único a filiar-se à liga e disputar o campeonato daquele ano. O Clube de Regatas do Flamengo disputou sua última partida de futebol como amador contra o River. Venceu por 16 a 2. Curiosamente, o mesmo placar da primeira partida de sua história, em 1912 (naquela oportunidade o adversário batido foi o Mangueira). Curiosamente, a primeira e a última partidas da era amadora do Flamengo terminaram 16 a 2.

O Flamengo, definitivamente, estava disposto a ingressar numa nova era. Em 1933, o clube joga pela primeira vez fora do Brasil. E estreia vencendo o Peñarol por 3 a 2 no estádio Centenário, em Montevidéu, palco da final da Copa do Mundo de 1930. Curiosamente, o Peñarol era o único adversário do exterior que o Flamengo havia conseguido vencer em sua história, por 2 a 1, em 1928, em partida realizada no campo do Fluminense, nas Laranjeiras. Até 1932, o Flamengo havia enfrentado adversários estrangeiros só cinco vezes (três jogos nas Laranjeiras, um em São Januário e um na rua Paissandu): uma vitória (sobre o Peñarol), um empate (com o Barracas, da Argentina) e três derrotas (duas vezes para o Universal e uma para o Montevidéu Wanderers, ambos do Uruguai). Em 1933, numa excursão a Uruguai e Argentina, o Flamengo venceu ao Peñarol por 3 a 2, depois empatou com o mesmo em 1 a 1. Em seguida, foi massacrado pelo Nacional, de Montevidéu, por 7 a 0, e perdeu para a seleção da Argentina, em Buenos Aires, por 2 a 1.

Mas qualquer voo profissional estava completamente inviabilizado enquanto não se conseguisse contornar as disputas domésticas. Em 1934, o campeonato da liga ganhou a adesão do São Cristóvão, passando a ter sete equipes. O da AMEA seguiu com os mesmos times de 1933, e pela segunda vez seguida foi facilmente vencido pelo Botafogo. A disputa política estava longe de caminhar para uma solução, muito pelo contrário, parecia caminhar para trás. Em 1935, Vasco, Bangu e São Cristóvão se desfiliam da liga e voltaram a disputar o torneio da AMEA, que também contou com a adesão do Madureira, em sua primeira participação na Primeira Divisão.

A LCF ficou, assim, com Flamengo, Fluminense, América e Bonsucesso, e mais os novos adeptos: Portuguesa da Ilha e Modesto. No campeonato de 1936, o Modesto foi substituído pelo Jequiá. O torneio da liga profissional ficou com só seis equipes. O da liga amadora (AMEA) tinha sete. Só em 1937 as duas ligas se unem e voltam a reunificar o Campeonato Carioca, sob a égide de um regime profissional e com duas divisões.

Apesar de o profissionalismo haver sido implantado em 1933, pode-se dizer que a era profissional, pra valer, só começou em 1936. E foi nesta largada que o Flamengo se decidiu a, definitivamente, ter uma equipe que faria a diferença. O clube contratou um time forte: Domingos da Guia, Fausto dos Santos e Leônidas da Silva eram os pilares. Mesmo que em 1936 ainda persistisse a divisão do futebol carioca, foi naquele momento que se plantaram as sementes de um Flamengo grande.

O Flamengo investiu para formar um grande time. No começo do ano contrata Fausto, o Maravilha Negra, jogador revelado pelo Bangu no final dos anos 20, que depois jogou no Vasco, foi para o Barcelona, da Espanha, em 1933, e voltou ao Vasco para ser campeão carioca de 1934. Antes de transferir-se ao Flamengo, ele estava jogando no Nacional, do Uruguai. Em agosto, juntam-se a ele Domingos da Guia, o Divino Mestre, e Leônidas da Silva, o Diamante Negro. Forma-se assim o Trio Maravilha, que deslumbrara o Rio de Janeiro, em 1934, com a camisa do Vasco da Gama.

Domingos foi revelado pelo Bangu, de onde seguiu para o Nacional – onde foi campeão uruguaio de 1933 –, depois foi para o Vasco – campeão carioca de 1934 –, e, em seguida passou pelo Boca Juniors, da Argentina, em 1935 e 1936. Do futebol argentino, fez a ponte que o transferiu para o Flamengo.

Leônidas, revelado pelo Bonsucesso em 1931, foi adversário de Domingos da Guia no campeonato uruguaio de 1933, no qual vestiu a camisa do Peñarol. Em 1934, juntos, venceram o carioca com o Vasco. No ano seguinte, transferiu-se para o Botafogo, por onde venceu o campeonato carioca da AMEA em 1935. Em 1936, voltou à LCF, agora com a camisa do Flamengo. O trio jogou junto pela primeira vez no Flamengo em 16 de agosto de 1936. Foi mais um acontecimento marcante no Rio de Janeiro.




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