Jogos Inesquecíveis: 29/10/1944 - Flamengo 1 x 0 Vasco
"As duas rodadas que antecederam à partida decisiva lembraram a campanha de 1943. No ano anterior, o Flamengo aplicou três goleadas nas três rodadas finais: 5 a 1 no Bonsucesso, 6 a 2 no Vasco e 5 a 0 no Bangu. Em 1944, o Flamengo aplicou 7 a 1 no Bangu e 6 a 1 no Fluminense e assim foi enfrentar o Vasco na última rodada.
Curiosamente, para o Fla-Flu, os dirigentes trouxeram Valido de volta da aposentadoria (ele já abandonara os gramados havia mais de um ano). Ele jogou apenas os dois últimos jogos do campeonato. E foi dele, do argentino Valido, o polêmico gol que sacramentou a vitória por 1 a 0 sobre o Vasco. Polêmico porque ele supostamente fez falta no beque vascaíno na disputa, no ar, em que cabeceou para as redes. Estava assim garantido o tricampeonato rubro-negro. O time do Flamengo nesse campeonato era formado por: Jurandir, Nilton Canegal e Quirino; Biguá, Modesto Bria e Jaime de Almeida; Jacy (Valido), Zizinho, Tião, Pirilo e Vevé. Foi a decisão de 1944 que consagrou de vez o duelo Flamengo e Vasco.
O jogo foi na Gávea e o Flamengo se preparou. Os portões foram abertos mais cedo e os torcedores rubro-negros ocuparam as posições mais estratégicas na arquibancada. Havia gente de mapa em punho fazendo a distribuição dos que chegavam. Quando Valido cabeceou para o fundo das redes, no gol que seria o do título e do tricampeonato, todo o Vasco começou a protestar que o argentino teria subido nas costas do zagueiro Argemiro antes de meter a testa na bola. Até filme, o Vasco exibiu, no Capitólio, em sessão especial, para provar que estava com a razão. Quem era Vasco via com precisão, quem não era ficava na dúvida. Ary Barroso foi quem pôs um ponto final na discussão: o ideal de uma vitória sobre o Vasco para decidir campeonato é Flamengo 1 a 0 e gol feito com a mão, todo mundo vendo, inclusive o juiz, porque se o juiz não visse, não tinha graça nenhuma.
Quando acabou o jogo, o campo da Gávea foi tomado. Não havia ninguém no vestiário do Flamengo que não estivesse chorando e rindo ao mesmo tempo. Todos cantavam a música tradicional das arquibancadas, herdada de cânticos ingleses, e que, à época, era cantada por todas as torcidas: “Glória, Glória, Aleluia/ Glória, Glória, Aleluia/ Nós somos campeões.” Lá estavam Galo, Joaquim Guimarães e flamenguistas de outros tempos. Também o escritor paraibano José Lins do Rêgo tinha vontade de cantar. Não cantava, gritava Flamengo e ia abraçar, um a um, todos os jogadores. Se Ary Barroso estivesse lá cantaria “Flamengo que me faz chorar”. E Jaime de Carvalho, da Charanga Rubro-Negra, correndo de um lado a outro para avisar que a torcida iria a pé da Gávea até a sede do Flamengo. Nada de bonde. Os bondes estavam bons para a torcida do Vasco, que ia embora de cabeça baixa. O torcedor do Flamengo tinha que levantar a cabeça e empinar o queixo. Tinha era de se espalhar, sambar, pular, puxar cordão, alegrando todas as ruas, fazendo escancarar todas as janelas, com a gente que vinha para ver toda aquela festa. O bloco tinha de atravessar o Jardim Botânico, a rua São Clemente inteira, a praia de Botafogo, a avenida da Ligação e a praia do Flamengo. Ninguém, porém, achava longe. Parecia que a sede do Flamengo era logo ali. A festa do tricampeonato foi inesquecível". (A NAÇÃO, pgs. 61-62-63)
Ficha Técnica
29/10/1944 - Flamengo 1 x 0 Vasco da Gama
Local: Estádio da Gávea, Rio de Janeiro
Gol: Valido (41'2T)
Fla: Jurandyr, Newton Canegal e Quirino; Biguá, Modesto Bria e Jayme de Almeida; Agustin Valido, Zizinho, Sylvio Pirillo, Tião e Vevé.
Téc: Flávio Costa
Vasco: Barchetta, Rubens e Rafagnelli; Alfredo, Berascochea e Argemiro; Djalma, Lelé, Isaías, Ademir Menezes e Chico.
Téc: Ondino Viera
A História do Jogo
Mergulhado em estado febril, o nome de Valido era dúvida para o jogo decisivo contra o Vasco da Gama. Mas a total obstinação do técnico Flávio Costa foi o suficiente para Valido não abrir mão de jogar a derradeira cartada final.
O duelo contra o Vasco da Gama foi um páreo bastante equilibrado! E Valido, praticamente esquecido na extrema-direita, não parecia oferecer muito perigo para a firme retaguarda cruzmaltina.
No crepúsculo do jogo, o arisco ponteiro-esquerdo Vevé levantou uma bola na medida para a grande área. Combalido, Valido ainda encontrou forças para desferir uma cabeçada mortal para o fundo das redes do Vasco.
O lance gerou muita indignação dos jogadores do Vasco, que rapidamente foram protestar junto ao árbitro Guilherme Gomes. Para os cruzmaltinos, Valido teria deslocado intencionalmente o zagueiro Rafagnelli antes de fazer o gol.
A temperatura também esquentou nas arquibancadas e o jogo ficou paralisado por alguns minutos. Enquanto isso, os repórteres trabalhavam muito para tentar registrar o “bate-boca” entre jogadores e arbitragem! O certo é que o árbitro manteve sua decisão em validar o gol, um tento que valeu o tricampeonato carioca ao Flamengo!
Assim foi narrado no dia seguinte nas páginas do Jornal O Globo: "Teve um desfecho de gala o campeonato oficial de football da cidade. O match de ontem interessou, inegavelmente, à maioria da população carioca que há uma semana, se preparava para acompanhar, presente no campo da Gávea - que logrou renda "record" - ou atenta às reportagens radiofônicas, o grande clássico Flamengo x Vasco. E venceram os rubro-negros, "o clube mais querido do Brasil", dando margem a que se registrassem em todos os recantos da cidade, cenas de verdadeiro delírio de alegria, de envolta com lágrimas, também essas de satisfação. Cabe ainda assinalar o comportamento disciplinar dos vinte e dois players de ambos os quadros que nada deixou a desejar, a despeito do nervosismo com que todos atuaram". Com este texto, o jornal ilustrou a foto que "rasgava" sua capa do dia 30 de outubro de 1944. A reação que alçou o Flamengo do terceiro ao primeiro posto, após estar a cinco pontos do então líder Vasco, também foi destacada. "O Globo" deu ênfase especial ao lance que mudou o destino do "prélio": no fim do primeiro tempo, Valido, que no fim da etapa complementar se converteria em herói, contundiu o médio Alfredo. O problema provocou a improvisação de Djalma no meio-campo, e Alfredo limitou-se a fazer número pela ponta direita. Ainda de acordo com a crônica, o Flamengo passou a dominar o jogo e acabou premiado aos 41 minutos do segundo tempo, quando Valido "venceu Barchetta (Barqueta) de forma espetacular, justificando cem por cento os esforços do que conseguiram com que reaparecesse na equipe rubro-negra".
O jornal "O Globo" exaltou também o comportamento do vascaíno, ainda que alguns tenham se deixado "tomar por intenso nervosismo", em campo. Sustentam que o cruzmaltino mostrou condições de conquistar o título. O "intenso nervosismo" teve seu ápice justo no gol rubro-negro, no qual o zagueiro Argemiro garante ter servido de apoio para Valido cabecear e inflar a rede do Vasco. Apesar das queixas, "O Globo" isentou o árbitro de culpa, opinião compartilhada pelo jornal "A Manhã", outro de grande circulação na época. Confira na íntegra o relato de "O Globo": "Uma arbitragem que não podia fazer milagres" (...) "Voltando de um período de férias, Guilherme Gomes dirigiu a partida. Não se pode afirmar que tenha sido um bom juiz, mas é certo que teve uma arbitragem absolutamente imparcial. Apitou muito e chegou a irritar parte do público. É preciso convir que a sua missão revestia-se de enorme responsabilidade e que poucos seriam os juízes capazes de levar o match até o fim. Apitou muito, sem dúvida, mas salvou o espetáculo e o próprio football carioca. Afinal era demais querer o milagre de uma atuação cem por cento perfeita e todos os bons desportistas devem rejubilar-se pelo que conseguiu Guilherme Gomes no prélio de ontem".
O lance teria sido limpo segundo a narrativa no dia seguinte do Jornal dos Sports: "foi um lance verdadeiramente espetacular e imprevisto (...) Vevé bateu uma falta de Rubens, quase sobre a linha da meta, próximo ao corner. A pelota cruzou pelo alto toda a área cruzmaltina, escalou por Berascochea, e foi ter até onde se encontravam Valido e Argemiro, depois de uma tentativa mal sucedida de Rafanelli [que era argentino] no sentido de aliviar a área. O ponta rubronegro, mais alto do que os demais adversários, levou vantagem no lance, e com uma cabeçada precisa, colocou o couro nas redes de Barchetta. (...) Pela fisionomia de todos – desolados uns, radiantes outros – chega-se à conclusão de que nada houve de ilegal na conquista do ponto – marcado sem qualquer vislumbre de protesto – e que valeu por um tricampeonato".
Aquela tarde histórica assim foi descrita pelas palavras do próprio craque argentino Agustin Valido: "Estou imaginando que sou um rapaz de sorte. Disputei a pior partida de toda a minha vida e, parece mentira, foi a que me reservou a maior emoção".
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