Mais um texto brilhante do Adriano de Melo, que publica os Alfarrábios do Melo, no site Mundo Rubro-Negro, este postado em 26 de abril, sob o título "Não fale espanhol: a tentativa de tapetão do Atlético-MG e um pouco mais de 1981".
“Não tente falar espanhol. Irão rir de você”. A recomendação, bastante clara, de uma raposa felpuda dos bastidores do futebol internacional, é bem recebida pelo presidente, que irá segui-la à risca. Com efeito, a reunião da Confederação Sul-Americana (CSF), a ser realizada em sua sede, em Lima-PER, se aproxima. O Flamengo manifesta plena confiança na decisão a ser tomada. Mas está atento a qualquer detalhe, mesmo os que pareçam, à primeira vista, insignificantes.
Em pauta, o julgamento do requerimento do Atlético-MG, que pleiteia a anulação da partida-desempate do Grupo 3, realizada no Estádio Serra Dourada, em Goiânia/GO, interrompida após 37 minutos e encerrada após uma breve tentativa de reinício, sepultada pela insuficiência de jogadores da equipe mineira, com cinco jogadores expulsos (Reinaldo, Éder, Palhinha, Chicão e, enfim, João Leite). O Atlético alega erro de direito decorrente do árbitro José Roberto Wright ter expulsado todo o banco de reservas (com base na impressão de um repórter de campo, que transmitia a partida) e depois permitido aos mineiros realizar duas substituições. Também pontua que não havia segurança suficiente no estádio, evidenciada pela invasão a campo de seus próprios dirigentes, e, por fim, assinala que as regras do jogo foram violadas quando se permitiu a pintura do gramado com figuras geométricas.
Nem mesmo os mineiros acreditam na possibilidade de êxito da iniciativa. Primeiro, porque a Confederação Sul-Americana (CSF) jamais, até então, reverteu qualquer resultado de campo, no âmbito da Taça Libertadores. Segundo, porque a estrutura de argumentação é frágil e não resiste à apresentação de evidências primárias (a suposta “expulsão generalizada” do banco de reservas é categoricamente descartada na Súmula apresentada por Wright, a invasão de campo dos dirigentes do clube demonstra interesse em “melar” a partida, e os motivos geométricos do gramado foram expressamente autorizados com antecedência, sendo inclusive utilizados em outros jogos, inclusive da Seleção Brasileira). Com a derrota iminente, resta o proselitismo político, com senadores, deputados e mesmo o governador do estado proferindo discursos inflamados defendendo a “honra do povo mineiro”. Afinal, no ano seguinte haverá eleição.
O Flamengo, a exemplo do adversário, manda sua força-tarefa a Lima. O presidente se encarrega de trabalhar para assegurar a manutenção do resultado de campo (o rubro-negro detinha a vantagem do empate, após 120 minutos). Enquanto isso, outros dirigentes, dentre os quais o presidente de honra, já costuram um acordo para a definição dos grupos das Semifinais da Libertadores, que será consumada na mesma reunião.
O Flamengo já definiu. Quer enfrentar os uruguaios.
Além do rubro-negro, estão nas Semifinais o Cobreloa-CHI (que “passou o carro” em sua chave, com a La U e duas equipes peruanas), o Jorge Wilstermann-BOL (que, com a ajuda do brasileiro Jairzinho, derrotou o The Strongest e dois equatorianos para se classificar), o Deportivo Cali-COL (grande zebra da competição, após eliminar o favorito River Plate em pleno Monumental de Nuñez) e o Peñarol-URU (que confirmou o favoritismo e, na chave mais fraca – dois venezuelanos e o modesto Bella Vista – fez a melhor campanha da Primeira Fase), que irão se juntar ao Nacional-URU, atual campeão e detentor de vaga cativa nesta Fase.
A CSF já sinalizou como serão divididas as chaves. Pelo regulamento, equipes do mesmo país deverão ser agrupados, para evitar uma eventual final doméstica. Assim, Peñarol e Nacional ficarão juntos. A outra chave obrigatoriamente terá a presença do Deportivo Cali, pois uruguaios e colombianos estão em pleno confronto direto pelas Eliminatórias para a Copa, e jogos entre clubes desses países poderiam ser esvaziados. Assim, define-se que um dos grupos terá o Deportivo Cali. O outro, os uruguaios.
Os dirigentes do Flamengo reúnem-se com Nacional e Peñarol, manifestando a intenção de formar entre si um dos grupos. Os interesses são comuns. Viagens mais curtas e menos desgastantes. Jogos em estádios amplos, com bons gramados, eliminando o risco de partidas em alçapões e, principalmente, da temida altitude de cidades como Calama e Cochabamba. Ademais, as partidas entre as três equipes de maior expressão entre os semifinalistas teriam maior apelo, garantindo ótimas arrecadações.
É um tema sensível ao Flamengo. O rubro-negro, embora consideravelmente mais organizado, ainda não desfruta de plena autonomia estrutural. Recentemente anuncia a necessidade de cortar 10% de seu quadro administrativo, para cortar gastos. O elenco, agora Campeão Brasileiro, valorizou-se a ponto de se tornar o mais caro do país. Para complicar, o Campeonato Estadual irá se arrastar por três longos turnos, repletos de jogos deficitários. Mesmo a Libertadores tem trazido públicos decepcionantes. Com efeito, a única partida no Maracanã, na Primeira Fase, que apresentou uma arrecadação positiva (ou seja, acima de 60 mil pagantes) foi o confronto com o Atlético-MG (62 mil – os jogos contra os paraguaios de Cerro Porteño e Olimpia reuniram, respectivamente, 25 mil e 38 mil espectadores). Nesse contexto, enfrentar equipes relativamente desconhecidas, como Deportivo Cali, Cobreloa e Wilsterman traz, novamente, a perspectiva de arrecadações relativamente baixas.
No entanto, os jogadores e a comissão técnica não pensam assim.
A perspectiva de enfrentar os uruguaios logo de cara não anima o elenco. Ainda está vivo na memória o sofrimento vivido pelo Internacional de Falcão na final da edição anterior, em que a equipe gaúcha foi vítima da catimba e da violência do Nacional. Embora os jogadores estejam cientes das características da competição, entendem ser desnecessário atrair, de forma artificial, dificuldades que minem o aspecto esportivo. Os jogadores estão com fome de vencer a competição, especialmente após transporem a duríssima Primeira Fase (o Grupo da Morte). Não querem perder eventuais perspectivas de vantagens.
Após uma ou outra entrevista mais contundente, os líderes do elenco e da comissão técnica são chamados para uma “conversa amistosa” com a Diretoria, com o fito de “harmonizar” o discurso. Após o encontro, com certas tintas de esporro, o elenco “subitamente” se torna favorável a enfrentar os uruguaios.
Lima: após alguns adiamentos (o último dos quais decorrente de um prosaico atraso no voo que conduzia dois membros do Comitê Executivo), enfim é realizada a reunião que definirá os rumos da Taça Libertadores de 1981. A primeira pauta, referente ao pedido de anulação do jogo de Goiânia, transcorre dentro do esperado. Flamengo e Atlético-MG desenvolvem suas respectivas alegações (o dirigente mineiro expressa-se em um “portunhol” que arranca sorrisos dos presentes), após as quais o grupo de cinco julgadores se tranca no Gabinete, lá permanecendo por cerca de quarenta minutos (para assistir ao VT da partida inacabada). A decisão é anunciada, sem surpresas. Por 5 votos a 0, o resultado de campo é mantido, e o Flamengo é confirmado nas Semifinais.
Mas para atingir o segundo objetivo (manter-se no grupo dos uruguaios), as dificuldades se mostram mais árduas. A primeira voz de objeção é levantada pelo Cobreloa, que alega “não ter certeza” de qual quadro seria mais favorável à sua equipe, e com isso faz questão da realização de um sorteio para a definição dos grupos. O Deportivo Cali também defende enfrentar o Flamengo, “pegando carona” na popularidade de Zico, que certamente reverterá em uma fabulosa arrecadação em Cali. A própria CSF não vê com bons olhos a formação de dois grupos “desequilibrados”, gerando jogos esvaziados em um dos grupos. O Flamengo argumenta, negocia, regateia. Mas, dessa vez, é voto vencido. A Confederação decide-se pelo sorteio.
E assim, as chaves estão definidas. O Grupo 1 será formado por Deportivo Cali, Jorge Wilsterman e pelo Flamengo. E o Grupo 2 reunirá os uruguaios de Nacional e Peñarol, além do Cobreloa.
Ao menos, o rubro-negro consegue ser atendido em uma importante demanda. Ao perceber que terá que ceder na questão do sorteio, requer que as partidas de seu grupo sejam disputadas apenas em outubro. Não é uma questão banal. Somente em setembro já estão marcados oito jogos, sete pelo Estadual e o aguardado amistoso com o Boca Juniors. Enfiar mais quatro partidas no mês arrebentaria o elenco, que já apresenta sinais de desgaste. E, após mais uma arrastada rodada de negociações, o Flamengo consegue que as partidas se iniciem apenas em outubro, numa vitória importante de bastidores. Terá um mês para estudar adversários, logística, pontos fortes e fracos dos dois desconhecidos e perigosos adversários.
Para disputar a competição como deve ser jogada. Dentro e fora de campo.
O Flamengo, com quatro vitórias em quatro jogos, venceu seu Grupo nas Semifinais e qualificou-se para disputar a final com o surpreendente Cobreloa, que eliminou os uruguaios com três vitórias e um empate. Como temia a Diretoria, as arrecadações no Maracanã nesta Fase foram baixas, públicos de 28 mil e 7 mil contra Deportivo Cali e Wilsterman, respectivamente.
Em 1982, o Flamengo, com o prestígio de Campeão Mundial, conseguiu alinhavar um acordo mais sólido, e impor sua preferência. Assim, nas Semifinais, após reunião da CSF no Rio de Janeiro, formou-se o “Grupo do Atlântico”, com Peñarol e River Plate, enquanto o “Grupo do Pacífico” reuniu Olimpia-PAR, Cobreloa-CHI e Tolima-COL. A definição se deu sem a realização de sorteio. O clube, após a disputa dos jogos, não repetiu o ano anterior, caindo com duas vitórias e duas derrotas. O público no Maracanã nas duas partidas foi considerado excelente. 68 mil contra o River Plate e 91 mil diante do Peñarol.
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