domingo, 21 de outubro de 2018

Em crise, Flamengo é Campeão Brasileiro de 1983


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:

O terceiro título do Campeonato Brasileiro levantado pelo Flamengo em sua história talvez seja o menos relembrado e comentado entre os seis. O primeiro, em 1980, é citado como pontapé inicial para a conquista do mundo. O segundo, de 1982, é a consagração definitiva do Fla “campeão de tudo”. O quarto, em 1987, à parte das polêmicas judiciais sempre levantadas (pelos outros), tem a marca de um timaço que uniu gerações de ídolos rubro-negros. O penta, em 1992, é do Vovô Garoto e dos Gaúcho’s Boys. E o hexa, em 2009, evoca as jornadas memoráveis de Adriano e Petkovic. E o de 1983? Como entra nesse álbum de memórias?

A vitória categórica sobre o Santos por 3 a 0 naquele 29 de maio de 1983 num Maracanã atulhado de gente – que deu ali ao Brasileiro seu maior público de todos os tempos – consagrou um Fla já um tanto diferente daquele que todo mundo decorou. Do meio para a frente, só Adílio e Zico mantiveram-se como titulares. Mas foi o primeiro título nacional vencido na base do “deixou chegar”, que se tornaria tão característico. Talvez pouca gente saiba, mas o Flamengo, apesar de todo o elenco e cartel recentes, entrou com o moral baixo naquele torneio, subestimado pela imprensa e desacreditado pela torcida.

Foi também o que marcou a despedida de Zico, cuja saída para o futebol italiano foi preservada como segredo de estado na reta final da competição até o triste anúncio, dias depois da conquista. Foi também o último Brasileiro com Raul, nosso senhor goleiro, sob as traves. A taça veio com um treinador que talvez tenha sido o menos “feito em casa” dentro da tradição rubro-negra de conquistas, mas que acabou sendo fundamental naquele curto espaço de tempo em que ficou, ao injetar gás novo na equipe. Ah, sim! Houve ainda a deliciosa eliminação de um arquirrival no mata-mata. São muitas histórias. Vamos a elas?

Até o fim de setembro, o Flamengo viveu um ano de 1982 irretocável. Numa campanha repleta de viradas memoráveis e vitórias marcantes sobre vários dos grandes clubes brasileiros, o clube levantou o Campeonato Brasileiro derrubando na final o campeão anterior, Grêmio, dentro do estádio Olímpico. A conquista representava ainda a unificação de todas as taças possíveis: naquele fim de abril, os rubro-negros se tornavam os atuais detentores dos títulos estadual, nacional, continental e mundial. E ainda sobrava, de lambuja, a Taça Guanabara.

E mesmo em meio à tristeza que envolveu o futebol brasileiro com a derrota de uma Seleção encantadora no Mundial da Espanha, em julho, a torcida do Fla ainda encontrava motivos para sorrir: o time começara a campanha no Carioca da mesma maneira que vinha antes da pausa para a Copa. Depois de surrar pequenos (a Portuguesa levou de quatro e o Madureira, de oito) e grandes (Botafogo e Fluminense perderam de 3 a 0, fora os respectivos bailes), o time faturou o penta da Taça Guanabara vencendo o Vasco em jogo extra, 1 a 0, gol de Adílio no último minuto.

Naqueles três últimos meses do ano, havia pela frente a Taça Rio, a Taça Libertadores da América (na qual o Flamengo, como atual campeão, já entrava diretamente no triangular semifinal) e, mais adiante, a fase final do Carioca, para qual o time já estava classificado por vencer o primeiro turno. A prudência aconselhava girar o elenco – que havia sido até reforçado naquele semestre, com nomes como os ponteiros Wilsinho e Zezé – no torneio estadual para evitar que o desgaste físico e uma certa autossuficiência em vista das conquistas anteriores atrapalhassem a caminhada para manter a hegemonia.

Não foi, no entanto, o que se viu. O time titular foi mantido no Carioca e, em 17 de outubro, perdeu para o perigoso Campo Grande no alçapão de Ítalo del Cima por 1 a 0. Dois dias depois, já estava em Montevidéu, estreando na Libertadores contra o Peñarol. A nova derrota pelo placar mínimo não foi um bom sinal. Até porque, dali em diante, o elenco iniciaria uma verdadeira maratona, jogando de três em três dias, indo de estádios acanhados a aeroportos.

Se venceu duas vezes o River Plate (3 a 0 dentro do Monumental de Nuñez e 4 a 2 no Maracanã), perdeu de vez o rumo no Estadual com derrotas para a Portuguesa na Ilha do Governador e para o Fluminense no Maracanã. Após o triunfo sobre os portenhos no Rio, muito mais complicado do que o placar indica, João Saldanha chegou a intimar em sua coluna no Jornal do Brasil: “Parem os onze!”. Segundo ele, o desgaste físico e psicológico era gritante no time do Flamengo, vinha atrapalhando a fluência de seu jogo e poderia levar a consequências desastrosas.

Não deu outra: definitivamente afastado da conquista da Taça Rio após perder para o America quatro dias depois de vencer o River Plate, o Fla viveria um dos jogos mais traumáticos de sua história em 16 de novembro: precisando vencer o Peñarol no Maracanã por qualquer placar para voltar à final da Libertadores, o time desperdiçou um caminhão de gols, viu uma cobrança de falta do brasileiro Jair vencer Cantarele e perdeu por 1 a 0 diante de um estádio incrédulo. Três semanas depois, perderia também o título carioca para o Vasco. Era o pior desfecho possível.

Um clube dilacerado! Se dentro de campo, as coisas já haviam ficado inacreditavelmente amargas, fora dele ficariam ainda piores. Dois dias depois da derrota para o Vasco, o supervisor Domingo Bosco foi internado com problemas cardíacos. No dia 20, morreria vitimado por uma trombose cerebral, aos 51 anos. Era fundamental na estrutura rubro-negra: verdadeiro paizão para os atletas, servia de anteparo na relação entre eles e a diretoria, cuidava de todos os detalhes na concentração, e ainda atuava como “relações públicas”, promovendo os jogos. Era insubstituível.

Outra baixa foi a demissão do preparador físico José Roberto Francalacci, no clube desde o fim dos anos 60 e responsável por todo o tratamento ao qual Zico e outros pratas da casa haviam se submetido na adolescência para ganhar massa muscular. Uma discordância com o técnico Paulo César Carpegiani sobre a divisão de atribuições e o método de trabalho levaria à saída do preparador. Já o treinador teria seu contrato renovado por mais um ano. Mas não resistiria até lá, como veremos.

Sem Bosco, os pequenos atritos que haviam entre jogadores e comissão técnica se intensificaram e se tornaram quase incontroláveis. No começo de janeiro de 1983, o New York Cosmos sondou a contratação de Nunes. Indagado se gostaria de deixar o Flamengo, o atacante deixou escapar que “não se dava com uma pessoa” de dentro do clube. Pressionado por jornalistas, acabou deixando no ar que seu desafeto era o treinador. Afastado do elenco (até porque o clube já tentava o gremista Baltazar), foi colocado em disponibilidade. Depois de Palmeiras, Millonarios de Bogotá e Ponte Preta manifestarem interesse, ele é emprestado ao Botafogo no fim de fevereiro, com o Brasileiro já rolando.

Ainda em janeiro, no dia 17, o clube acerta a chegada de Baltazar, em troca por empréstimo por Tita, que sai insatisfeito e triste por deixar o clube. Chega também um certo lateral-direito chamado Cocada, vindo do Operário-MS. Para a ponta-direita, no dia 20 é anunciado Robertinho, do Fluminense, também em troca por Wilsinho (ex-ponteiro do Vasco, trazido para o Carioca de 1982). Por outro lado, há ainda a pendência dos contratos de Figueiredo, Mozer e Lico, que vencem em breve.

Enquanto isso, o time largava no Brasileiro com atuações oscilantes ao extremo. Na estreia, uma atuação muito segura na vitória sobre o Santos por 2 a 0, gols de Baltazar e Zico. Seis dias depois, uma péssima apresentação num vexatório empate em 1 a 1 com o fraco Moto Clube em pleno Maracanã. Em seguida, a equipe vai ao Norte e faz dois jogos nervosos contra o Rio Negro no acanhado Estádio da Colina, em Manaus (1 a 1), e contra o Paysandu no Mangueirão (vitória por 3 a 2), deslanchando apenas no terceiro, indo à forra com o Moto Clube com uma goleada de 5 a 1 no Castelão de São Luís.

Passado o Carnaval, o time volta embalado, arrasando o Rio Negro no Maracanã por 7 a 1, num jogo em que Cocada marca duas vezes. Três dias depois, nova vitória por 3 a 2 sobre o Paysandu, agora em casa, com três de Baltazar. Mas na última partida, o time perde para o Santos por 3 a 2, deixando cair um tabu de oito anos sem derrotas no Morumbi e outros dez sem perder para o Peixe – que também arrebata a primeira colocação do grupo ao fim da primeira fase.

A primeira etapa tem Baltazar como personagem: embora artilheiro da equipe com oito gols, o atacante recém-chegado do Grêmio é muito criticado pela afobação nas conclusões e o individualismo nas jogadas. Em algumas partidas, até mesmo Zico demonstra muita irritação quando o centroavante prefere tentar uma jogada infrutífera a passar para um companheiro melhor colocado. Por outro lado, Marinho vem se agigantando na zaga, apontado como o melhor jogador da linha de defesa no momento. Enquanto Raul, aos 38 anos e vivendo a última temporada de sua carreira, mantém a segurança sob as traves.

Pausa no Brasileiro: o Fla vira a chave para a outra competição do semestre, a Libertadores. Em 4 de março, o time vai ao Olímpico, mesmo palco da final do Brasileiro do ano anterior, e estreia com um ótimo empate em 1 a 1 diante do Grêmio. Baltazar balança as redes do ex-clube com um belo gol logo aos 16 minutos, mas o uruguaio Hugo De León deixa tudo igual a dez minutos do fim do jogo. De volta à competição nacional, os rubro-negros têm um grupo fácil na segunda fase, no qual o Tiradentes do Piauí e o velho conhecido Americano de Campos são os azarões, enquanto o badalado Palmeiras disputa o favoritismo.

Na primeira rodada, o time vai a Teresina e bate o Tiradentes por 3 a 1, com dois gols de Zico e um de Andrade. Porém, um problema no joelho faz o volante ser desfalque para o jogo seguinte, dali a quatro dias, contra o Palmeiras no Morumbi. O Fla sai na frente e chega a controlar o jogo em parte do primeiro tempo, mas o Alviverde empata antes do intervalo e volta arrasador na etapa final, vencendo por 3 a 1. E a crise volta. Mesmo vencendo o Americano no Maracanã por 3 a 0, o time cumpre péssima atuação e sai vaiado. O que se repete dois dias depois nos 2 a 0 sobre o Tiradentes.

Xingado de “burro” pelos torcedores por tirar o ponta-esquerda Édson, um dos melhores da equipe contra o Tiradentes, e não os decepcionantes Robertinho e Baltazar, para a entrada do garoto Bebeto, Carpegiani procurou o vice-presidente de futebol Paulo Dantas ao fim do jogo e comunicou seu desejo de deixar o clube. De um dia para o outro o pedido de demissão foi oficializado, e o Fla já apontava o ex-meia Carlinhos, então técnico dos juvenis, para comandar o time pelos próximos jogos. Sondado por dirigentes árabes, Carpegiani dali a poucos dias assinaria contrato com o Al-Nassr.

A primeira passagem de Carlinhos como técnico do Flamengo não tem, no entanto, o sucesso que teriam as posteriores. Dura apenas cinco jogos, dado que confere um caráter de interino, ainda que segundo os jornais da época os dirigentes se referissem ao ex-meia como treinador efetivo. De cara, ele já precisa enfrentar problemas justamente em sua antiga posição, com o permanente afastamento de Andrade, ainda lesionado. Lico fará seu último jogo contra o Palmeiras antes de operar o joelho. Zico também tem problemas físicos, mas segue jogando e vai enfrentar o Alviverde.

Depois de jogar para 12 mil contra o Americano e seis mil contra o Tiradentes, o Flamengo arrasta 80 mil torcedores ao Maracanã para a estreia de Carlinhos. O time faz uma de suas melhores atuações do ano até então, encurralando os paulistas. Abre o placar numa cabeçada de Baltazar aos 27 minutos e perde várias chances claras. Mas, a 12 minutos do fim, numa jogada que nasce de impedimento não marcado de Cléo, Jorginho empata para o Palmeiras. Porém, três dias depois é o Fla que fica duas vezes atrás no placar contra o Americano em Campos e tem que buscar o empate em 2 a 2, novamente com Baltazar.

Chega a hora de novamente virar a chave para a Libertadores, viajando para enfrentar os bolivianos Blooming e Bolivar. E é aí que a equipe volta a mergulhar na crise. Mesmo sem o problema da altitude influindo em Santa Cruz de la Sierra, o time apenas empata com o primeiro, numa noite de péssima pontaria. Contra o segundo, em La Paz, veio o desastre. Sem organização, mas principalmente sem fôlego, o Fla chega a sofrer 3 a 0, descontando no fim do segundo tempo com um gol do ponteiro Édson, e fica praticamente eliminado, até porque o Grêmio vencera ambos os jogos no país andino.

A imprensa abre manchetes: o que há com o Flamengo? É o fim do grande esquadrão? No Rio, comenta-se sobre as mudanças pelas quais passou não só o time como a comissão técnica – sem Andrade, Tita, Nunes, Lico, Bosco, Carpegiani – que interferiram até no estilo de jogo tradicional da equipe. Também há a acusação de que alguns jogadores que não vêm rendendo o esperado nem honrando a camisa. Adílio é um dos mais visados, tachado de enfeitar demais, não ter garra, não saber cabecear nem chutar no gol.

Em São Paulo, por sua vez, há um indisfarçável regozijo com o fim da hegemonia rubro-negra. Até porque agora é possível dispensar o pudor de alçar os quatro grandes do estado à condição de maiores favoritos ao título do Brasileiro, que já adentra a terceira fase de grupos. Correm por fora o Grêmio e o Atlético-MG, pelos grandes jogadores que tinham e pelo bom desempenho recente. Já entre os cariocas, o mais cotado é – surpresa – o America, que vem de ótimo papel nas etapas anteriores.

Quanto ao Fla, alguns palpiteiros mais venenosos acreditam que o time nem chegará às quartas, caindo num grupo com dois paulistas: o (aparentemente) consolidado Corinthians de Sócrates e Casagrande e o ascendente Guarani. Antes da estreia, contra o Goiás no Maracanã, já é anunciada a saída de Carlinhos, que comandará o time pela última vez. Há também protestos da torcida, que leva muitas faixas à geral (“Queremos raça”, “Adílio pipoqueiro”, “Junior bailarino”, “Jogadores ganham muito e jogam pouco”). Mas o time deu de ombros, jogou bem e largou com vitória por 2 a 0, gols de Zico e Robertinho.

Paradoxalmente, em meio ao mau momento geral recente, crescia a olhos vistos o futebol do volante Vitor. Alvo de polêmica em anos anteriores por ser convocado com frequência por Telê Santana para a Seleção mesmo seguindo na reserva de Andrade no clube, foi visto com desconfiança quando assumiu a posição pela lesão do titular, de quem diferia no estilo. Menos técnico e classudo, era, porém, mais dinâmico, correndo o campo todo, fechando a frente da área, cobrindo as laterais e aparecendo bem na frente. Foi o único a se salvar nos catastróficos jogos na Bolívia. E daqui em diante seria fundamental.

Carlinhos voltou para a base, o preparador Cléber Camerino dirigiu interinamente o time no empate sem gols com o Guarani em Campinas, e o Fla, que sondou o velho ídolo Evaristo de Macedo (então no Catar), acabou acertando com Carlos Alberto Torres para o comando do time. O “Capita” teve rápida passagem como jogador pelo Fla em 1977, e havia pendurado as chuteiras em setembro de 1982 atuando pelo Cosmos justamente num amistoso com o Flamengo. Aos 38 anos, vivia sua primeira experiência como treinador e falava em resgatar o futebol alegre e a motivação dos jogadores rubro-negros.

Sua primeira medida, no entanto, foi mais prudente. Aproveitou a suspensão de Robertinho (expulso no último minuto do jogo com o Guarani) para armar um time sem pontas, mas mais combativo e aplicado no meio-campo. A ideia era aproveitar o vigor e a aplicação dos jovens Élder e Júlio César Barbosa (ambos promovidos da base naquela temporada), juntamente com Vitor no bloqueio, liberando Adílio e Zico para se concentrarem na criação, com Baltazar à frente.

Deu muito certo. Empurrado por mais de 90 mil torcedores (seu maior público no Maracanã no ano até ali), o Fla arrasou o Corinthians de Leão, Zenon e Sócrates por 5 a 1, tendo ainda nada menos que três gols estranhamente anulados pelo árbitro, num jogo histórico, lembrado aqui. O time ganha outro ânimo. Após o empate em 1 a 1 com o Goiás no Serra Dourada e a vitória por 2 a 0 sobre o Guarani em casa, a vaga nas quartas de final vem por antecipação – ironicamente, os goianos serão os outros classificados, deixando pelo caminho os “favoritos” Corinthians e Guarani, este sem vencer nenhum jogo.

Na Libertadores, o Fla ainda arrasa o Blooming por 7 a 1 – mesmo depois de sofrer um gol com esdrúxulos 29 segundos de partida – em seu primeiro jogo em casa no torneio, mas entre aquela partida e as próximas, o Grêmio (eliminado de modo surpreendente no Brasileiro ao perder no Olímpico para a Ferroviária de Araraquara) também vencerá a dupla boliviana em Porto Alegre, selando a classificação. Para os rubro-negros, não faz mal. Há outras batalhas a serem vencidas no torneio nacional. E uma caseira o aguarda: o Vasco – que eliminara outro favorito paulista, o Palmeiras – é o adversário das quartas.

O primeiro jogo, numa noite de quinta-feira, foi bastante truncado e faltoso. Mas o Fla dominou as ações, especialmente no segundo tempo. Antes, na etapa inicial, o time abriu o placar numa triangulação iniciada por Zico e Junior, que encontrou Adílio no meio da zaga do Vasco, tendo apenas que tirar de Mazarópi para abrir o placar. Os cruzmaltinos, no entanto, empataram numa infelicidade de Mozer, que, numa disputa pelo alto com Roberto Dinamite, cabeceou contra as próprias redes uma rebatida de Raul.

Aos 23 do segundo tempo, o Fla marcaria o gol da vitória com Júlio César, aproveitando uma grande jogada e o cruzamento de Marinho pela direita, além da saída em falso do goleiro vascaíno. O resultado deixava o Fla com a possibilidade de até perder por um gol de diferença na partida de volta. No domingo, o Vasco até saiu na frente, num lance de sorte: Roberto rolou uma cobrança de falta para Elói, que chutou e viu a bola resvalar na defesa rubro-negra, enganando Raul.

Só que os cruzmaltinos ficaram nisso. E aos poucos o Flamengo retomou o controle do jogo: mesmo em desvantagem (embora garantido com aquele resultado), era o melhor time em campo e criava muitas chances para o empate. Somente nos 15 minutos finais, o Vasco acordou e foi tentar o segundo gol. Mas foi a vez de o Fla ser traiçoeiro, gastando a bola e o tempo. Quando o relógio se aproximava dos 45 minutos, Élder recebeu lançamento de Leandro na ponta direita e tocou de calcanhar para Adílio. O meia avançou até a área em meio à aberta defesa vascaína e só rolou para o lado, para Zico chegar e empatar.

Irritados com a eliminação decretada, os vascaínos voltaram sua ira contra a arbitragem, numa reclamação absurda de impedimento (Zico estava bem atrás da linha da bola). Visivelmente descontrolado, Roberto tentou agredir o juiz Valquir Pimentel, acabou expulso e teve de ser escoltado para fora do gramado. O técnico cruzmaltino Antônio Lopes ainda tentou acusar o Fla de “jogar como time pequeno”, quando havia sido exatamente o Vasco que inexplicavelmente passara a maior parte do jogo se defendendo, quando deveria ter saído para buscar o resultado.

O que importava ao Flamengo era estar nas semifinais, e diante de um adversário surpreendente: o Atlético Paranaense, que derrubara mais um favorito paulista – agora o São Paulo – vencendo as duas partidas. Era o que dava ao time curitibano a vantagem de decidir o confronto em casa (no caso, no Couto Pereira, então o principal estádio da capital do estado). Antes, porém, teriam que encarar outra prova de fogo: um Maracanã com mais de 100 mil flamenguistas.

O jogo do Maracanã foi um verdadeiro massacre do Flamengo. Mesmo a ausência de Raul, lesionado, não foi sentida, já que Cantarele foi praticamente um espectador da partida. Do outro lado, Roberto Costa gastava toda a sua cota de milagres no gol do time paranaense. Mas não pôde deter a cabeçada de Zico, após bola escorada também de cabeça por Júlio César, aos 39 minutos do primeiro tempo. Nem quando o Galinho passou a Vitor, e o volante fuzilou com um chute cruzado aos oito da etapa final. Nem a cobrança de pênalti de Zico (após Robertinho ser bloqueado com o braço por um defensor), aos 16.

Na volta, porém, o Fla teve problemas. Diante de mais de 65 mil torcedores (recorde de público do estádio até hoje), o time começou melhor e perdeu pelo menos duas chances claras com Baltazar. E pagou caro levando dois gols de Washington em jogadas idênticas, com um intervalo de apenas três minutos entre ambos. Continuou criando e perdendo várias chances a longo da partida (Roberto Costa estava novamente inspirado), mas também foi salvo por uma defesa crucial de Raul em chute de Capitão.

Com a vaga na Libertadores de 1984 garantida pela passagem à final, a decisão é um reencontro: o Santos, rival na primeira fase, cruza novamente o caminho do Fla. Vitor, com um problema na coxa, seria uma baixa. Em seu lugar entraria o garoto Bigu, promovido por Carlos Alberto durante o campeonato (“Meu time é Bigu mais dez”, chegou a dizer o treinador para motivar o jovem volante). Já no Santos havia um jogador disposto a mostrar seu valor: o também volante Lino, emprestado pelo próprio Flamengo depois de integrar o elenco por cinco anos sem chegar a se firmar em sucessivos empréstimos.

Com o Morumbi lotado, o Fla perde chance clara com Élder logo no início e, como em Curitiba, acaba castigado com a abertura do placar pelos santistas, num chute forte, de fora da área, de Pita em rebote de escanteio. Para dar mais ofensividade, Carlos Alberto mexe no intervalo: tira Júlio César e coloca o garoto Bebeto. Mas no segundo tempo, aos 18, uma bobeada da defesa rubro-negra, que parou para reclamar da marcação de uma falta, resulta no segundo gol do time paulista, com Serginho aproveitando rebote de Raul. Na comemoração, o atacante é atingido por um rojão arremessado pela própria torcida.

Enquanto Serginho é atendido fora do campo, há um escanteio para o Flamengo. Junior levanta na área, Mozer cabeceia para trás na segunda trave, Marinho também testa e Baltazar, meio de costas para o gol, desvia de cabeça para as redes. Um gol que mantém o Fla vivo no campeonato. O problema é perder Mozer, um dos melhores em campo, que sofre afundamento do malar após uma cabeçada sem intenção de Paulo Isidoro no último minuto. Mas Vitor retorna para a batalha final.

Com a derrota por 2 a 1 na ida, o Flamengo precisava vencer por dois gols para levar o título nos 90 minutos. Em caso de vitória por um gol de diferença, independentemente do placar, a decisão iria para prorrogação, e então pênaltis. Empate era do Santos. Para empurrar os rubro-negros em busca do terceiro título brasileiro, que tal um recorde de público? Pois nada menos que 155.253 torcedores vão ao Maracanã e, logo aos quarenta segundos, são premiados com o primeiro gol, marcado por Zico.

Quarenta segundos. Pouca coisa aconteceu entre a bola começar a rolar e ela ser lançada por Vitor para Julio Cesar, o loirinho garoto goiano que faz um carnaval pela ponta-esquerda onde há não muito tempo outro Julio César costumava brilhar. Dá dois cortes em Toninho Oliveira e cruza rasteiro. Baltazar é bloqueado, Junior pega a sobra e enche o pé. Marolla espalma, e Zico, no lugar certo e na hora certa, toca para o gol vazio mesmo caído. O Maracanã ferve, pulsa, treme. A decisão já está igual de novo.

Baltazar perde uma ótima chance de ampliar logo aos cinco, tocando por cima na pequena área. Em seguida, é a arbitragem que fica na berlinda: primeiro Toninho Silva corta com o braço um cruzamento de Zico dentro da área, mas o jogo segue. Instantes depois, Pita arranca e é travado por Marinho fora da área, quase sobre a linha. Os santistas pedem pênalti. Arnaldo César Coelho marca tiro livre indireto dentro da área. E a cobrança não dá em nada.

O Santos cresce e assusta em alguns lances. O Fla responde com uma cabeçada de Baltazar que tinha endereço certo, mas Marolla vai buscar. Aos 40, há uma falta lateral para o Flamengo perto da linha de fundo. Zico levanta na primeira trave e Leandro cabeceia no canto, inapelável. Antes do fim do primeiro tempo, o lateral-direito quase marca o terceiro, depois de desarmar o ponteiro João Paulo, cortar pelo meio e, de pé esquerdo, desferir um petardo que explode no travessão e quica sobre a linha. Agora, o Flamengo vai para o intervalo como o senhor da partida.

Na etapa final, o Santos começa querendo descontar e até entra duro em alguns lances, mas o Flamengo aos poucos retoma o domínio. Vitor e Adílio são onipresentes. O volante é o motor do meio-campo rubro-negro, correndo, cobrindo, passando, lançando. Já o dono da camisa 8, contestado durante todo o campeonato, tem uma das maiores atuações da carreira. O time chega perto do terceiro gol, mas tanto Julio Cesar e, mais tarde, Adílio, param em Marolla.

Até que aos 44, Vitor desarma um jogador do Santos que tentava iniciar um contra-ataque e Robertinho, que entrara no lugar de Baltazar, ganha a disputa com Gilberto, dá dois cortes lindos no lateral santista e cruza alto. Adílio, aquele que “não sabe cabecear”, testa para vencer Marolla pela terceira e última vez no jogo. O título já é uma realidade. Os jogadores do Santos, de cabeça quente, tentam estragar a festa. Paulo Isidoro empurra um fotógrafo – a essa altura, o gramado do Maracanã já está repleto também de repórteres e cinegrafistas – e o papelão degringola para uma confusão à beira do campo.

A gigantesca torcida do Flamengo não quer nem saber. Seu time é tricampeão brasileiro, contrariando os prognósticos – como passaria a ser a regra nas conquistas nacionais posteriores. É que o Flamengo em crise, destroçado, rachado internamente, supostamente uma caricatura da grande equipe que foi nos anos anteriores, reconstruiu-se, recuperou a alegria e deu a volta por cima com mais uma taça nas mãos. Em fim de ciclo? Pode até ser, até porque o astro maior, Zico, partiria para a Udinese dali a alguns dias. Mas, como todo bom time vencedor, o Flamengo o encerra brilhantemente com mais um título brasileiro.



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