Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:
Como nas antigas sagas épicas da literatura, o Flamengo teve de enfrentar inúmeras provações e vencer seus próprios fantasmas ao longo de toda a trajetória até a conquista da Copa Mercosul de 1999. Classificações improváveis, batalhas campais, crises internas, rivais que evocavam lembranças dolorosas, a perda não menos traumática de seu grande craque. Houve de tudo naquela campanha.
Um gol arrepiante do atacante Lê diante do Palmeiras em pleno Parque Antártica, que comoveu uma geração inteira de rubro-negros, encerrou todo o sofrimento. Matou o enésimo dragão que cruzou o time de Carlinhos. Trouxe mais um importante troféu internacional para a galeria do Flamengo. Fez a gente rubro-negra, que andava tão sofrida naquele fim de 1999, ter um Natal muito melhor do que o que se desenhava semanas antes.
O TORNEIO
Em 1997, a Conmebol encerrou a história da Supercopa dos Campeões da Libertadores, torneio criado em 1988 reunindo todos os campeões da principal competição do continente, e no lugar desta decidiu instituir dois novos campeonatos: as Copas Mercosul (envolvendo os países do bloco econômico de mesmo nome) e Merconorte (incluindo equipes de países mais ao norte da América do Sul, além de eventualmente das Américas do Norte e Central).
Se no torneio extinto a premissa para se estabelecer os participantes era bem simples (bastava ter vencido a principal competição do continente), para a Copa Mercosul os critérios eram mais subjetivos, levando em conta tradição, conquistas e torcida. No fundo, o objetivo era mesmo criar uma Superliga do Cone Sul. E para isso havia ainda o generoso aporte financeiro da televisão, angariado por meio da empresa de marketing esportivo Traffic.
Ao todo, 20 clubes de Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai foram convidados para disputar a competição. Os brasileiros eram 7: Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Grêmio (que chegou a ser substituído pelo Atlético-MG na edição de 2000), Palmeiras, São Paulo e Vasco. Na primeira fase, as equipes eram divididas em cinco grupos de quatro equipes, com os campeões de cada chave mais os três melhores segundos colocados avançando às quartas de final.
O Flamengo havia feito campanha discreta na primeira edição, embora tenha chegado à última rodada com chances de classificação. Uma derrota por 3 a 0 para o Boca Juniors na Bombonera, no entanto, eliminou a equipe então dirigida por Evaristo de Macedo. Diferentemente do ano tumultuado de 1998, o time rubro-negro chegava para a edição seguinte embalado pelo título carioca que iniciaria um tri, sempre em cima do favorito Vasco.
Romário era o astro da companhia no elenco dirigido pelo velho Carlinhos “Violino”, que mesclava pratas da casa – que então tinham como nomes mais badalados o zagueiro Luís Alberto e o lateral esquerdo Athirson – com nomes mais rodados – o goleiro Clemer, o lateral Pimentel, o zagueiro Célio Silva, o volante Leandro Ávila, o meia Beto e os atacantes Leandro Machado e Caio. Não chegava a ser um timaço, mas demonstrava organização e sobretudo raça.
Sorteado em um grupo razoavelmente mais acessível que o da edição anterior (em vez de Boca Juniors, Vélez Sarsfield e Cerro Porteño, os adversários agora seriam Olimpia e a dupla chilena Colo-Colo e Universidad de Chile), o Flamengo apostava em chegar longe no torneio, de olho na gorda premiação que poderia chegar aos US$ 5 milhões em caso de título. E o pontapé inicial da campanha viria diante do Olimpia no Maracanã no dia 27 de julho.
NO BOM INÍCIO, UMA GOLEADA NO CHILE
A conquista do Estadual foi seguida por uma pausa no calendário nacional para a disputa da Copa América no Paraguai. Na volta, depois de um mês sem jogar, o Fla entrara em campo duas vezes: derrotara o Grêmio por 1 a 0 no jogo das faixas de campeão carioca e a Ponte Preta pela mesma contagem na estreia no Campeonato Brasileiro. A atuação diante do time campineiro não havia sido boa, mas, na base da conversa, Carlinhos afiou o time.
No primeiro tempo contra os paraguaios, o Fla abriu 2 a 0 com dois gols de Romário. No primeiro, aproveitando ótimo lançamento de Rodrigo Mendes e tocando por cima do goleiro Tavarelli. E no segundo, escorando de cabeça o cruzamento do lateral Marco Antônio. Na etapa final, o Olimpia descontou num pênalti de Fabão em Fretes, que Avalos converteu, mas sem conseguir atrapalhar a estreia rubro-negra com o pé direito na competição.
Uma semana depois, o time voltaria a campo pelo torneio em sua primeira partida fora de casa, diante do Colo-Colo no Estádio Monumental de Santiago, e conquistaria uma vitória categórica. No primeiro tempo, Rodrigo Mendes estufou as redes duas vezes em dois chutaços de fora da área aos 11 e aos 41 minutos. Entre um e outro, aos 21, Romário recebeu do volante Jorginho e limpou a marcação antes de tocar no canto do goleiro Arbiza.
Na etapa final, aos 36 minutos, mais um golaço encerraria a contagem. A jogada começou com Leandro Ávila, que passou a Fábio Baiano. O meia tabelou com o zagueiro Fabão e soltou um sem-pulo espetacular sem chances para Arbiza, decretando a goleada de 4 a 0 que confirmava o ótimo início da equipe no torneio, disparando na liderança com seis pontos, contra três de Colo-Colo e Olimpia, que se enfrentariam na rodada seguinte.
A partida de Santiago marcou também a estreia de Leandro Ávila naquela edição. Contratado por empréstimo de um ano ao Fluminense em meados de 1998, o volante chegara a ficar nove meses sem jogar após chegar à Gávea com problemas físicos. Voltou na semana da decisão do Estadual e teve atuação monstruosa nos dois jogos contra o Vasco. Mas havia ficado de fora contra o Olimpia devido a uma divergência com o Flu sobre sua aquisição definitiva.
Entre a partida contra o Colo-Colo e a seguinte pela Mercosul, também em Santiago diante da Universidade de Chile, o Fla engrenara no Brasileiro: vencera o Inter no Beira-Rio, o Coritiba no Maracanã e o Sport na Ilha do Retiro, chegando às primeiras posições no torneio nacional e se candidatando a uma das oito vagas na etapa seguinte. Na competição sul-americana, a passagem às quartas também estaria bem próxima em caso de nova vitória no Chile.
O time fez um bom primeiro tempo diante da Universidad: Romário perdeu chance clara de abrir o placar finalizando para fora, da marca do pênalti, no último minuto. Na etapa final, dois erros bisonhos da defesa castigaram os rubro-negros. Uma espanada de Célio Silva levou ao cruzamento de Valencia para a cabeçada de Guzmán. E uma rebatida mal feita de Luís Alberto na entrada da área proporcionou a finalização de Rey no canto de Clemer.
O time ainda perderia Romário, expulso por reclamação aos 35 minutos do segundo tempo. Era o terceiro cartão vermelho recebido por um jogador do Fla no torneio, depois de Leonardo Inácio contra o Olimpia e Fabão contra o Colo-Colo terem deixado o campo mais cedo. O desfalque abriria um lugar para Caio ao lado de Leandro Machado no ataque rubro-negro. Enquanto Beto, às voltas com lesões, dava lugar a Leonardo Inácio no meio.
A PRIMEIRA CRISE BATE À PORTA
O time oscilou um pouco no Brasileiro antes da viagem a Assunção para enfrentar o Olimpia: perdeu de virada para o Grêmio no Maracanã (4 a 3), mas compensou com uma vitória histórica sobre o Corinthians – então 100% no campeonato – dentro do Pacaembu por 2 a 1 e uma goleada sobre o Botafogo de Ribeirão Preto por 4 a 1 no interior paulista. O voo para a capital paraguaia também foi turbulento: o avião balançou na chegada com os fortes ventos.
Em campo, o Fla chegou a nutrir esperanças de um bom resultado para encaminhar a classificação quando Leonardo Inácio pegou a sobra de uma bola mal afastada pela defesa e tocou para as redes aos 14 minutos. Mas o Olimpia viraria ainda no primeiro tempo com Esteche (após um chutão do goleiro e uma finta seca em Fabão) e Franco (numa cabeçada fraca e no meio do gol que Clemer aceitou numa falha clamorosa). E as coisas piorariam na etapa final.
Logo aos dois minutos, Luís Alberto parou uma ofensiva de Avalos com o braço, o adversário simulou uma cotovelada e provocou a expulsão do zagueiro rubro-negro. E aos 15, seria a vez de Athirson levar o vermelho após uma entrada forte. O time ainda teve chance de empatar numa penetração de Leandro Machado, mas o árbitro marcou impedimento inexistente. No fim, Yegros driblou Rodrigo Mendes perto da linha de fundo e marcou o terceiro.
A derrota complicou a vida do Flamengo na chave, em especial após Colo-Colo e Olimpia pontuarem nos jogos seguintes, relegando os rubro-negros à terceira posição. Entre a derrota em Assunção e o jogo contra o Cacique no Maracanã, o atacante Caio protagonizou as manchetes, primeiro ao ter que jogar de goleiro após a expulsão de Clemer no empate com o Gama (1 a 1) em Brasília e depois ao anotar o gol da vitória sobre o São Paulo, seu ex-clube.
Com isso, ele ganharia um voto de confiança de Carlinhos, seguindo no ataque titular mesmo com a volta de Romário após suspensão – Leandro Machado foi para o banco – para pegar o Colo-Colo. E não decepcionaria, abrindo o placar aproveitando a bola solta pelo goleiro Arbiza num lance que começou com passe de letra de Romário. No fim do primeiro tempo, o lateral Marco Antônio tabelou com Rodrigo Mendes e chutou de fora da área para ampliar.
Na etapa final, o Fla perdeu inúmeras chances de matar o jogo: Caio parou primeiro em Arbiza e depois viu sua cabeçada passar raspando no travessão, enquanto Romário desperdiçou duas chances cara a cara com o goleiro ao tentar tocar por cobertura. E o time acabaria castigado por um Colo-Colo que voltou mais ofensivo e aproveitou falhas na defesa rubro-negra, chegando ao empate com gols de Muñoz e Vergara aos 34 e 38 minutos.
“Quem viu o jogo custou a acreditar que o Flamengo não tivesse vencido o seu jogo mais fácil dos últimos tempos”, encerrava a crônica da partida feita pelo Jornal do Brasil. O fato é que os dois pontos jogados fora diante dos chilenos no Maracanã colocaram os rubro-negros – terceiros colocados no Grupo E com sete pontos – dependendo de um verdadeiro milagre para tentar a classificação às quartas de final da Copa Mercosul.
UM MASSACRE INESQUECÍVEL
O Flamengo não podia sequer cogitar um empate. Na verdade, para não depender de nenhum resultado nas outras partidas da rodada, o time precisava de uma goleada por pelo menos quatro tentos de diferença diante da eliminada Universidad de Chile no Maracanã. Uma vitória mais modesta obrigaria a torcer pelo empate entre Olimpia e Colo-Colo ou por um tropeço do Boca Juniors, um dos concorrentes às vagas de segundo colocado.
Para tentar o milagre, Carlinhos lançou um time bastante alterado em relação ao que empatara com o Colo-Colo duas semanas antes. Robson substituía Clemer no gol, Maurinho ganhava uma chance na lateral-direita, o jovem Juan tomava o lugar de Fabão na zaga, e o volante Marcelo Rosa era sacado para uma formação mais ofensiva: apenas Leandro Ávila na contenção com Fábio Baiano e Beto armando para o trio de frente: Caio, Romário e Leandro Machado.
Mais solto, o time deslanchou e desandou a marcar. Os necessários quatro gols de diferença vieram ainda no primeiro tempo: Caio abriu o placar aproveitando rebote do goleiro, Romário ampliou depois de driblar toda a defesa chilena e o terceiro saiu num lance curioso, em que Fábio Baiano aproveitou a saída desastrada do goleiro Vargas e cruzou para o chute de Caio. A bola bateu na barriga de Romário, que ajeitou e fuzilou na pequena área.
O quarto gol, o emblemático da classificação, saiu chorado. Leandro Ávila recuperou a bola no meio-campo e entregou a Beto, que lançou. A defesa chilena afastou mal e Leandro Machado passou de cabeça a Fábio Baiano. O meia chutou forte e cruzado, Vargas defendeu, mas deu rebote. Leandro Machado correu, chegou antes da defesa e deu um leve toque. A bola, porém, parecia sair pela linha de fundo. Até Romário surgir para cutucar e guardar.
No segundo tempo, o Fla seguiria avassalador. Logo aos dois minutos, Marco Antônio ganharia a disputa por um rebote na intermediária e chutaria de fora da área para marcar o quinto, contando com desvio na defesa chilena. Aos 10, Romário marcaria o sexto com um chute seco após ótimo passe de Caio. Seria seu tento de número 200 pelo clube. E já no fim, aos 41, Maurinho cruzou da direita e Rodrigo Mendes chutou forte para fechar o massacre.
Ironicamente, enquanto embalava no torneio continental, o Fla via sua campanha no Brasileiro se esvair numa sequência desastrosa. Após golear o Vitória no Maracanã (5 a 2) na partida seguinte ao empate com o Colo-Colo, o time somou apenas um ponto nos seguintes seis jogos e despencou na tabela. Só voltaria a vencer um mês depois do triunfo sobre os baianos, batendo a Portuguesa por 3 a 2 no Canindé, às vésperas das quartas da Mercosul.
DESTRONANDO O ‘REY DE COPAS’
O adversário seria o Independiente, algoz rubro-negro na decisão da Supercopa de 1995. Embora o Flamengo tivesse dado o troco eliminando o Rey de Copas na mesma competição logo no ano seguinte, a lembrança da perda daquele título – que poderia ter oferecido um alento ao trágico ano do centenário rubro-negro – ainda doía e foi inevitavelmente evocada às portas do novo confronto. Mas desta vez, o desfecho seria bem diferente do de quatro anos antes.
Os dois jogos seriam disputados numa mesma semana. Na partida de ida, numa noite de terça-feira em Avellaneda, o Fla arrancaria um resultado heroico. O time perdeu Beto e Reinaldo expulsos, um em cada tempo, mas conseguiu abrir o placar aos 15 da etapa final com Fábio Baiano aproveitando passe de Romário. O time da casa ainda empatou numa cabeçada de Calderón aos 32, mas Clemer – com ótima atuação durante todo o jogo – evitou a virada.
Romário conclamou a torcida para a partida de volta, disputada numa sexta-feira, e o clube fez promoção de ingressos de olho naquele jogo e no confronto contra o Santos pelo Brasileiro no domingo. Assim, naquela noite chuvosa de 5 de novembro, um público de 36.257 pagantes – o segundo maior do Flamengo no Maracanã naquele semestre até ali – testemunhou uma grande goleada sobre o Rey de Copas e a classificação às semifinais da Mercosul.
E ela foi encaminhada num período de oito minutos da primeira etapa. Aos 16, Athirson cruzou da esquerda para a cabeçada inapelável de Leandro Machado. Aos 20, Fábio Baiano soltou uma bomba da intermediária que surpreendeu o goleiro Pontiroli. E aos 24, Leandro Machado escorou um lançamento longo e serviu Romário, que ganhou na corrida do zagueiro Pena e, da entrada da área, fuzilou o arqueiro argentino para ampliar a vantagem.
Na etapa final, o quarto gol viria aos 11 minutos, quando Romário recuperou uma cobrança de escanteio e entregou de calcanhar para Marcelo Rosa na ponta direita. O volante cruzou para a cabeçada de Leandro Machado, que aproveitou a furada da zaga argentina para marcar seu segundo tento na partida. O centroavante que ainda não havia balançado as redes na competição acabaria se tornando o artilheiro da partida.
UMA CERTA NOITE NA SERRA GAÚCHA
O gol de Romário contra o Independiente seria seu penúltimo pelo Flamengo. O derradeiro viria dali a cinco dias, em Caxias do Sul, na derrota por 3 a 1 para o Juventude pela última rodada da primeira fase do Brasileiro. Após o revés, que decretou a eliminação no torneio nacional, o elenco ficaria alguns dias na cidade da serra gaúcha para fugir da revolta da torcida e se preparar para pegar o Internacional no Beira-Rio em jogo pela seletiva da Libertadores.
Mas na noite de quinta-feira, um dia após a derrota, Romário e outros quatro jogadores sumiram da concentração e foram flagrados numa noitada por jornais locais. A repercussão, dentro e fora do clube, foi péssima. Maurinho e Marcelo Rosa receberam punições leves. Leandro Machado e Fábio Baiano, por serem reincidentes, foram afastados, mas logo acabariam reintegrados. A maior parte da conta ficou para o Baixinho, que teve contrato rescindido.
“Estou revoltado pela traição. Enquanto 35 milhões de flamenguistas choravam, eles foram comemorar a desclassificação numa boate. E foi o Romário quem convidou. Pensou que podia me peitar, mas não sou refém de ninguém”, vociferou o presidente rubro-negro Edmundo Santos Silva. Nos dias que se seguiram, o time caía para o Internacional na seletiva com duas exibições pálidas: derrota por 1 a 0 em Porto Alegre e empate em 1 a 1 no Maracanã.
E foi nesse baixo astral completo que o Flamengo chegou para a semifinal da Copa Mercosul. Do outro lado, para piorar, havia um adversário que evocava outros traumas mais antigos: o Peñarol, algoz rubro-negro na semifinal da Libertadores de 1982, quando impediu o bicampeonato do torneio vencendo o esquadrão de Zico por 1 a 0 em pleno Maracanã. Era a primeira vez que os dois clubes se reencontravam numa competição sul-americana desde então.
Naquele fim dos anos 90, o futebol uruguaio já não vivia um grande momento, mas o Peñarol fez valer sua tradição e alcançou as semifinais da competição após deixar para trás o rival Nacional, o Vasco e o Cerro Porteño na fase de grupos e o Olimpia nas quartas de final. Era, porém, um time cuja referência técnica se resumia ao veterano meia Pablo Bengoechea. De resto, era uma equipe apenas lutadora e não raro até mesmo violenta.
NA BOLA, DESPACHANDO O PEÑAROL
Diante disso, não seria surpresa que o volante De Souza cometesse duas entradas duras quase em sequência aos 22 minutos de jogo e recebesse o cartão amarelo pela primeira delas e o vermelho pela segunda. Com um a mais, o Fla deslanchou. Quatro minutos depois, o time abriria o placar num pênalti sofrido e convertido por Leandro Machado. E antes do intervalo a vantagem seria ampliada graças a um dos jogadores mais criticados da equipe.
Aos 44, uma cobrança curta de escanteio chegou a Athirson, que alçou para a área. Leandro Machado desviou de cabeça e Maurinho – que discutira com um torcedor num treino na Granja Comary durante a semana e era alvo de cartazes ofensivos e vaias naquela noite no Maracanã – encheu o pé num chute cruzado que venceu pela segunda vez o goleiro Flores. O time, porém, voltou acomodado para a etapa final, e Carlinhos tratou de mexer no ataque.
Caio entrou no lugar de Iranildo e obrigou Flores a trabalhar: primeiro o goleiro deteve em cima da linha uma finalização à queima-roupa do atacante. Depois, evitou um toque de cobertura com uma defesa em dois tempos. Mais tarde, Reinaldo substituiu Leandro Machado. E outro garoto da base, Lê, foi a campo no posto de Rodrigo Mendes. Seria ele o autor do terceiro gol, aos 36 minutos, com um chute forte na saída de Flores, após passe de Caio.
O time ainda criou chances para golear, como a cabeçada de Caio que acertou o pé da trave e o chute de Reinaldo salvo pela zaga quase em cima da linha. Mas a vitória categórica serviu para reconquistar a torcida e acender a esperança de um fim de ano menos doloroso. Porém, algumas batalhas ainda esperavam para serem enfrentadas. A primeira delas, o jogo da volta diante dos carboneros no estádio Centenário, em Montevidéu.
O Fla entrou em campo para defender a vantagem e conseguiu manter o empate sem gols por quase todo o primeiro tempo, o que irritou os uruguaios. Porém, nos acréscimos, Bengoechea cobrou falta com perfeição e abriu a contagem para o Peñarol. Na volta do intervalo, o Fla reagiu: Leandro Machado viu seu chute forte parar em Flores, e Leonardo Inácio assistiu à sua cobrança de falta acertar o travessão (e Marcelo Rosa perder a chance no rebote).
Mas o Fla chegaria ao empate aos 25 minutos: Reinaldo foi lançado em velocidade pela esquerda, entrou na área e foi derrubado por Cafu. Pênalti que Athirson converteu sem chances para Flores. Reinaldo seria também o artífice da virada rubro-negra. Em outro contra-ataque em velocidade, ele arrancou e disparou um petardo da intermediária que surpreendeu um adiantado Flores. Era o primeiro tento do atacante como profissional.
Com uma vantagem de quatro gols no agregado, a vaga na final se aproximava do Flamengo. Mas antes, o Peñarol ainda tentaria uma reação: aos 33 minutos, García recebeu na entrada da área, girou e bateu para empatar. E já nos acréscimos, o árbitro inventaria um pênalti de Maurinho em Darío Rodríguez que Bengoechea converteria para dar a vitória aos carboneros, mas sem impedir a classificação rubro-negra. E um papelão dos uruguaios ao apito final.
Eliminados na bola de maneira inapelável, os jogadores do Peñarol quiseram “redimir sua honra“ no braço e partiram para cima dos rubro-negros com socos e pontapés, numa batalha campal apenas assistida de longe pela polícia local e que seguiu até o túnel de entrada dos times. Enquanto a delegação do Fla era obrigada a se refugiar nos vestiários, torcedores do clube eram agredidos por uruguaios nas arquibancadas.
A selvageria não ficou barata ao Peñarol: dez jogadores foram suspensos pela Confederação Sul-Americana em ganchos que variavam de três a dez partidas. A entidade também multou o clube em US$ 10 mil, mas apenas advertiu a Associação Uruguaia de Futebol sobre o comportamento de seus jogadores. Mais tarde, veio à tona que Bengoechea fora flagrado com níveis excessivos de cafeína no exame antidoping feito após o jogo e analisado em Montevidéu.
O ÚLTIMO OBSTÁCULO
Não bastasse ter escalado uma montanha de quatro gols de diferença para avançar na fase de grupos, chutado para longe as tristes lembranças da Supercopa de 1995 e da Libertadores de 1982 e superado a ausência do grande astro do time, afastado em contexto constrangedor, o Flamengo ainda tinha outros fantasmas pela frente na decisão. A começar pelo rival, o Palmeiras, responsável por uma ferida muito mais recente que as outras e ainda aberta.
Este trauma vinha do primeiro semestre, quando as duas equipes se enfrentaram pelas quartas de final da Copa do Brasil. O Fla havia vencido por 2 a 1 no Maracanã e, de virada, repetia o placar no Parque Antártica, mesmo após a lesão de Romário, substituído no segundo tempo. Porém, o Palmeiras empatou num chute de longe de Júnior e passou à frente aos 42 minutos num gol de Euller após escanteio. Foi quando tudo passou a valer na área rubro-negra.
Logo no minuto seguinte, o time da casa conseguiu outro escanteio. Após a cobrança, Euller deslocou Clemer, impedindo a saída do goleiro. Evair pegou o rebote e chutou. A bola bateu na canela do zagueiro palmeirense Agnaldo, quicou e subiu. Oséas, em posição irregular (só tinha um adversário sobre a linha, já que Clemer estava fora do gol), disputou a bola de cabeça e ela sobrou para o próprio Euller, que anotou o gol da classificação alviverde.
O árbitro goiano Antônio Pereira da Silva poderia escolher qual infração marcar, se a falta ou o impedimento. Mas, pressionado pela torcida da casa, validou o gol. A revolta guardada era tanta entre os rubro-negros que até mesmo o sempre discreto e comedido técnico Carlinhos fez questão de lembrar daquela noite fatídica às vésperas do novo confronto decisivo: “Teremos a chance de dar o troco, desde, é claro, que seja escalado um bom juiz”.
Somado a esse trauma, havia ainda o fato de que o time (e o elenco) palmeirense era muito mais forte que o do Flamengo. O clube paulistano ainda desfrutava do farto aporte financeiro da multinacional de laticínios Parmalat e contava com um esquadrão luxuoso, que incluía nomes de Seleção em todos os setores – como os ex-rubro-negros Júnior Baiano, Zinho e Paulo Nunes – e que vencera naquele mesmo ano a Taça Libertadores da América.
No comando daquele timaço estava Luiz Felipe Scolari, nome que despertava reações entre os rubro-negros desde quando treinava o Grêmio e mandava seu carniceiro volante Dinho distribuir pontapés em Sávio. E se os palmeirenses ainda lamentavam a perda do Mundial Interclubes para o Manchester United no fim de novembro, viam agora na chance do bi da Copa Mercosul (a qual levantaram em 1998) a oportunidade de fechar o ano numa nota alta.
O Flamengo, por outro lado, era qualquer coisa menos um esquadrão, sobretudo agora sem Romário. Mesclava garotos recém-puxados da base, jogadores trazidos a baixo custo de clubes pequenos, alguns refugos e veteranos, além de promessas que não vingaram. Tinha alguns bons valores do ponto de vista técnico. Mas a organização e o espírito de luta ainda eram suas maiores características. No cara a cara, era nitidamente inferior ao Palmeiras.
Essa boa organização da equipe era fruto do eternamente subestimado trabalho de Carlinhos. Subestimado até dentro do clube na época: mesmo com o time prestes a decidir um título continental que poderia encerrar um jejum de 18 anos, os dirigentes não faziam nenhuma questão de esconder que negociavam o retorno de Paulo César Carpegiani (então no São Paulo) à Gávea para assumir o posto do “Violino” na temporada seguinte.
No dia 16 de dezembro, as duas equipes entravam em campo no Maracanã para o primeiro jogo de uma decisão que poderia ter duas ou três partidas. Com o Maracanã parcialmente interditado, as notícias da véspera do confronto davam conta de que os 50 mil ingressos colocados à venda haviam se esgotado rapidamente. Porém, o público pagante divulgado durante o jogo foi bem abaixo dessa marca: apenas 13.414 torcedores.
Disposto a sair na frente do duelo e jogar pelo empate na partida de volta, marcada para dali a quatro dias em São Paulo, o Flamengo alinhou Clemer no gol, Célio Silva e Juan na zaga, Maurinho e Athirson nas laterais, Leandro Ávila, Marcelo Rosa, Iranildo e Leonardo Inácio no meio-campo e Reinaldo e Leandro Machado na frente. Rodrigo Mendes e Caio iniciaram como opções de banco e entraram durante o jogo. E o segundo seria fundamental na vitória.
O Palmeiras, por sua vez, escalou Marcos no gol, Arce, Júnior Baiano, Galeano e Júnior na defesa, César Sampaio, Rogério, Alex e Zinho no meio e Paulo Nunes e Oséas na frente. Euller, o algoz da Copa do Brasil, era arma para o segundo tempo. Mas quem comemorou primeiro foi a torcida rubro-negra: logo aos cinco minutos, Iranildo bateu escanteio da direita, Maurinho escorou para a área e o garoto Juan apareceu na corrida e cabeceou para as redes.
No último minuto da etapa inicial, porém, o Palmeiras empatou quando Arce bateu falta para a área, Clemer saiu em falso e Júnior Baiano, do bico da pequena área, ajeitou e chutou de perna esquerda. E aos 23 minutos do segundo tempo, o time paulista ficou em vantagem no marcador: após escanteio, a bola foi escorada para frente, e o colombiano Asprilla se antecipou a Clemer e cabeceou. A bola ainda tocou no travessão e quicou dentro do gol.
De repente, vários gols começaram a ser marcados quase em sequência. Aos 25, Caio testou firme um cruzamento de Leandro Machado e empatou. Aos 27, Paulo Nunes recebeu de Asprilla por trás da defesa rubro-negra e fez 3 a 2 Palmeiras. Na saída de bola, Caio recebeu na entrada da área e bateu rasteiro, no canto de Marcos, tornando a igualar. O jogo só seria definido aos 38, quando Reinaldo escorou de cabeça cruzamento de Athirson e deu a vitória ao Fla.
Na noite de segunda-feira, 20 de dezembro, um Parque Antártica lotado aguardava de novo o Flamengo, que tinha Caio no lugar de Iranildo. Precisando vencer para forçar o terceiro jogo, ali mesmo em seu estádio três dias depois, o Palmeiras também vinha mais ofensivo, com Euller e Asprilla nos lugares de Rogério e Oséas. Animado pela torcida, o Alviverde saiu em vantagem aos 19 minutos: Leandro Machado fez pênalti em Júnior e Arce converteu.
Ainda no primeiro tempo, Asprilla acertou uma cotovelada em Athirson, ignorada pelo árbitro Luciano Almeida e por seu auxiliar, que estava bem perto do lance. Mesmo assim, aos poucos o time rubro-negro foi se recobrando e esteve perto de empatar pouco antes do intervalo. Na volta para a etapa final, a igualdade enfim viria: Rodrigo Mendes foi lançado nas costas da defesa, mas Marcos chegou antes. No rebote, Caio tocou para as redes.
Mais disposto, o Fla ainda chegou à virada aos 11. Rodrigo Mendes puxou contra-ataque e cruzou. Júnior Baiano cortou, mas a bola voltou para o próprio Rodrigo, que encheu o pé de fora da área, vencendo Marcos. A tranquilidade não durou um minuto. Na saída, houve uma falta para o time da casa perto do bico da grande área. Arce bateu e Clemer tentou segurar, mas acabou caindo com a bola dentro do gol. O momento já virava de novo em favor do Palmeiras.
Quando, aos 21 minutos, Zinho levantou a bola na área, a defesa do Flamengo parou e Paulo Nunes não teve dificuldade para cabecear e colocar o Palmeiras de novo na frente, parecia que a história se repetiria. O Fla havia lutado bravamente no campo do adversário, chegado a estar na frente no marcador, mas de novo sucumbiria à pressão. À enorme frustração rubro-negra provavelmente se seguiria uma vitória fácil do time paulista no terceiro jogo.
Mas – felizmente, nesse caso – o futebol é caprichoso. Quando não se esperava mais qualquer reação concreta do Flamengo, embora o time tivesse chegado a criar algumas chances, Iranildo recebeu uma bola no meio-campo, livrou-se do marcador, e Lê deu sequência à jogada esticando um passe para Reinaldo. O centroavante devolveu de calcanhar. De repente, o garoto de 20 anos da base rubro-negra estava frente a frente com Marcos.
Eram 38 minutos do segundo tempo. Lê fazia ali seu quinto jogo pela Mercosul, sendo que em todos saíra do banco – naquela noite, entrara no lugar de Marcelo Rosa. Outrora artilheiro do time de juniores, havia queimado algumas chances no time de cima por deslumbramento, mas fora resgatado pelo velho Carlinhos. Agora, tinha a bola do jogo e do título. Naquele clarão que se abriu na defesa palmeirense, ele tocou rasteiro, no canto, para as redes.
Na comemoração, o garoto levou as mãos ao rosto e chorou. Junto com Lê, naquela noite, choraram muitos milhões de rubro-negros. Um choro incrédulo, pelo herói improvável, mas sobretudo catártico, de alívio. Um choro de quem superava provações. Um choro de quem se via liberto de traumas. Um choro de um Flamengo que estava muito vivo, sim, senhor. E que era de novo campeão continental.
Um gol arrepiante do atacante Lê diante do Palmeiras em pleno Parque Antártica, que comoveu uma geração inteira de rubro-negros, encerrou todo o sofrimento. Matou o enésimo dragão que cruzou o time de Carlinhos. Trouxe mais um importante troféu internacional para a galeria do Flamengo. Fez a gente rubro-negra, que andava tão sofrida naquele fim de 1999, ter um Natal muito melhor do que o que se desenhava semanas antes.
O TORNEIO
Em 1997, a Conmebol encerrou a história da Supercopa dos Campeões da Libertadores, torneio criado em 1988 reunindo todos os campeões da principal competição do continente, e no lugar desta decidiu instituir dois novos campeonatos: as Copas Mercosul (envolvendo os países do bloco econômico de mesmo nome) e Merconorte (incluindo equipes de países mais ao norte da América do Sul, além de eventualmente das Américas do Norte e Central).
Se no torneio extinto a premissa para se estabelecer os participantes era bem simples (bastava ter vencido a principal competição do continente), para a Copa Mercosul os critérios eram mais subjetivos, levando em conta tradição, conquistas e torcida. No fundo, o objetivo era mesmo criar uma Superliga do Cone Sul. E para isso havia ainda o generoso aporte financeiro da televisão, angariado por meio da empresa de marketing esportivo Traffic.
Ao todo, 20 clubes de Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai foram convidados para disputar a competição. Os brasileiros eram 7: Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Grêmio (que chegou a ser substituído pelo Atlético-MG na edição de 2000), Palmeiras, São Paulo e Vasco. Na primeira fase, as equipes eram divididas em cinco grupos de quatro equipes, com os campeões de cada chave mais os três melhores segundos colocados avançando às quartas de final.
O Flamengo havia feito campanha discreta na primeira edição, embora tenha chegado à última rodada com chances de classificação. Uma derrota por 3 a 0 para o Boca Juniors na Bombonera, no entanto, eliminou a equipe então dirigida por Evaristo de Macedo. Diferentemente do ano tumultuado de 1998, o time rubro-negro chegava para a edição seguinte embalado pelo título carioca que iniciaria um tri, sempre em cima do favorito Vasco.
Romário era o astro da companhia no elenco dirigido pelo velho Carlinhos “Violino”, que mesclava pratas da casa – que então tinham como nomes mais badalados o zagueiro Luís Alberto e o lateral esquerdo Athirson – com nomes mais rodados – o goleiro Clemer, o lateral Pimentel, o zagueiro Célio Silva, o volante Leandro Ávila, o meia Beto e os atacantes Leandro Machado e Caio. Não chegava a ser um timaço, mas demonstrava organização e sobretudo raça.
Sorteado em um grupo razoavelmente mais acessível que o da edição anterior (em vez de Boca Juniors, Vélez Sarsfield e Cerro Porteño, os adversários agora seriam Olimpia e a dupla chilena Colo-Colo e Universidad de Chile), o Flamengo apostava em chegar longe no torneio, de olho na gorda premiação que poderia chegar aos US$ 5 milhões em caso de título. E o pontapé inicial da campanha viria diante do Olimpia no Maracanã no dia 27 de julho.
NO BOM INÍCIO, UMA GOLEADA NO CHILE
A conquista do Estadual foi seguida por uma pausa no calendário nacional para a disputa da Copa América no Paraguai. Na volta, depois de um mês sem jogar, o Fla entrara em campo duas vezes: derrotara o Grêmio por 1 a 0 no jogo das faixas de campeão carioca e a Ponte Preta pela mesma contagem na estreia no Campeonato Brasileiro. A atuação diante do time campineiro não havia sido boa, mas, na base da conversa, Carlinhos afiou o time.
No primeiro tempo contra os paraguaios, o Fla abriu 2 a 0 com dois gols de Romário. No primeiro, aproveitando ótimo lançamento de Rodrigo Mendes e tocando por cima do goleiro Tavarelli. E no segundo, escorando de cabeça o cruzamento do lateral Marco Antônio. Na etapa final, o Olimpia descontou num pênalti de Fabão em Fretes, que Avalos converteu, mas sem conseguir atrapalhar a estreia rubro-negra com o pé direito na competição.
Uma semana depois, o time voltaria a campo pelo torneio em sua primeira partida fora de casa, diante do Colo-Colo no Estádio Monumental de Santiago, e conquistaria uma vitória categórica. No primeiro tempo, Rodrigo Mendes estufou as redes duas vezes em dois chutaços de fora da área aos 11 e aos 41 minutos. Entre um e outro, aos 21, Romário recebeu do volante Jorginho e limpou a marcação antes de tocar no canto do goleiro Arbiza.
Na etapa final, aos 36 minutos, mais um golaço encerraria a contagem. A jogada começou com Leandro Ávila, que passou a Fábio Baiano. O meia tabelou com o zagueiro Fabão e soltou um sem-pulo espetacular sem chances para Arbiza, decretando a goleada de 4 a 0 que confirmava o ótimo início da equipe no torneio, disparando na liderança com seis pontos, contra três de Colo-Colo e Olimpia, que se enfrentariam na rodada seguinte.
A partida de Santiago marcou também a estreia de Leandro Ávila naquela edição. Contratado por empréstimo de um ano ao Fluminense em meados de 1998, o volante chegara a ficar nove meses sem jogar após chegar à Gávea com problemas físicos. Voltou na semana da decisão do Estadual e teve atuação monstruosa nos dois jogos contra o Vasco. Mas havia ficado de fora contra o Olimpia devido a uma divergência com o Flu sobre sua aquisição definitiva.
Entre a partida contra o Colo-Colo e a seguinte pela Mercosul, também em Santiago diante da Universidade de Chile, o Fla engrenara no Brasileiro: vencera o Inter no Beira-Rio, o Coritiba no Maracanã e o Sport na Ilha do Retiro, chegando às primeiras posições no torneio nacional e se candidatando a uma das oito vagas na etapa seguinte. Na competição sul-americana, a passagem às quartas também estaria bem próxima em caso de nova vitória no Chile.
O time fez um bom primeiro tempo diante da Universidad: Romário perdeu chance clara de abrir o placar finalizando para fora, da marca do pênalti, no último minuto. Na etapa final, dois erros bisonhos da defesa castigaram os rubro-negros. Uma espanada de Célio Silva levou ao cruzamento de Valencia para a cabeçada de Guzmán. E uma rebatida mal feita de Luís Alberto na entrada da área proporcionou a finalização de Rey no canto de Clemer.
O time ainda perderia Romário, expulso por reclamação aos 35 minutos do segundo tempo. Era o terceiro cartão vermelho recebido por um jogador do Fla no torneio, depois de Leonardo Inácio contra o Olimpia e Fabão contra o Colo-Colo terem deixado o campo mais cedo. O desfalque abriria um lugar para Caio ao lado de Leandro Machado no ataque rubro-negro. Enquanto Beto, às voltas com lesões, dava lugar a Leonardo Inácio no meio.
A PRIMEIRA CRISE BATE À PORTA
O time oscilou um pouco no Brasileiro antes da viagem a Assunção para enfrentar o Olimpia: perdeu de virada para o Grêmio no Maracanã (4 a 3), mas compensou com uma vitória histórica sobre o Corinthians – então 100% no campeonato – dentro do Pacaembu por 2 a 1 e uma goleada sobre o Botafogo de Ribeirão Preto por 4 a 1 no interior paulista. O voo para a capital paraguaia também foi turbulento: o avião balançou na chegada com os fortes ventos.
Em campo, o Fla chegou a nutrir esperanças de um bom resultado para encaminhar a classificação quando Leonardo Inácio pegou a sobra de uma bola mal afastada pela defesa e tocou para as redes aos 14 minutos. Mas o Olimpia viraria ainda no primeiro tempo com Esteche (após um chutão do goleiro e uma finta seca em Fabão) e Franco (numa cabeçada fraca e no meio do gol que Clemer aceitou numa falha clamorosa). E as coisas piorariam na etapa final.
Logo aos dois minutos, Luís Alberto parou uma ofensiva de Avalos com o braço, o adversário simulou uma cotovelada e provocou a expulsão do zagueiro rubro-negro. E aos 15, seria a vez de Athirson levar o vermelho após uma entrada forte. O time ainda teve chance de empatar numa penetração de Leandro Machado, mas o árbitro marcou impedimento inexistente. No fim, Yegros driblou Rodrigo Mendes perto da linha de fundo e marcou o terceiro.
A derrota complicou a vida do Flamengo na chave, em especial após Colo-Colo e Olimpia pontuarem nos jogos seguintes, relegando os rubro-negros à terceira posição. Entre a derrota em Assunção e o jogo contra o Cacique no Maracanã, o atacante Caio protagonizou as manchetes, primeiro ao ter que jogar de goleiro após a expulsão de Clemer no empate com o Gama (1 a 1) em Brasília e depois ao anotar o gol da vitória sobre o São Paulo, seu ex-clube.
Com isso, ele ganharia um voto de confiança de Carlinhos, seguindo no ataque titular mesmo com a volta de Romário após suspensão – Leandro Machado foi para o banco – para pegar o Colo-Colo. E não decepcionaria, abrindo o placar aproveitando a bola solta pelo goleiro Arbiza num lance que começou com passe de letra de Romário. No fim do primeiro tempo, o lateral Marco Antônio tabelou com Rodrigo Mendes e chutou de fora da área para ampliar.
Na etapa final, o Fla perdeu inúmeras chances de matar o jogo: Caio parou primeiro em Arbiza e depois viu sua cabeçada passar raspando no travessão, enquanto Romário desperdiçou duas chances cara a cara com o goleiro ao tentar tocar por cobertura. E o time acabaria castigado por um Colo-Colo que voltou mais ofensivo e aproveitou falhas na defesa rubro-negra, chegando ao empate com gols de Muñoz e Vergara aos 34 e 38 minutos.
“Quem viu o jogo custou a acreditar que o Flamengo não tivesse vencido o seu jogo mais fácil dos últimos tempos”, encerrava a crônica da partida feita pelo Jornal do Brasil. O fato é que os dois pontos jogados fora diante dos chilenos no Maracanã colocaram os rubro-negros – terceiros colocados no Grupo E com sete pontos – dependendo de um verdadeiro milagre para tentar a classificação às quartas de final da Copa Mercosul.
UM MASSACRE INESQUECÍVEL
O Flamengo não podia sequer cogitar um empate. Na verdade, para não depender de nenhum resultado nas outras partidas da rodada, o time precisava de uma goleada por pelo menos quatro tentos de diferença diante da eliminada Universidad de Chile no Maracanã. Uma vitória mais modesta obrigaria a torcer pelo empate entre Olimpia e Colo-Colo ou por um tropeço do Boca Juniors, um dos concorrentes às vagas de segundo colocado.
Para tentar o milagre, Carlinhos lançou um time bastante alterado em relação ao que empatara com o Colo-Colo duas semanas antes. Robson substituía Clemer no gol, Maurinho ganhava uma chance na lateral-direita, o jovem Juan tomava o lugar de Fabão na zaga, e o volante Marcelo Rosa era sacado para uma formação mais ofensiva: apenas Leandro Ávila na contenção com Fábio Baiano e Beto armando para o trio de frente: Caio, Romário e Leandro Machado.
Mais solto, o time deslanchou e desandou a marcar. Os necessários quatro gols de diferença vieram ainda no primeiro tempo: Caio abriu o placar aproveitando rebote do goleiro, Romário ampliou depois de driblar toda a defesa chilena e o terceiro saiu num lance curioso, em que Fábio Baiano aproveitou a saída desastrada do goleiro Vargas e cruzou para o chute de Caio. A bola bateu na barriga de Romário, que ajeitou e fuzilou na pequena área.
O quarto gol, o emblemático da classificação, saiu chorado. Leandro Ávila recuperou a bola no meio-campo e entregou a Beto, que lançou. A defesa chilena afastou mal e Leandro Machado passou de cabeça a Fábio Baiano. O meia chutou forte e cruzado, Vargas defendeu, mas deu rebote. Leandro Machado correu, chegou antes da defesa e deu um leve toque. A bola, porém, parecia sair pela linha de fundo. Até Romário surgir para cutucar e guardar.
No segundo tempo, o Fla seguiria avassalador. Logo aos dois minutos, Marco Antônio ganharia a disputa por um rebote na intermediária e chutaria de fora da área para marcar o quinto, contando com desvio na defesa chilena. Aos 10, Romário marcaria o sexto com um chute seco após ótimo passe de Caio. Seria seu tento de número 200 pelo clube. E já no fim, aos 41, Maurinho cruzou da direita e Rodrigo Mendes chutou forte para fechar o massacre.
Ironicamente, enquanto embalava no torneio continental, o Fla via sua campanha no Brasileiro se esvair numa sequência desastrosa. Após golear o Vitória no Maracanã (5 a 2) na partida seguinte ao empate com o Colo-Colo, o time somou apenas um ponto nos seguintes seis jogos e despencou na tabela. Só voltaria a vencer um mês depois do triunfo sobre os baianos, batendo a Portuguesa por 3 a 2 no Canindé, às vésperas das quartas da Mercosul.
DESTRONANDO O ‘REY DE COPAS’
O adversário seria o Independiente, algoz rubro-negro na decisão da Supercopa de 1995. Embora o Flamengo tivesse dado o troco eliminando o Rey de Copas na mesma competição logo no ano seguinte, a lembrança da perda daquele título – que poderia ter oferecido um alento ao trágico ano do centenário rubro-negro – ainda doía e foi inevitavelmente evocada às portas do novo confronto. Mas desta vez, o desfecho seria bem diferente do de quatro anos antes.
Os dois jogos seriam disputados numa mesma semana. Na partida de ida, numa noite de terça-feira em Avellaneda, o Fla arrancaria um resultado heroico. O time perdeu Beto e Reinaldo expulsos, um em cada tempo, mas conseguiu abrir o placar aos 15 da etapa final com Fábio Baiano aproveitando passe de Romário. O time da casa ainda empatou numa cabeçada de Calderón aos 32, mas Clemer – com ótima atuação durante todo o jogo – evitou a virada.
Romário conclamou a torcida para a partida de volta, disputada numa sexta-feira, e o clube fez promoção de ingressos de olho naquele jogo e no confronto contra o Santos pelo Brasileiro no domingo. Assim, naquela noite chuvosa de 5 de novembro, um público de 36.257 pagantes – o segundo maior do Flamengo no Maracanã naquele semestre até ali – testemunhou uma grande goleada sobre o Rey de Copas e a classificação às semifinais da Mercosul.
E ela foi encaminhada num período de oito minutos da primeira etapa. Aos 16, Athirson cruzou da esquerda para a cabeçada inapelável de Leandro Machado. Aos 20, Fábio Baiano soltou uma bomba da intermediária que surpreendeu o goleiro Pontiroli. E aos 24, Leandro Machado escorou um lançamento longo e serviu Romário, que ganhou na corrida do zagueiro Pena e, da entrada da área, fuzilou o arqueiro argentino para ampliar a vantagem.
Na etapa final, o quarto gol viria aos 11 minutos, quando Romário recuperou uma cobrança de escanteio e entregou de calcanhar para Marcelo Rosa na ponta direita. O volante cruzou para a cabeçada de Leandro Machado, que aproveitou a furada da zaga argentina para marcar seu segundo tento na partida. O centroavante que ainda não havia balançado as redes na competição acabaria se tornando o artilheiro da partida.
O gol de Romário contra o Independiente seria seu penúltimo pelo Flamengo. O derradeiro viria dali a cinco dias, em Caxias do Sul, na derrota por 3 a 1 para o Juventude pela última rodada da primeira fase do Brasileiro. Após o revés, que decretou a eliminação no torneio nacional, o elenco ficaria alguns dias na cidade da serra gaúcha para fugir da revolta da torcida e se preparar para pegar o Internacional no Beira-Rio em jogo pela seletiva da Libertadores.
Mas na noite de quinta-feira, um dia após a derrota, Romário e outros quatro jogadores sumiram da concentração e foram flagrados numa noitada por jornais locais. A repercussão, dentro e fora do clube, foi péssima. Maurinho e Marcelo Rosa receberam punições leves. Leandro Machado e Fábio Baiano, por serem reincidentes, foram afastados, mas logo acabariam reintegrados. A maior parte da conta ficou para o Baixinho, que teve contrato rescindido.
“Estou revoltado pela traição. Enquanto 35 milhões de flamenguistas choravam, eles foram comemorar a desclassificação numa boate. E foi o Romário quem convidou. Pensou que podia me peitar, mas não sou refém de ninguém”, vociferou o presidente rubro-negro Edmundo Santos Silva. Nos dias que se seguiram, o time caía para o Internacional na seletiva com duas exibições pálidas: derrota por 1 a 0 em Porto Alegre e empate em 1 a 1 no Maracanã.
E foi nesse baixo astral completo que o Flamengo chegou para a semifinal da Copa Mercosul. Do outro lado, para piorar, havia um adversário que evocava outros traumas mais antigos: o Peñarol, algoz rubro-negro na semifinal da Libertadores de 1982, quando impediu o bicampeonato do torneio vencendo o esquadrão de Zico por 1 a 0 em pleno Maracanã. Era a primeira vez que os dois clubes se reencontravam numa competição sul-americana desde então.
Naquele fim dos anos 90, o futebol uruguaio já não vivia um grande momento, mas o Peñarol fez valer sua tradição e alcançou as semifinais da competição após deixar para trás o rival Nacional, o Vasco e o Cerro Porteño na fase de grupos e o Olimpia nas quartas de final. Era, porém, um time cuja referência técnica se resumia ao veterano meia Pablo Bengoechea. De resto, era uma equipe apenas lutadora e não raro até mesmo violenta.
NA BOLA, DESPACHANDO O PEÑAROL
Diante disso, não seria surpresa que o volante De Souza cometesse duas entradas duras quase em sequência aos 22 minutos de jogo e recebesse o cartão amarelo pela primeira delas e o vermelho pela segunda. Com um a mais, o Fla deslanchou. Quatro minutos depois, o time abriria o placar num pênalti sofrido e convertido por Leandro Machado. E antes do intervalo a vantagem seria ampliada graças a um dos jogadores mais criticados da equipe.
Aos 44, uma cobrança curta de escanteio chegou a Athirson, que alçou para a área. Leandro Machado desviou de cabeça e Maurinho – que discutira com um torcedor num treino na Granja Comary durante a semana e era alvo de cartazes ofensivos e vaias naquela noite no Maracanã – encheu o pé num chute cruzado que venceu pela segunda vez o goleiro Flores. O time, porém, voltou acomodado para a etapa final, e Carlinhos tratou de mexer no ataque.
Caio entrou no lugar de Iranildo e obrigou Flores a trabalhar: primeiro o goleiro deteve em cima da linha uma finalização à queima-roupa do atacante. Depois, evitou um toque de cobertura com uma defesa em dois tempos. Mais tarde, Reinaldo substituiu Leandro Machado. E outro garoto da base, Lê, foi a campo no posto de Rodrigo Mendes. Seria ele o autor do terceiro gol, aos 36 minutos, com um chute forte na saída de Flores, após passe de Caio.
O time ainda criou chances para golear, como a cabeçada de Caio que acertou o pé da trave e o chute de Reinaldo salvo pela zaga quase em cima da linha. Mas a vitória categórica serviu para reconquistar a torcida e acender a esperança de um fim de ano menos doloroso. Porém, algumas batalhas ainda esperavam para serem enfrentadas. A primeira delas, o jogo da volta diante dos carboneros no estádio Centenário, em Montevidéu.
O Fla entrou em campo para defender a vantagem e conseguiu manter o empate sem gols por quase todo o primeiro tempo, o que irritou os uruguaios. Porém, nos acréscimos, Bengoechea cobrou falta com perfeição e abriu a contagem para o Peñarol. Na volta do intervalo, o Fla reagiu: Leandro Machado viu seu chute forte parar em Flores, e Leonardo Inácio assistiu à sua cobrança de falta acertar o travessão (e Marcelo Rosa perder a chance no rebote).
Mas o Fla chegaria ao empate aos 25 minutos: Reinaldo foi lançado em velocidade pela esquerda, entrou na área e foi derrubado por Cafu. Pênalti que Athirson converteu sem chances para Flores. Reinaldo seria também o artífice da virada rubro-negra. Em outro contra-ataque em velocidade, ele arrancou e disparou um petardo da intermediária que surpreendeu um adiantado Flores. Era o primeiro tento do atacante como profissional.
Com uma vantagem de quatro gols no agregado, a vaga na final se aproximava do Flamengo. Mas antes, o Peñarol ainda tentaria uma reação: aos 33 minutos, García recebeu na entrada da área, girou e bateu para empatar. E já nos acréscimos, o árbitro inventaria um pênalti de Maurinho em Darío Rodríguez que Bengoechea converteria para dar a vitória aos carboneros, mas sem impedir a classificação rubro-negra. E um papelão dos uruguaios ao apito final.
Eliminados na bola de maneira inapelável, os jogadores do Peñarol quiseram “redimir sua honra“ no braço e partiram para cima dos rubro-negros com socos e pontapés, numa batalha campal apenas assistida de longe pela polícia local e que seguiu até o túnel de entrada dos times. Enquanto a delegação do Fla era obrigada a se refugiar nos vestiários, torcedores do clube eram agredidos por uruguaios nas arquibancadas.
O ÚLTIMO OBSTÁCULO
Não bastasse ter escalado uma montanha de quatro gols de diferença para avançar na fase de grupos, chutado para longe as tristes lembranças da Supercopa de 1995 e da Libertadores de 1982 e superado a ausência do grande astro do time, afastado em contexto constrangedor, o Flamengo ainda tinha outros fantasmas pela frente na decisão. A começar pelo rival, o Palmeiras, responsável por uma ferida muito mais recente que as outras e ainda aberta.
Este trauma vinha do primeiro semestre, quando as duas equipes se enfrentaram pelas quartas de final da Copa do Brasil. O Fla havia vencido por 2 a 1 no Maracanã e, de virada, repetia o placar no Parque Antártica, mesmo após a lesão de Romário, substituído no segundo tempo. Porém, o Palmeiras empatou num chute de longe de Júnior e passou à frente aos 42 minutos num gol de Euller após escanteio. Foi quando tudo passou a valer na área rubro-negra.
Logo no minuto seguinte, o time da casa conseguiu outro escanteio. Após a cobrança, Euller deslocou Clemer, impedindo a saída do goleiro. Evair pegou o rebote e chutou. A bola bateu na canela do zagueiro palmeirense Agnaldo, quicou e subiu. Oséas, em posição irregular (só tinha um adversário sobre a linha, já que Clemer estava fora do gol), disputou a bola de cabeça e ela sobrou para o próprio Euller, que anotou o gol da classificação alviverde.
O árbitro goiano Antônio Pereira da Silva poderia escolher qual infração marcar, se a falta ou o impedimento. Mas, pressionado pela torcida da casa, validou o gol. A revolta guardada era tanta entre os rubro-negros que até mesmo o sempre discreto e comedido técnico Carlinhos fez questão de lembrar daquela noite fatídica às vésperas do novo confronto decisivo: “Teremos a chance de dar o troco, desde, é claro, que seja escalado um bom juiz”.
Somado a esse trauma, havia ainda o fato de que o time (e o elenco) palmeirense era muito mais forte que o do Flamengo. O clube paulistano ainda desfrutava do farto aporte financeiro da multinacional de laticínios Parmalat e contava com um esquadrão luxuoso, que incluía nomes de Seleção em todos os setores – como os ex-rubro-negros Júnior Baiano, Zinho e Paulo Nunes – e que vencera naquele mesmo ano a Taça Libertadores da América.
No comando daquele timaço estava Luiz Felipe Scolari, nome que despertava reações entre os rubro-negros desde quando treinava o Grêmio e mandava seu carniceiro volante Dinho distribuir pontapés em Sávio. E se os palmeirenses ainda lamentavam a perda do Mundial Interclubes para o Manchester United no fim de novembro, viam agora na chance do bi da Copa Mercosul (a qual levantaram em 1998) a oportunidade de fechar o ano numa nota alta.
O Flamengo, por outro lado, era qualquer coisa menos um esquadrão, sobretudo agora sem Romário. Mesclava garotos recém-puxados da base, jogadores trazidos a baixo custo de clubes pequenos, alguns refugos e veteranos, além de promessas que não vingaram. Tinha alguns bons valores do ponto de vista técnico. Mas a organização e o espírito de luta ainda eram suas maiores características. No cara a cara, era nitidamente inferior ao Palmeiras.
Essa boa organização da equipe era fruto do eternamente subestimado trabalho de Carlinhos. Subestimado até dentro do clube na época: mesmo com o time prestes a decidir um título continental que poderia encerrar um jejum de 18 anos, os dirigentes não faziam nenhuma questão de esconder que negociavam o retorno de Paulo César Carpegiani (então no São Paulo) à Gávea para assumir o posto do “Violino” na temporada seguinte.
No dia 16 de dezembro, as duas equipes entravam em campo no Maracanã para o primeiro jogo de uma decisão que poderia ter duas ou três partidas. Com o Maracanã parcialmente interditado, as notícias da véspera do confronto davam conta de que os 50 mil ingressos colocados à venda haviam se esgotado rapidamente. Porém, o público pagante divulgado durante o jogo foi bem abaixo dessa marca: apenas 13.414 torcedores.
Disposto a sair na frente do duelo e jogar pelo empate na partida de volta, marcada para dali a quatro dias em São Paulo, o Flamengo alinhou Clemer no gol, Célio Silva e Juan na zaga, Maurinho e Athirson nas laterais, Leandro Ávila, Marcelo Rosa, Iranildo e Leonardo Inácio no meio-campo e Reinaldo e Leandro Machado na frente. Rodrigo Mendes e Caio iniciaram como opções de banco e entraram durante o jogo. E o segundo seria fundamental na vitória.
O Palmeiras, por sua vez, escalou Marcos no gol, Arce, Júnior Baiano, Galeano e Júnior na defesa, César Sampaio, Rogério, Alex e Zinho no meio e Paulo Nunes e Oséas na frente. Euller, o algoz da Copa do Brasil, era arma para o segundo tempo. Mas quem comemorou primeiro foi a torcida rubro-negra: logo aos cinco minutos, Iranildo bateu escanteio da direita, Maurinho escorou para a área e o garoto Juan apareceu na corrida e cabeceou para as redes.
No último minuto da etapa inicial, porém, o Palmeiras empatou quando Arce bateu falta para a área, Clemer saiu em falso e Júnior Baiano, do bico da pequena área, ajeitou e chutou de perna esquerda. E aos 23 minutos do segundo tempo, o time paulista ficou em vantagem no marcador: após escanteio, a bola foi escorada para frente, e o colombiano Asprilla se antecipou a Clemer e cabeceou. A bola ainda tocou no travessão e quicou dentro do gol.
De repente, vários gols começaram a ser marcados quase em sequência. Aos 25, Caio testou firme um cruzamento de Leandro Machado e empatou. Aos 27, Paulo Nunes recebeu de Asprilla por trás da defesa rubro-negra e fez 3 a 2 Palmeiras. Na saída de bola, Caio recebeu na entrada da área e bateu rasteiro, no canto de Marcos, tornando a igualar. O jogo só seria definido aos 38, quando Reinaldo escorou de cabeça cruzamento de Athirson e deu a vitória ao Fla.
Na noite de segunda-feira, 20 de dezembro, um Parque Antártica lotado aguardava de novo o Flamengo, que tinha Caio no lugar de Iranildo. Precisando vencer para forçar o terceiro jogo, ali mesmo em seu estádio três dias depois, o Palmeiras também vinha mais ofensivo, com Euller e Asprilla nos lugares de Rogério e Oséas. Animado pela torcida, o Alviverde saiu em vantagem aos 19 minutos: Leandro Machado fez pênalti em Júnior e Arce converteu.
Ainda no primeiro tempo, Asprilla acertou uma cotovelada em Athirson, ignorada pelo árbitro Luciano Almeida e por seu auxiliar, que estava bem perto do lance. Mesmo assim, aos poucos o time rubro-negro foi se recobrando e esteve perto de empatar pouco antes do intervalo. Na volta para a etapa final, a igualdade enfim viria: Rodrigo Mendes foi lançado nas costas da defesa, mas Marcos chegou antes. No rebote, Caio tocou para as redes.
Mais disposto, o Fla ainda chegou à virada aos 11. Rodrigo Mendes puxou contra-ataque e cruzou. Júnior Baiano cortou, mas a bola voltou para o próprio Rodrigo, que encheu o pé de fora da área, vencendo Marcos. A tranquilidade não durou um minuto. Na saída, houve uma falta para o time da casa perto do bico da grande área. Arce bateu e Clemer tentou segurar, mas acabou caindo com a bola dentro do gol. O momento já virava de novo em favor do Palmeiras.
Quando, aos 21 minutos, Zinho levantou a bola na área, a defesa do Flamengo parou e Paulo Nunes não teve dificuldade para cabecear e colocar o Palmeiras de novo na frente, parecia que a história se repetiria. O Fla havia lutado bravamente no campo do adversário, chegado a estar na frente no marcador, mas de novo sucumbiria à pressão. À enorme frustração rubro-negra provavelmente se seguiria uma vitória fácil do time paulista no terceiro jogo.
Mas – felizmente, nesse caso – o futebol é caprichoso. Quando não se esperava mais qualquer reação concreta do Flamengo, embora o time tivesse chegado a criar algumas chances, Iranildo recebeu uma bola no meio-campo, livrou-se do marcador, e Lê deu sequência à jogada esticando um passe para Reinaldo. O centroavante devolveu de calcanhar. De repente, o garoto de 20 anos da base rubro-negra estava frente a frente com Marcos.
Eram 38 minutos do segundo tempo. Lê fazia ali seu quinto jogo pela Mercosul, sendo que em todos saíra do banco – naquela noite, entrara no lugar de Marcelo Rosa. Outrora artilheiro do time de juniores, havia queimado algumas chances no time de cima por deslumbramento, mas fora resgatado pelo velho Carlinhos. Agora, tinha a bola do jogo e do título. Naquele clarão que se abriu na defesa palmeirense, ele tocou rasteiro, no canto, para as redes.
Na comemoração, o garoto levou as mãos ao rosto e chorou. Junto com Lê, naquela noite, choraram muitos milhões de rubro-negros. Um choro incrédulo, pelo herói improvável, mas sobretudo catártico, de alívio. Um choro de quem superava provações. Um choro de quem se via liberto de traumas. Um choro de um Flamengo que estava muito vivo, sim, senhor. E que era de novo campeão continental.
Ficha Técnica: Flamengo, Campeão da Copa Mercosul de 1999
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