terça-feira, 29 de junho de 2021

Finanças do Flamengo em 2020: a instabilidade foi pontual e está sob controle, mas os riscos aumentaram!


Abaixo, a íntegra da análise feita pelo jornalista Rodrigo Capelo, publicada em seu blog no GloboEsporte.com em 18 de junho de 2021 sob o título "As finanças do Flamengo em 2020: mesmo com pandemia e riscos assumidos no futebol, tudo indica que as contas continuam no eixo". Em resumo: dívidas foram feitas na compra de jogadores, receitas foram reduzidas nas bilheterias e nas premiações, mesmo assim, só o próprio Flamengo pode colocar sua hegemonia a perder. Eis a seguir, a reprodução do texto do autor:

Um dos jogadores mais importantes do elenco que conquistou títulos nacionais e internacionais nos últimos anos, o volante Gerson deixou o Flamengo. Ele jogará no Olympique de Marselha. Pela venda, o clube embolsou para lá dos R$ 150 milhões.

Esse é o tipo de notícia que, para o torcedor menos acostumado a acompanhar as finanças rubro-negras, pode parecer fora de lugar. Vocês da imprensa não dizem faz tempo que o Flamengo está rico?

Na verdade, a história é um pouco mais complicada. Por mais que tenha alcançado o maior faturamento do futebol brasileiro – com sobras! – os custos do time multicampeão não são baixos. Ainda que tenha vendido atletas, os direitos de outros tantos contratados precisam ser pagos.

O balanço referente a 2020, então, será visitado para que o torcedor obtenha algumas respostas. A recuperação conquistada na última década está sendo de alguma forma comprometida? A agressividade da diretoria de Rodolfo Landim no futebol tem ocasionado riscos demais?


PANORAMA
A história rubro-negra recente pode ser contada a partir do gráfico a seguir, que compara faturamento (tudo o que foi arrecadado no decorrer da temporada) com endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício). A proporção entre ambos é relevante.

Depois de um longo período de recuperação financeira, em que foi reduzindo paulatinamente a quantidade de dívidas, o Flamengo passou a investir em futebol pesadamente a partir de 2019. Atletas adquiridos são parcelados, então, ao pé da letra, representam dívidas.

Não havia problemas aparentes, pois a arrecadação estava em franco crescimento. É o brasileiro que mais se aproximou do R$ 1 bilhão. E aí aconteceu a pandemia. Um momento extraordinário e imprevisível da humanidade que, lógico, geraria consequências negativas.

A relação entre receitas e dívidas do Flamengo
Em R$ milhões


RECEITAS
A evolução do faturamento, quando analisada no detalhe, precisa ser feita com cuidado para não confundir o torcedor. Nos direitos de transmissão, a pandemia gerou uma anomalia na maneira como o dinheiro é registrado por clubes de futebol em seus balanços.

Uma vez que o Campeonato Brasileiro foi encerrado em 2021, parte relevante dos pagamentos só aparecerá nas demonstrações financeiras do ano seguinte. Do valor referente às televisões aberta e fechada, 30% estão condicionados à posição na tabela. E o Flamengo foi campeão.

Significa que há R$ 35 milhões adiados para a contabilidade do ano seguinte. Isto apenas na parcela ligada à performance. Há quantias variáveis relacionadas ao número de partidas transmitidas e aos pagamentos do pay-per-view. Este dinheiro não foi perdido, só adiado.

Por outro lado, o futebol causou uma redução nesses valores de transmissão ao não alcançar as fases finais ou os títulos de Copa do Brasil e Libertadores. As premiações dessas competições, totalmente meritocráticas, são contabilizadas como mídia nos balanços.

O perfil do faturamento do Flamengo em 2020
Boa distribuição do dinheiro entre as fontes de arrecadação é um bom sinal
Em R$ milhões


Nas bilheterias, a situação é diferente. Com o recomeço dos campeonatos a portões fechados, o clube não pôde vender ingressos. Em 2019, ela havia colocado R$ 109 milhões nos cofres. Em 2020, só R$ 27 milhões. Este dinheiro, sim, foi perdido por causa da pandemia.

No outro item que compõe o que chamamos de "torcida e estádio", a associação, a variação foi muito pequena. O programa de sócios-torcedores cresceu um pouquinho, enquanto os sócios que usam as dependências sociais da Gávea reduziram a participação.

Na área comercial, a direção conseguiu elevar de maneira relevante o faturamento. A diferença entre 2019 e 2020 foi de R$ 20 milhões a mais – uma soma que inclui patrocínios do futebol, licenciamentos em geral (inclusive Adidas) e patrocínios incentivados dos esportes olímpicos.

As transferências de atletas proporcionaram mais uma vez valores superlativos. Foram R$ 148 milhões arrecadados (descontadas participações de terceiros sobre o valor bruto, critério adotado pelo blog em toda as análises financeiras). Reinier foi a maior venda do ano.

Valores brutos, antes dos descontos, foram esses:

R$ 139 milhões – Reinier
R$ 24 milhões – Pablo Mari
R$ 16 milhões – Vinícius Souza
R$ 10 milhões – Caio Roque
R$ 5 milhões – Matheus Sávio


Orçado versus realizado
O "aproveitamento" da administração também pode ser medido objetivamente com o paralelo entre orçamento (previsões da diretoria para a temporada) e balanço (com os resultados alcançados).

Aqui precisamos ter, de novo, aquele cuidado com as receitas de transmissão adiadas. No total, o Flamengo pretendia arrecadar R$ 726 milhões em 2020. No resultado, conseguiu R$ 595 milhões. Mas uma parte nesta diferença diz respeito à grana postergada.

Nas outras linhas de negócio, houve superações e frustrações. A área comercial e de marketing foi além do que ela mesma previa para o ano, por exemplo. Nas transferências de jogadores, o resultado também ficou muito acima do que era tido como necessário para a temporada.

Nas bilheterias, o clube levou o maior tropeço. Não havia como prever que a pandemia do coronavírus aconteceria, então neste caso a postura da direção é compreensível. O clube tinha acabado de ganhar tudo com Jorge Jesus. Era de se esperar que estourasse de vender ingresso.

Ao analisar a tabela abaixo, só tenha um cuidado: no orçamento rubro-negro, receitas com "outros" (como loterias) são incluídas entre associações. No balanço, o detalhamento é maior. Isso quer dizer que a frustração nos sócios foi menor do que a comparação sugere.

2020 Orçado x Realizado

Nota técnica: no orçamento, o clube classifica receitas com "outros" entre "associações", o que causa pequena discrepância nos dois itens

A folha salarial é a combinação entre salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem e de arena. Tanto no orçamento quanto no balanço, o Flamengo não detalhou o montante que compete apenas ao departamento de futebol – pequena falha de transparência. Então os valores descritos acima incluem clube social e esportes olímpicos.

A comparação entre orçado e realizado mostra que neste custo, o mais importante de todos, o montante gasto ficou acima do que havia sido previsto para a temporada. E olha que a projeção inicial não era nada baixa: era alta suficiente para ser a maior do futebol brasileiro.

Nos resultados, aparecem juros e encargos sobre empréstimos bancários, correções monetárias e variações cambiais. O Flamengo tem a maior parte neste último item, a variação cambial. Trata-se da diferença entre o momento da compra de um jogador e o momento do pagamento. O real desvaloriza e gera um efeito negativo.

No resultado líquido, a linha do balanço que costuma atrair maior atenção das pessoas, o valor assusta. Mas não diz muita coisa. Se lembrarmos que parte relevante das receitas foi adiada para o exercício seguinte, significa que o deficit não seria tão alto quanto o registrado.


Dívidas
Esta é a parte do balanço que bota algum receio em quem lê. Diante das muitas contratações que o Flamengo fez para reforçar o futebol, há obrigações parceladas que põem pressão sobre o caixa. É por isso, principalmente, que jogadores importantes precisam ser vendidos.

Quando o endividamento rubro-negro é quebrado de acordo com o prazo para pagamento, as dívidas de curto prazo (que precisam ser pagas em menos de um ano) apresentam um aumento rápido nos últimos anos. A associação tem R$ 295 milhões a pagar em 2021.

Um pouco diferente de outros clubes em alguns indicadores, mais uma vez, esses números precisam ser contextualizados. É possível entender a gravidade deles quando colocados numa ordem lógica. O rápido aumento das dívidas tem duas explicações: empréstimos bancários e atletas.

O perfil do endividamento do Flamengo por vencimento
Em R$ milhões


Em 31 de dezembro de 2020, o Flamengo tinha:

- R$ 346 milhões em dívidas de curto prazo
- R$ 51 milhões disponíveis em caixa e equivalentes

A diferença entre esses dois números dá R$ 295 milhões. Este é o número que aparece no gráfico acima, segundo critério adotado pelo blog para calcular o endividamento em todos os clubes.

Em 31 de dezembro de 2020, havia, também no curto prazo:

- R$ 100 milhões a receber por atletas vendidos
- R$ 26 milhões a receber por patrocínios e licenciamentos

É possível que o Flamengo leve calotes dos clubes e patrocinadores, é possível que os pagamentos atrasem e compliquem o cotidiano. Vamos considerar neste exercício que não haverá problemas. Feita a subtração, chegamos a R$ 169 milhões "descobertos", a pagar no decorrer de 2021.

Existem pelo menos duas saídas para honrar esses compromissos. A primeira é aumentar a arrecadação e segurar a despesa num patamar baixo suficiente para que haja uma "sobra" nessa conta operacional. Quando a diretoria abre mão de jogadores como Gerson, por mais importantes que sejam para o time, é justamente para achar essa grana.

Caso não seja encontrado dinheiro suficiente para fazer frente a todas as dívidas, a segunda saída é pegar um empréstimo bancário. Assim a diretoria "rola" o problema. O dinheiro captado hoje precisará ser pago algum tempo depois, trata-se de uma dívida, mas dá tempo para que mais dinheiro entre sem que nenhum credor fique sem receber.

Esse raciocínio tem funcionado no Flamengo – e não em outros clubes – porque o clube se organizou para tal. Ele só tem "contas a receber" relevantes porque vendeu bem seus jogadores. E só tem crédito na praça para pegar empréstimos porque está com as contas organizadas.

Entre dívidas com instituições financeiras, o Flamengo possui R$ 60 milhões a pagar para o Banco de Brasília (BRB), também patrocinador do clube. O próprio contrato de patrocínio do BRB foi dado como garantia para o pagamento, além de partes dos contratos da Adidas e da Globo.

No gráfico abaixo, dívidas "fiscais" são parcelamentos de impostos que deixaram de ser pagos no passado. O Profut é o maior deles. Em "outros", estão direitos federativos e econômicos de jogadores adquiridos, em parcelas, comissões para intermediários e fornecedores.

Na parte "trabalhista", há salários e encargos correntes (que não correspondem a atrasos ou calotes) e ações que o clube responde na justiça. Causas ligadas ao incêndio ocorrido no Ninho do Urubu, os acordos firmados com as famílias das vítimas, aparecem nesta linha.

Um terço da dívida está no Profut e não preocupa. O resto tem níveis diferentes de gravidade.

O perfil do endividamento do Flamengo por tipo
Em R$ milhões


Dívidas não provisionadas
O Flamengo tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda nesses processos segundo as nomenclaturas: "Provável", "Possível" ou "Remoto".

Apenas os valores de perdas "prováveis" são inseridos no passivo e consequentemente no endividamento demonstrado nos gráficos anteriores. Além deles, o Flamengo possui R$ 323 milhões em processos em que seu departamento jurídico considera a derrota apenas "possível" ou "remota". Isso significa que o endividamento pode ficar maior.

Dentro deste valor, existe um processo que o clube responde por não ter registrado operações de câmbio entre 1990 e 1998, relacionadas a compras de jogadores. O departamento jurídico afirma que R$ 44 milhões têm perda "possível" e R$ 119 milhões têm chance "remota".

Também incluídos no valor total, existem R$ 76 milhões em perdas "possíveis" para uma ação que foi movida para impedir que o Flamengo fosse patrocinado pela Caixa Econômica Federal. Advogados rubro-negros tiveram vitórias em primeira instância e aguardam recursos.


Futuro
Com a maior torcida do Brasil, o Flamengo tem tudo para continuar com o maior faturamento do futebol brasileiro por um bom tempo. Com mais dinheiro entrando, pode gastar e investir mais. Mesmo num ano com suas crises na esfera esportiva, novos títulos foram conquistados.

No horizonte, exceto Palmeiras (com sustentabilidade) e Atlético-MG (com favores de mecenas), não parece haver outro clube com grana suficiente para ameaçar a hegemonia esportiva que o Flamengo ambiciona. Só o mesmo o Flamengo pode colocar tudo a perder.

O acompanhamento das finanças rubro-negras, com base nas documentações publicadas pelo clube, indica que as contas continuam equilibradas. Mesmo com tantos investimentos feitos no futebol em tão pouco tempo, riscos parecem estar dentro do razoável.

Não quer dizer que a situação esteja fácil. O valor "descoberto" nas dívidas de curto prazo – R$ 169 milhões, lembra? – não pode ser subestimado. Na prática, todos precisam ter em mente que esses compromissos precisam ser honrados. Foi ótimo comprar os direitos de Gabigol, Pedro e tantos outros. Agora o Flamengo precisa pagar por eles.

A consciência de que nem todos os jogadores podem ser contratados, de que às vezes peças importantes precisarão ser vendidas, serve a todas as partes envolvidas na opinião pública: torcedores e jornalistas. Até porque, sabemos, neste jogo os dirigentes são movidos muitas vezes não pela racionalidade, mas por vaidade e interesses pessoais.


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