domingo, 4 de julho de 2021

Médio da Guia: o "cansaço de viver" apagou uma estrela

Uma memória de uma história quase esquecida de tempos longínquos do futebol, contada por Carlos Molinari, torcedor e historiador do Bangu, no blog Caderno dos Esportes, publicada em 30 de agosto de 2020. Abaixo a integra do texto original:


Irmão do famoso Domingos da Guia, Médio foi campeão carioca pelo Bangu e pelo Flamengo antes de ter um fim trágico.


Antes de um confronto entre Vasco e Bangu, os três irmãos
posam juntos para uma foto: Médio, Domingos e Ladislau


Ele era o menos badalado dos irmãos Da Guia, mas nunca viveu à sombra do cartaz dos irmãos Ladislau e Domingos. Ele também não marcou época no futebol como o "mano" mais velho, Luiz Antônio. No entanto, Médio – apelido que ganhou baseado no seu verdadeiro nome: Mamede, e não por causa de sua posição dentro de campo – foi um dos principais jogadores do Bangu nos Anos 1930.


Nascido em 19 de maio de 1911, Mamede José da Guia era o décimo-primeiro filho do casal Maria Pereira Ramos e Antônio José da Guia. Como todos do bairro operário, virou sócio do Bangu em 1927, quando começou a jogar pelo 2º time do clube, atuando de atacante. Era relativamente baixo: tinha apenas 1,61m e tão leve, que pesava meros 57 quilos.


Mesmo franzino, em 1928, veio a grande chance: foi promovido ao time principal com a saída do centroavante Barcellos para o Andarahy. Assim, formou no quinteto ofensivo do Bangu, ao lado do seu irmão Ladislau. No seu primeiro jogo, contra o Bonsucesso, passou em branco. Porém, logo na sua segunda partida, contra o Flamengo, marcou o primeiro tento da goleada banguense por 4 a 0. O garoto de apenas 17 anos caía nas graças da comissão técnica e da torcida.


Permaneceu no ataque durante as temporadas de 1929, 1930 e 1931, balançando as redes dos goleiros adversários por 54 vezes. Curiosamente, parecia ter predileção por marcar gols diante do Sport Club Brasil – time alvirrubro da Praia Vermelha: foram 9 gols nesse confronto.


A partir de 1932, recuou para o meio-campo, para compor a linha média, ao lado de Santana e Eduardo Moura. Nessa posição, continuou se destacando, sendo titular absoluto na campanha dos títulos carioca de 1933 e no Torneio Início de 1934.


O ano de 1933 foi realmente marcante para Médio: poucos dias antes de se sagrar campeão carioca, nasceu o seu primeiro filho: Waldyr. Na ocasião do parto, o jogador estava em Santos, onde o Bangu enfrentaria o alvinegro local, pelo Torneio Rio-São Paulo.


Em julho de 1936, criou um caso na Rua Ferrer: Médio queria sair do Bangu! O meio-campo alegava na Justiça que o Bangu lhe devia oito meses de salários atrasados, somando a quantia de 2 contos e 400 mil-réis de dívida. De nada adiantou o presidente Miguel Pedro apresentar os vales assinados pelo jogador, no valor de apenas 770 mil-réis (quantia que estava muito aquém da reclamada). Médio estava livre do Bangu e poderia assinar com o Flamengo. Foi esse caso, o primeiro em nosso país, em que um jogador de futebol recorreu ao judiciário para fazer valer seus direitos.


No Flamengo, jogou ao lado do irmão Domingos da Guia por várias temporadas e foi campeão carioca em 1939 e 1942. Em 1943, aos 32 anos, já em final de carreira, voltou a vestir a camisa do Bangu. Sem espaço, foi um simples reserva, realizando apenas dois jogos, totalizando 227 partidas com a camisa alvirrubra.


Não foi um "ás", mas formou entre os jogadores considerados utilíssimos no futebol e ao seu clube pela regularidade de produção, disciplina e espírito de camaradagem. Mesmo assim, quando jogava pelo Flamengo nunca caiu nas graças do locutor Ary Barroso. Torcedor ardoroso do rubro-negro, Ary não perdoava um único erro do meia: "E Médio nunca chega a ser bom, é sempre médio...".


Com o fim da carreira nos gramados, iniciou outra: a de soldado da Polícia Especial. Servia no quartel situado no Morro de Santo Antônio, no Centro do Rio.


Se profissionalmente, tudo ia bem, na rua Barão de Capanema, onde morava em Bangu, a situação não era nada boa. Pai de dois filhos, Médio foi abandonado pela esposa, Júlia Barbosa da Guia, em 1947. O que se falava pelo bairro era que ela tinha saído de casa para viver com um outro rapaz.


Incapaz de aceitar a situação, não conseguindo tirar a história da rejeição da cabeça, Médio levou o fim do idílio às últimas consequências.


Depois de dar tantas alegrias aos banguenses, o bairro recebeu a notícia de sua morte em 8 de janeiro de 1948, em uma situação trágica, descrita por vários jornais:


"Por desgostos íntimos, suicidou-se ontem, no Quartel da Polícia Especial, no morro de Santo Antônio, o guarda dessa corporação Mamede da Guia, de 36 anos de idade, casado, o qual desfechou dois tiros de revólver no peito, para falecer instantes depois, mesmo antes de qualquer socorro.


O cadáver do tresloucado policial especial foi recolhido ao Necrotério do Instituto Médico Legal. Ao que parece, Mamede teria levado a tão desesperado gesto em consequência de se achar separado da esposa e de seus filhinhos.


Tanto no meio esportivo, como na corporação em que servia, gozava o tresloucado policial de geral estima. O seu gesto surpreendeu e encheu de mágoa a todos quanto o conheciam. E assim, desaparece uma figura bastante conhecida das nossas praças de esporte" (Jornal do Brasil, 09/01/1948, pg. 10).


Outro jornal, mais fuxiqueiro, quis saber se Médio tinha deixado algo escrito, porém não encontrou nada revelador, nem nada acusatório:


"Sabia-se que o soldado da Polícia Especial havia sido abandonado pela esposa, tendo ficado muito deprimido com esse fato. Três bilhetes foram encontrados pelo comissário. Um deles dirigido a um amigo do suicida, de nome Mastelo, um para os seus irmãos e outro para uma cunhada. Neles, Médio pede que tomem conta de seu filho órfão e que para ampará-lo deixou algum dinheiro no Banco do Brasil. Sobre o suicídio propriamente, nada há, a não ser uma referência vaga ao cansaço de viver" (Jornal A Noite, 08/01/1948, pg. 17).



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