RONDINELLI: o Deus da Raça
Carreira: 1971-1980 Flamengo; 1981 Corinthians; 1981 Vasco; 1982 Bonsucesso (RJ)
Muito provavelmente as palavras de uma crônica de Nélson Rodrigues sobre o "Deus da Raça" já sejam suficientes para resumir o que o jogador representou na história do clube: "Ele é o jogador que tem alma. Isso é o que eu queria dizer: sem alma não há um grande jogador. Na decisão de 1978 contra o Vasco da Gama, ele tinha aquele impulso profético do gol. Rondinelli é um jogador de grande emoção, de grande coragem, de grande vontade de vencer, que crava no peito a estrela rubro-negra. Rondinelli é dono dessa mística da camisa rubro-negra, dono de uma torcida, de uma nação, de uma religião. Ele é o padre da religião apaixonante, ele é o ídolo de sangue da torcida".
Como jogador do Flamengo, ele fez 407 jogos e marcou 12 gols.
Abaixo, a combinação de vários textos sobre a carreira do jogador, os dois principais escritos por Emmanuel do Valle para o site "Flamengo Alternativo", e por Breiller Pires para o jornal "El País":
O paulista de São José do Rio Pardo, Antônio José Rondinelli Tobias, o Rondinelli, chegou ao Flamengo em 1967, descoberto pelo ex-jogador do clube nos anos de 1940, Velau, que o levou para a Gávea quase ao mesmo tempo em que levou outro jogador nativo de São José do Rio Pardo que também construiu história na Gávea, o meia Zanata. Velau tinha uma oficina mecânica em São José do Rio Pardo. A família estava ressabiada, não queria que o menino morasse sozinho no Rio de Janeiro. O vovô Silvio era um italiano de Luca, cidade próxima a Roma, e torcia efusivamente pelo "vecchio" Palestra Itália, e fazia questão de doutrinar o neto com as maravilhas de que eram capazes os craques do Palmeiras. Curiosamente, foi o avô palmeirense Silvio quem convenceu os pais a o deixarem seguir para fazer testes no Flamengo, onde foi recebido pelo ex-jogador rubro-negro Joubert, que o aprovou ao fim destes testes.
O menino deveria ter crescido mimado, afinal cresceu com quatro irmãs, ele era o único homem entre os filhos do casal. Era de classe média. Estudava, mas gostava mesmo era de jogar bola. Os pais, ao contrário de muitas biografias de outros craques, não se importavam muito se o menino trocava as matinês de cinema nas tardes do fim de semana por uma pelada na rua.
Rondinelli jogou nas divisões de base do Flamengo até ingressar entre os profissionais já em 1971. Mas estava numa fase de idas e vindas entre o profissional e a base, tanto que se sagrou Bi-Campeão Carioca dos Juvenis (sub-20) em 1972 e 1973, numa equipe que também tinha a Cantareli, Jayme de Almeida, Júnior, Geraldo e Zico.
No Rio de Janeiro, Rondinelli morava na concentração rubro-negra no Morro da Viúva junto a outros meninos de sua geração, entre eles Geraldo, "o assoviador". Em 1974, ele assinou seu primeiro contrato de profissional com o clube, passando a ganhar 4.500 cruzeiros por mês, e podendo enfim alugar um apartamento na Praia do Flamengo.
Começava ali uma trajetória gloriosa em vermelho e preto. Nunca antes na história nasceram tantos Rondinellis como entre o final dos Anos 1970 e o começo dos Anos 1980. Uma homenagem ao nome incomum de um herói do time mais popular do país. O zagueiro que em 3 de dezembro de 1978, diante de um Maracanã com público superior a 128 mil torcedores, não só deu o título do Campeonato Carioca que o Flamengo não conquistava havia quatro anos, como também estabeleceu o marco para a era de consagração do clube. "Um gol que valeu muito mais que um troféu", como ele próprio um dia descreveu. Os mais de Cr$ 6,6 milhões arrecadados naquele domingo bateram o recorde nacional de renda, fazendo justiça mais uma vez ao apelido de "Clássico dos Milhões".
Para muitos torcedores rubro-negros, Zico incluso, aquele foi o gol do Flamengo mais arrepiante já testemunhado. A conquista também é considerada o verdadeiro "big bang" da geração mais vitoriosa do clube, que partiria dali para o topo do mundo. Reafirmou talentos, fez justiça a craques, enterrou traumas. A cabeçada do zagueiro Rondinelli, que decretou a vitória por 1 a 0 sobre o Vasco aos 42 minutos do segundo tempo e deu ao clube da Gávea o título de Campeão Carioca de 1978, entrou para a história do futebol brasileiro.
Ganhar um campeonato estadual, a princípio, não soa grandioso para uma equipe do porte do Flamengo, mas é preciso lembrar que naquela época o Carioca ostentava o prestígio de "torneio mais charmoso do Brasil". As rivalidades locais tinham mais importância para os torcedores, sobretudo para um time que ainda não havia ganhado nenhum título nacional. E, nesse aspecto, os rubro-negros estavam devendo. Perderam a Taça Guanabara de 1976 e o Estadual de 1977 nos pênaltis, em ambas as ocasiões para o Vasco, seu maior rival. Fora do campo, não escapavam das gozações que insistiam em pregar as pechas de "time sem raça" e "freguês" numa das gerações mais talentosas formadas na Gávea.
Em 1975, com o jovem time comandado pelo técnico Joubert – ele próprio, ex-lateral criado no clube – há a expectativa de que o Flamengo já tivesse uma boa equipe para os próximos cinco ou dez anos. Mas sem ganhar nenhum dos três turnos do Carioca, o time ficou afastado das finais. No Brasileiro, engrenou na reta final e chegou a liderar a seu grupo, à frente do Internacional, faltando uma rodada para as semi-finais. O adversário era o Santa Cruz no Maracanã. O time jogava pelo empate, mas perdeu por 3 a 1 e foi desclassificado.
Em 1976, um ano ainda mais frustrante. O Flamengo decidiu a Taça Guanabara em jogo extra com o Vasco, mas perdeu nos pênaltis. No segundo turno, o título ficou com o Botafogo. E o terceiro, disputado cabeça a cabeça com o Fluminense, foi para os tricolores. O Flamengo era o segundo na soma total de pontos, mas ficou de fora do Quadrangular Final. O mesmo se repetiu no Brasileiro. Só o Inter, futuro campeão, fez mais pontos que o Fla, que foi às semifinais.
Chegou 1977, e uma nova diretoria foi empossada. A chapa Frente Ampla pelo Flamengo (FAF) elegeu ao tabelião Márcio Braga como presidente do clube e iniciou uma grande reformulação na gestão de futebol rubro-negra. Valorizou a base e complementa com reforços pontuais, como o lateral Carlos Alberto Torres, o meia Paulo César Carpegiani, o ponta Osni e o centroavante Cláudio Adão. Porém, o time voltou a viver o drama de perder um jogo decisivo nos pênaltis para o Vasco no Carioca. No Brasileiro, após bom começo, o time de novo naufraga antes das semi-finais.
O Flamengo não vencia ao Vasco desde março de 1977, quando venceu um amistoso por 2 a 1. Cinco partidas sem marcar um gol sequer no grande oponente. Já o time da Colina acumulava dez vitórias em dez jogos na Taça Rio. Embora os rivais tivessem ganhado a Taça Guanabara (primeiro turno), os cruzmaltinos jogavam pelo empate para ficar com o título do segundo turno. O Flamengo, por sua vez, levaria a taça do Carioca em caso de vitória, uma vez que teria conquistado os dois turnos.
Fazendo valer seu favoritismo, o Vasco jogava recuado, mas de forma segura, levando a crer que administraria a igualdade no placar e manteria intacta a sina do adversário. Mas, aos 41 minutos do segundo tempo, o Flamengo descolou um escanteio. Júnior recebe de Manguito na meia esquerda, avança, tabela com Tita e cruza alto, procurando Zico, que avançava pela outra ponta. A bola aparentemente sairia em lateral ou tiro de meta, mas Marco Antônio, temendo a chegada do 10 rubro-negro, prefere não arriscar e faz o corte pela linha de fundo, cedendo escanteio. Para apressar a cobrança, o fotógrafo uruguaio Ruben Etchevarria, conhecido como "Tche", que trabalhava à beira do gramado, escorou a bola com os pés na direção de Zico. Agilidade imprescindível para que a defesa vascaína não percebesse a entrada de Rondinelli pelo meio da área. O zagueiro aproveitou o vacilo do zagueiro Abel - o Abel Braga, que futuramente seria técnico - e, agigantado pela magnífica impulsão de seu 1,76m, testou para o gol de Emerson Leão. Explosão no Maracanã! O Flamengo voltava a vencer ao Vasco e a ser campeão carioca.
Zico não batia escanteios no Flamengo, tarefa mais comum aos pontas. De fato, aquele fora o único que ele cobraria em todo o jogo. Rondinelli também não estava na área. Estava no meio-campo discutindo com Carpegiani sobre se devia ou não ir ao ataque. Roberto, que costumava marcar o zagueiro rubro-negro nos escanteios, também se dispersou com a discussão e ficou onde estava. Até que Zico levantou o braço e Rondinelli pressentiu: "É agora". Foram cerca de dez passos largos até a área e um salto, num daqueles instantes em que o tempo parece parar, congelar. A bola passou alta por todos os outros jogadores do Flamengo que estavam na área e veio para onde Rondinelli se encontrava, entre Abel e Orlando Lelé. A cabeçada foi inapelável, no canto esquerdo. Nem que se esticasse todo Leão alcançaria, finalmente batido. Não houve rubro-negro que segurasse mais o enorme grito contido pela tensão no Maracanã. Aos 42 minutos, enfim, num misto de alívio e êxtase, era a hora de extravasar. O fim do jogo, no entanto, demorou um pouco mais que o esperado. Guina e Zico se estranharam no meio-campo, o vascaíno acertou um pontapé no rubro-negro que, furioso, só não conseguiu revidar porque foi contido por companheiros e adversários. A confusão foi o estopim para uma gigantesca invasão de campo, típica do estádio naqueles tempos, e que paralisou a partida por cerca de seis minutos. Os dois jogadores acabaram expulsos. E o jogo terminou pouco depois, iniciando de vez a agora incontida festa da massa rubro-negra.
Nas palavras do próprio zagueiro: "Nada acontece por acaso, pois, três minutos antes do gol, tentei antecipar uma bola do Roberto Dinamite, mas ele foi mais feliz e conseguiu me driblar e colocar o Paulinho que era meia-esquerda de frente com o Cantareli. O Paulinho pegou mal na bola e errou o gol, e dois minutos depois aconteceu o lance do escanteio, onde o Marco Antônio está com a bola dominada, mas marcado pelo Zico. Aí ganhamos o escanteio, estava faltando três ou quatro minutos para acabar o jogo. O Zico é de uma inteligência, de uma leitura fantástica, porque ele não cruza a bola, pois sabia da minha impulsão, por isso ele não cruza a bola, o Zico alça ela. A defesa do Vasco era muito alta, tinha o Orlando, o Abel, o Dinamite, por isso tive que dobrar a minha impulsão, percebi que o Roberto Dinamite, que estava me marcando, me largou, peguei o embalo, aí fui com toda a vontade, dando um testaço que parecia um chute no canto direito do Leão. Aí foi só correr para a torcida. Foi uma tarde marcante, graças a Deus esse título entrou para a história, com toda a diretoria, funcionários, enfim a todos que participaram daquele momento".
"Ele é o jogador que tem alma. Isso é o que eu queria dizer: sem alma não há um grande jogador. Na decisão de 1978 contra o Vasco da Gama, ele tinha aquele impulso profético do gol. Rondinelli é um jogador de grande emoção, de grande coragem, de grande vontade de vencer, que crava no peito a estrela rubro-negra. Rondinelli é dono dessa mística da camisa rubro-negra, dono de uma torcida, de uma nação, de uma religião. Ele é o padre da religião apaixonante, ele é o ídolo de sangue da torcida"... palavras de Nélson Rodrigues sobre o "Deus da Raça".
"O gol do Rondinelli e o título nos deram a confiança que faltava para levar o Flamengo às grandes conquistas", resumiu Zico.
Depois da redenção em cima do rival, o rubro-negro emendou uma sequência de 52 jogos sem perder, até hoje a maior invencibilidade do futebol nacional, juntamente com o Botafogo. Ainda sagrou-se tri-campeão carioca e, de 1979 a 1983, alcançou as maiores façanhas de sua história ao arrebatar três títulos brasileiros, uma Copa Libertadores e o Mundial Interclubes. Rondinelli migrara para o Corinthians em 1980, mas, como insígnia por ter cravado a pedra fundamental de uma arrancada que alçou o Flamengo ao patamar de potência internacional, recebeu do clube as faixas de campeão da América e do Mundo. "Aquele gol foi o divisor de águas para a nossa geração", diz Rondinelli ao recordar a cabeçada. "Se a gente não tivesse conquistado o título, o time provavelmente seria desfeito, ficaria com fama de vice, de perdedor".
A fama que coube ao zagueiro é a de herói. Tanto que, durante uma breve passagem pelo Vasco, foi ovacionado por torcedores rubro-negros no palco em que se consagrou defendendo seu time do coração. Graças à entrega que sempre demonstrou em campo, também ganhou o apelido de "Deus da Raça". Tamanha era sua identificação com o ideário de jogador raçudo que dois dias depois do título de 78, jornais do Rio de Janeiro promoveram um encontro na Gávea entre Rondinelli e Agustín Valido, ex-ponta argentino que, assim como o defensor, marcou de cabeça contra o Vasco, a quatro minutos do fim, o gol do primeiro tri-campeonato carioca flamenguistas em 1944: "Olha, meu filho, você não imagina a alegria que sinto por estar ao seu lado. Você é tudo o que eu fui para o Flamengo: raça, amor à camisa, paixão, febre de vitória", declarou-se Valido ao ídolo recém-empossado, em alusão sutil ao fato de ter jogado com febre a final de 44. O gol de Valido completaria um tri-campeonato, o de Rondinelli iniciaria outro, que seria seguido nos anos posteriores pelas conquistas da Era de Ouro da história do Clube de Regatas do Flamengo.
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