domingo, 8 de setembro de 2019

Em 1975, o Santa Cruz derrubou o "mito-raiz" do Maracanã lotado


Há que se quebrar certos mitos no futebol. No do Flamengo também. A Era Zico, Era de Ouro da História do clube, que ganhou quase tudo que disputou, criou a imagem de que "o Flamengo é um time de chegada", do "Deixou chegar, já era". Porque aquele Flamengo, quando embalava, realmente chegava atropelando, e raramente perdia um jogo decisivo no Maracanã cheio. Ainda assim, mesmo aquele time, teve seus fracassos em casa cheia. Na semi-final da Libertadores de 1982, o time de Zico, Adílio, Júnior, Leandro, Mozer, Andrade, Nunes foi para o Maracanã enfrentar ao Peñarol precisando de uma simples vitória por 1 x 0 para avançar para disputar pela segunda vez em sua história, pela segunda vez consecutiva, a final da Copa Libertadores da América, e pela segunda vez contra o Cobreloa. Nem o Maracanã cheio, nem o time do Zico, quem fez 1 x 0 foi o Peñarol, gol do brasileiro Jair, que avançou à final, bateu o Cobreloa, e foi campeão sul-americano.

Mas ainda assim, a Era Zico, com os títulos brasileiros de 1980, 1982, 1983 e 1987, com a Libertadores e o Mundial de 1981, com o Penta da Taça Guanabara, com um Tri Carioca, e vencendo quatro vezes o Estadual em 5 edições, construiu o mito de que bastava o Maracanã cheio para o Flamengo ser imparável, que bastava o Flamengo chegar numa final para ser campeao. Depois desta Era de Ouro, o Flamengo, então tendo passado à "Era Júnior" ainda foi campeão da Copa do Brasil de 1990 e do Brasileiro de 1992, reforçando este mito. Mas vieram os vice-campeonatos: Supercopa Libertadores de 1993 e 1995, Copa do Brasil de 1997, 2003 e 2004, e Copa Mercosul de 2001. O mito estava desfeito.

Outro mito, mais moderno, pós reforma geral do Maracanã, era de que o Flamengo só perderia em estádio cheio porque as arquibancadas estavam tomada de gente rica, e não mais do povão pobre, e esta gente não torcia igual, e era por isso que o Flamengo perdia. Na época do "futebol raiz", a energia do povão não deixava o Flamengo perder no Maracanã cheio. Pois bem, é este mito que será descontruído também com esta história. Poderia-se apenas citar as derrotas para o Santo André na Copa do Brasil de 2004, quando bastava um empate, ou a perda do título para o Independiente na Supercopa de 1995, quando precisava de 2 gols e fez apenas 1, com Romário, desperdiçando a oportunidade de conquistar um título no Ano do Centenário, ou mesmo a derrota por 3 x 0 para o América do México na Libertadores de 2008. Todas estas derrotas foram anteriores à "Elitização do Maracanã", que aconteceu a partir de 2013. Mas vamos voltar mais no tempo, numa época ainda mais "raiz", Anos 1970, a arquibancada ainda era de cimento e sem lugar fixo, Zico e Júnior estavam vestindo vermelho e preto, e o Flamengo entrou em campo para enfrentar o Santa Cruz diante de uma massa de 74 mil torcedores no Maracanã, bastava um simples empate e o time rubro-negro avançaria à semi-final junto a Internacional, Fluminense e Cruzeiro.

Era o Campeonato Brasileiro de 1975. A fórmula era confusa. A começar pela inovação que a CBD (a CBF ainda não tinha sido criada) inventou naquele torneio: vitória por dois ou mais gols de diferença valia 3 pontos (até 1987 a vitória no futebol valia 2 pontos, só a partir de 1988 passou a valer 3). O campeonato tinha 42 clubes. O Brasil estava em plena "Fase de Chumbo" de sua Ditadura Militar. Os critérios de escolha dos participantes do Brasileiro por si só eram confusos e repletos de interferências políticas. Os 42 clubes, na 1ª Fase, foram divididos em 4 grupos, dois com 10 e dois com 11. Os time do Grupo A enfrentavam os do Grupo B, e os do C enfrentavam os do D em turno único. Os 5 primeiros de cada grupo avançavam à 2ª Fase, e os demais jogavam uma Repescagem. Na 3ª Fase, os 12 melhores clubes da 2ª Fase e os 4 melhores da Repescagem se dividiam em 2 grupos de 8 clubes, com os dois primeiros de cada grupo avançando para fazer a Semi-final.

O Flamengo do técnico Joubert começou mal. Na 1ª rodada da 1ª fase perdeu por 2 x 1 para o Sport Recife no Maracanã, depois empatou sem gols contra o Bahia em Salvador, e perdeu por 1 x 0 para o Náutico em Recife. As duas derrotas para pernambucanos pareciam já ser um prenúncio do que estava por vir pela frente. O Flamengo melhorou um pouco, mas não fez boa campanha. Terminou a 1ª Fase como o 1º colocado de seu grupo, a frente do vice-líder Grêmio, mas na soma dos quatro grupos, tinha tão só a 11ª melhor campanha. Não era comum nestes tempos, mas a diretoria decidiu demitir o treinador e contratar outro no meio do campeonato. Entrou o gaúcho Carlos Froner no lugar do ex-jogador rubro-negro Joubert. A campanha na 2ª Fase melhorou. O Flamengo avançou em 3º lugar de seu grupo, atrás de Internacional e Santa Cruz. E seriam justamente estes três clubes que brigariam cabeça a cabeça no mesmo grupo na 3ª Fase pelas duas vagas do grupo que davam acesso à Semi-Final.

Na 1ª rodada da 3ª Fase, o Santa Cruz venceu ao Internacional por 3 x 1 no Arruda, em Recife, e o Flamengo fez 2 x 0 na Portuguesa de Desportos em São Paulo. Grêmio e Náutico empataram, assim como São Paulo e Sport Recife. O Flamengo saltava na liderança do grupo com 3 pontos, seguido pelo Santa Cruz com 2 pontos, depois dos quatro que tinham 1 ponto, o Inter aparecia com 0 junto à Portuguesa. Na 2ª rodada, o Flamengo empatou com o São Paulo no Maracanã, passando a ter 4 pontos. A Portuguesa venceu ao Náutico por 3 x 1 e saltou a 3, assim como o Internacional, que em Porto Alegre fez 3 x 1 no Sport. O Santa Cruz venceu ao Grêmio por 2 x 1 no Estádio do Arruda e também avançou a 4 pontos, dividindo a liderança com o Flamengo. Na 3ª rodada, O Flamengo venceu ao Grêmio por 1 x 0 no Maracanã e saltou a 6 pontos. O Santa Cruz empatou com a Portuguesa, e foi a 5. O Internacional empatou sem gols com o São Paulo e foi a 4. Entre os demais, a Portuguesa também tinha 4, o São Paulo e o Sport Recife tinham 3, o Náutico e o Grêmio 1 ponto.

Na 4ª rodada, o Flamengo meteu 3 x 0 no Náutico no Maracanã. O Santa Cruz ganhou o clássico contra o Sport por 3 x 1 e o Internacional ganhou o clássico contra o Grêmio por 1 x 0. A Portuguesa venceu o São Paulo por 2 x 1. Estes 4 despontavam na luta pelas 2 vagas. O líder Flamengo tinha agora 9 pontos, seguido pelo Santa Cruz com 8, Internacional e Portuguesa tinham 6 pontos, São Paulo e Sport com 3, e Grêmio e Náutico com 1, estes quatro tinham pouquíssimas chances. Os resultados da 5ª rodada ajudaram e o Flamengo parecia já ter sua vaga quase assegurada depois de vencer ao Sport por 1 x 0 em Recife e saltar para 11 pontos. O Santa Cru perdeu para o São Paulo, o Inter venceu ao Náutico por 1 x 0, e a Portuguesa empatou com o Grêmio. Santa Cruz e Internacional estavam com 8 pontos, três a menos que o Flamengo, Portuguesa tinha 7 pontos, São Paulo 5, Sport 3, Grêmio 2 e Náutico 1. Na 6ª e penúltima rodada, o Flamengo tinha um jogo decisivo contra o Internacional em Porto Alegre. Jogo muito difícil, e ali o time rubro-negro já poderia ter garantido sua classificação. Os dois empataram por 1 x 1 e a briga se manteve aberta. O Santa Cruz se aproveitou goleando ao Náutico por 4 x 1, o Grêmio fez 2 x 1 no São Paulo, e a Portuguesa empatou com o Sport. A classificação: Flamengo em 1º com 12 pontos, Santa Cruz em 2º com 11, Internacional em 3º com 9, os demais já estavam todos matematicamente eliminados: Portuguesa com 8, São Paulo com 5, Grêmio e Sport com 4, e Náutico com 1 ponto.

O Flamengo liderou seu grupo na 3ª Fase quase de ponta a ponta, da primeira à penúltima rodada. Na última rodada enfrentava ao Santa Cruz no Maracanã, e um simples empate o classificaria. O Internacional precisava vencer à Portuguesa por dois ou mais gols no Beira-Rio, e assim estaria matematicamente garantido, pois chegaria assim a 12 pontos e tinha vantagem no critério de desempate tanto frente a Flamengo quanto a Santa Cruz, pois havia feito a melhor campanha até a fase anterior entre os três. O Internacional meteu 3 x 0 na já eliminada Portuguesa e assegurou sua vaga. Eis então que chegamos enfim ao ponto de contar a história, após esta larga introdução do contexto, para falar do dia em que Flamengo e Santa Cruz se enfretaram diante de 74 mil torcedores no Maracanã, com um simples empate servindo ao time rubro-negro para ir à semi-final.

Numa quinta-feira, 4 de dezembro de 1975, a esperança da torcida rubro-negra era vencer ao Tricolor do Arruda e garantir não só a classificação à Semi-Final como o 1º lugar do grupo, para jogar a semi-final, que seria em jogo único, no Maracanã. O Flamengo jogava pelo empate para obter a classificação em 1º lugar. Quase ninguém acreditava que o Santa Cruz conseguiria superar ao Flamengo. Os programas esportivos das rádios cariocas então davam como favas contadas uma vitória do Mengão sobre o Santa Cruz: um clube nordestino com certeza iria tremer jogando no Maracanã lotado, diziam os analistas de então. Faltou combinar isto com os bravos 11 jogadores tricolores que entraram em campo. O "Flamengo Raiz" de Zico, Júnior e do argentino Doval, era tido como time raçudo.

Luís Paulo e Givanildo

O jogo foi do início ao fim com o domínio do time Tricolor. Aos 26 minutos da primeira etapa Ramón abriu o placar para o time "Coral", mas não demorou muito para o Flamengo empatar. Aos 28 minutos Zico empatou a partida e levou a torcida do Flamengo nas arquibancadas do Maracanã à loucura. A festa da torcida durou até os 19 minutos do 2º Tempo. Ramón marcou mais uma vez e pôs o Mais Querido do Brasil atrás no placar. A partir daí, o que se viu por parte do Flamengo foi um total desespero e muitas jogadas violentas. Júnior, sobretudo, abusou e muito da violência, tirando de campo por contusões ao ponta-esquerda Pio e ao atacante Mazinho. E aos 42 minutos o atacante Volnei, que substituiu justamente o lesionado Mazinho, deu números finais à partida, calando de vez o Maracanã: Santa Cruz 3 a 1. O Tricolor fez história e eliminou ao Flamengo, classificando-se à Semi-Final, sendo o primeiro time do Nordeste na história a chegar à Fase Final do Campeonato Brasileiro. Do lado rubro-negro, o então lateral-direito Júnior - a lateral-esquerda era ocupada por Rodrigues Neto - que ainda era um garoto recém emergido das divisões de base, foi culpado como maior responsável, recaindo sobre ele, após o jogo, as mais pesaadas críticas.


O projeto do Santa Cruz para crescer a nível nacional começou em 1969, quando a diretoria tricolor foi ao Rio de Janeiro contratar o técnico Ivan Gradim para montar um time de jogadores jovens, com Ramón, Luciano, Cuíca, Zito Peito de Pombo, Fumanchu e Volnei, formando um time que seria penta-campeão pernambucano de 1969 até 1973. Em 1973 o time fez uma partida lendária vencendo por 3 x 2 ao Santos de Pelé. O time contava com a gerência da camisa 5 Givanildo, a frente dos zagueiros Lula Pereira e Levir Culpi, todos três futuros treinadores no futebol brasileiro. Em 1975, a campanha do Santa Cruz engrenou na 2ª Fase. O Santa Cruz venceu a Grêmio e Sport Recife, ao Palmeiras de Ademir da Guia dentro do Parque Antártica por 3 x 2, bateu ao Internacional, que viria a ser campeão, por 1 x 0 e foi buscar a vaga para a semi-final dentro do Maracanã ao meter 3 x 1 no Flamengo diante de 74 mil testemunhas nas arquibancadas, numa noite de sonhos para Ramón e para o meia Mazinho. O técnico Paulo Emílio Frossad começou a falar em título. A vaga seria decidida no Estádio do Arruda contra o Cruzeiro. A recepção do time após a vitória contra o Flamengo foi uma ótima mostra disso, uma festa de uma multidão no Aeroporto dos Guararapes.


Na semi-final, em dois jogos únicos, com os vencedores de seus grupos na 3ª Fase como mandantes, os dois visitantes venceram. O Internacional meteu 2 x 0 no Fluminense no Maracanã, e o Cruzeiro meteu 3 x 2 no Santa Cruz no Arruda. Na final, o Internacional ganhou do Cruzeiro e se sagrou pela primeira vez em sua história Campeão Brasileiro.

Aquele Santa Cruz voltaria a surpreender ao Flamengo no ano seguinte. Pela 3ª rodada do Brasileiro de 1976, os dois se enfrentariam no Estádio do Arruda, em Recife, e o tricolor pernambucano iria vencer de virada por 2 x 1, com dois gols do centroavante Nunes. Este jogo causaria a demissão do técnico Carlos Froner, e daria início à Era Cláudio Coutinho como treinador na Gávea. E cinco anos depois, em Tóquio, seria aquele mesmo Nunes que marcaria dois gols a favor do Flamengo na vitória sobre o Liverpool, que daria ao clube o título de campeão mundial.


Ficha Técnica do Jogo
04/12/1975 - Flamengo 1 x 3 Santa Cruz
Local: Maracanã (Público: 74.019 pagantes)
Gols: Ramón (26'1T), Zico (28'1T), Ramón (20'2T) e Fumanchú (42'2T)
Flamengo: Cantareli, Júnior, Jayme de Almeida, Luís Carlos Galter e Rodrigues Neto; Liminha (Édson), Tadeu Ricci e Zico; Paulinho (Doval), Luisinho Lemos e Luís Paulo.
Técnico: Carlos Froner
Santa Cruz: Jair, Carlos Alberto, Lula Pereira, Levir Culpi e Pedrinho; Givanildo de Oliveira e Carlos Alberto II; Luís Fumanchu, Mazinho (Volnei), Ramón e Pio (Alfredo).
Técnico: Paulo Emílio


Nenhum comentário:

Postar um comentário