quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Flamengo: Campeão da Copa Kirin no Japão em 1988


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:

Palco do maior momento da história do Flamengo, a conquista do Mundial Interclubes diante do Liverpool em 1981, o Estádio Nacional de Tóquio assistiu a um outro título rubro-negro assegurado com vitória sobre um clube campeão de troféu europeu. No dia 7 de junho de 1988, o Fla derrotava o Bayer Leverkusen (então detentor da Copa da UEFA) por 1 a 0, gol de Zico, e levantava a Copa Kirin, competição disputada anualmente na capital japonesa. Foi um título especial por ter sido vencido com um time que misturava garotos da base e reservas (muitos deles desconhecidos dos próprios torcedores rubro-negros), reforçado pelo Galinho – que aumentou seu prestígio em solo japonês – e alguns outros nomes experientes.

A Copa Kirin é um torneio amistoso organizado e patrocinado pela cervejaria japonesa Kirin Brewery Company desde 1978. Até a edição de 1991, misturava clubes e seleções (a do Japão era participante fixa) se enfrentando num sistema de pontos corridos antes de uma decisão entre os dois primeiros colocados. Dentro deste período, vários clubes brasileiros além do Flamengo (Palmeiras, Internacional, Santos, Fluminense e Vasco) disputaram a competição. A partir de 1992, ela foi transformada num torneio exclusivamente de seleções.

Além de representar um desvio da tradicional rota de torneios de verão europeus, a Copa Kirin tinha na estrutura e na premiação uma de suas atrações. A participação do Flamengo na edição de 1988 foi acertada em 2 de maio daquele ano. O clube receberia 35 mil dólares por partida com bônus de 10 mil, caso fosse campeão. Parece pouco, mas para a realidade econômica brasileira da época significava quase 30 milhões de cruzados. Além disso, o contrato praticamente exigia a participação de Zico – sem o qual, a cota por jogo cairia para 17 mil dólares.


Naquela altura, o Fla seguia disputando o Campeonato Estadual, então na reta final da Taça Rio e com um terceiro turno a caminho. Mesmo com o título da Copa União conquistado no fim do ano anterior e o da Taça Guanabara já no início daquela temporada, o time não conseguia levar bons públicos aos jogos do Carioca. A competição, de um modo geral, teve média bastante decepcionante. As principais causas apontadas foram a violência dentro e fora dos gramados, a crise econômica e ainda as transmissões ao vivo pela televisão, que voltaram naquele ano, pela Rede Manchete.

De modo que, para arcar com um elenco de folha salarial bastante alta como aquele, era preciso arrecadar das mais variadas formas. E o convite, financeiramente irrecusável, veio num momento providencial. Porém, sem poder interromper sua participação no Estadual, o Flamengo teve de armar um time misto bem curioso para viajar ao Japão. O elenco que embarcou tinha, além de Zico, um trio de nomes experientes: o goleiro Cantarele (então na reserva de Zé Carlos) e os zagueiros Leandro e Edinho. Junto a eles, um punhado de garotos da base, como o lateral Valmir, o zagueiro Gonçalves, os meias Jecimar e Zé Ricardo e os atacantes Gérson e Paloma.

Para completar o grupo, o Fla bateu na porta de outros clubes em busca de reforços temporários. No America, conseguiu o empréstimo do lateral-esquerdo Paulo César e do volante Delacir, além de receber de volta o ponta Márcio, que pertencia ao próprio Flamengo – o meia Renato, destaque cobiçado daquele time rubro, também viajaria em princípio, mas na última hora seu clube vetou. E do Porto Alegre, de Itaperuna, veio no mesmo esquema o ponta-esquerda Cosme, uma das revelações do time do Noroeste Fluminense naquele Estadual.


Por fim, o meia Gilmar Popoca – eterna promessa rubro-negra de meados dos anos 80 que acabou não se firmando – ganhou nova chance na Gávea, emprestado pela Ponte Preta, com quem o Fla o havia negociado no começo do ano anterior. Com esses jogadores, o time misto comandado pelo auxiliar João Carlos Costa – Carlinhos seguiria com a equipe principal – realizou alguns treinos na Gávea para ganhar algum entrosamento e embarcou para Tóquio, com uma escala em Los Angeles, na noite de 24 de maio.

Além de enfrentar as seleções do Japão, anfitriã do torneio, e da China, o principal adversário do Flamengo no torneio seria o Bayer Leverkusen, time ascendente no futebol da então Alemanha Ocidental, e que havia acabado de conquistar a Copa da UEFA (atual Liga Europa), deixando pelo caminho clubes como o Barcelona e o Werder Bremen, antes de derrotar o Espanyol na decisão. O camisa 10 do time era um velho conhecido dos rubro-negros: Tita, que havia se transferido do Vasco em setembro de 1987. Além dele, outros astros eram o polonês Andrzej Buncol, o sul-coreano Cha Bum-Kun e os alemães de seleção Ralf Falkenmayer e Herbert Waas.

Um dia depois de a equipe principal golear o Goytacaz por 6 a 0 com quatro gols de Bebeto na Gávea pela última rodada da Taça Rio, em Tóquio a equipe mista estreou enfrentando a seleção japonesa, que curiosamente por essa época usava camisas vermelhas, em vez das atuais azuis. O time entrou com Cantarele no gol, Valmir e Paulo César nas laterais, Leandro e Edinho no centro da defesa, Delacir de volante com Gilmar e Zico na armação, tendo no ataque Márcio, Paloma e Gerson (este, mais recuado ajudando o meio-campo).

O time da estreia

A vitória veio sem dificuldade: logo aos nove minutos, o lateral Paulo César recebeu lançamento de Gilmar Popoca e foi deslocado na área por um defensor, num pênalti que Zico bateu para abrir o placar. O segundo gol saiu já na etapa final, aos sete minutos. Bola de pé em pé: Zico para Gilmar, Gilmar para Márcio, e de Márcio sai o passe vertical que encontra Paulo César entrando na área. O lateral só tem o trabalho de tirar do goleiro, ampliando para 2 a 0.


Aos 20 vem o terceiro: Zico lança Valmir, que entra na área, limpa a marcação e deixa a bola para o volante Delacir, que manda um foguete para as redes. Os japoneses – que estiveram perto de disputar a Copa do Mundo no México dois anos antes, perdendo a decisão de uma das vagas para a Coreia do Sul – descontam com um belo gol de Yoshida, que ganha de Edinho na velocidade, limpa Paulo César e bate vencendo Cantarele.

De trem bala, a delegação rubro-negra viajou até Kioto para enfrentar os alemães do Bayer Leverkusen, que haviam vencido a China por 2 a 0. A partida foi disputada numa noite de quarta-feira, 1º de junho, no estádio Nishikyogoku. E o Flamengo saiu atrás no marcador, curiosamente com gol de um oriental: o sul-coreano Cha Bum-Kun, que concluiu um contra-ataque conduzido por Tita aos 21 minutos do primeiro tempo.


Mas ainda naquela etapa, aos 36, veio o empate por meio de Edinho (que cumpria excelente atuação) num chute que desviou na defesa. Outro que esteve muito bem foi Cantarele, garantindo o resultado com defesas sensacionais, entre elas uma cabeçada à queima-roupa que tinha a direção do ângulo e um chute venenoso de Tita. Na saída do estádio, os jogadores do Fla experimentaram a idolatria dos nipônicos, tendo de sair escoltados por policiais para escapar do assédio de centenas de crianças.

Destaque e autor do gol contra o Bayer Leverkusen, Edinho teria de voltar ao Rio para se juntar a time principal na disputa do terceiro turno do Estadual, com estreia marcada para o dia 4, num Fla-Flu. Em seu lugar, entraria mais um garoto da base, um certo Gonçalves. O jovem, que havia entrado durante a partida contra o Japão, formaria a zaga com Leandro para a partida contra a China, na qual um empate garantia os rubro-negros na decisão do torneio.

O jogo disputado no dia 5 de junho em Kagoshima não teve grandes emoções. O Fla abriu o placar com Gerson, que aproveitou ótimo passe de Zico no meio da defesa aos 17 minutos. Mas os chineses, que estranhamente atuaram retrancados mesmo precisando vencer, ainda chegaram ao empate no segundo tempo, numa cabeçada de Ma Lin. Com o resultado, os rubro-negros terminaram na segunda colocação e avançaram para a final contra o Bayer Leverkusen, que bateu o Japão por 1 a 0 mesmo sem contar com Tita, convalescendo de uma intoxicação alimentar.

O ex-rubro-negro também não estaria em campo contra o Flamengo na decisão do torneio, em 7 de junho, apenas dois dias depois da rodada anterior. O palco da final era o mesmo da estreia no torneio e também o mesmo em que o Flamengo derrotou o Liverpool da final do Mundial Interclubes em 1981: o Estádio Nacional de Tóquio. E de novo o Fla levantou a taça, graças a um gol de Zico, aos dez minutos de etapa final.


O lance nasceu de um passe de Zico para Márcio, que chutou na trave. A bola correu por toda a extensão da pequena área até sobrar para Paloma, que cruzou da linha de fundo. A zaga tentou afastar de cabeça, mas o Galinho rebateu também em cabeceio, encobrindo o goleiro Vollborn. Jogador mais determinado do time na partida, o camisa 10 vibrou muito na comemoração. Porém, nos minutos finais, ao tentar um pique para alcançar uma bola longa de bola de Cantarele, o capitão rubro-negro sentiu a coxa e teve de deixar o campo.

O Flamengo ditou o ritmo da partida e fez o público japonês vibrar com suas jogadas de efeito contra os atarantados alemães. Tão perdido estava o Bayer que, em certa altura, após levar um drible desmoralizante de Leandro, o atacante Klaus Täuber acertou um soco no queixo do zagueiro rubro-negro, provocando um pequeno corte no local. Mesmo assim, o Fla não se intimidou, vencendo na bola e na garra: “Os alemães tentaram se impor pela força, mas não conseguiram. O Flamengo foi um time valente durante os 90 minutos”, exaltou o técnico João Carlos Costa.

Se reforçou o prestígio do Flamengo e de Zico no Japão e foi um dos últimos títulos das carreiras de Leandro e Cantarele, além do derradeiro de Edinho pelo Flamengo, a Copa Kirin também marcou o ponto alto da passagem dos demais jogadores daquele time misto pelo Fla. Foi uma ocasião inesquecível para os garotos que se juntaram ao quarteto experiente, mas também uma alegria efêmera vestindo rubro-negro, já que, dentro de pouco tempo, eles não estariam mais nos planos do clube, segundo suas carreiras em outras equipes.


Os reforços que pertenciam ao América acabaram sendo contratados, mas não chegaram a se firmar: Delacir foi titular do time no Campeonato Brasileiro de 1988 no lugar de Andrade (vendido à Roma), mas logo no início do ano seguinte seguiria para o São José, defendendo também o Bahia, mais tarde. Paulo César, por sua vez, ficaria um pouco mais, saindo apenas em meados de 1989, após o Estadual, negociado com o Cruzeiro. Já o meia-atacante Márcio seguiria integrado ao elenco rubro-negro pelo restante daquele ano, mas teria raras chances na equipe, sendo emprestado ao Ceará no ano seguinte e defendendo ainda o Fluminense, em 1991.

Os garotos “prata da casa” campeões no Japão também rodariam bastante depois de deixarem o Fla – o que não demorou muito para acontecer. Ainda naquele ano, Valmir, Paloma e Gerson seguiriam para o America, participando da última campanha do time rubro na elite do Brasileiro. Posteriormente, o lateral defenderia times como Bragantino, Portuguesa, Grêmio e Atlético-MG (chegando a ser vice brasileiro em 1996 pela Lusa e 1999 pelo Galo), enquanto o atacante mais tarde se tornaria ídolo em outro América, o de Natal, e o meia passaria pelo futebol goiano.

O zagueiro Gonçalves ganharia mais espaço no time em 1989, mas cairia em desgraça ao marcar um gol contra a favor do Botafogo num jogo em que o Fla vencia por 3 a 1 e terminou empatado em 3 a 3 pela Taça Rio daquele ano. Por coincidência, seria negociado com o próprio Alvinegro logo depois do Estadual, tornando-se um ídolo da torcida do rival. Sem mais chances na Gávea, Gilmar Popoca também defenderia o Botafogo, mas já em 1988, no Brasileiro. E pelas temporadas seguintes, continuaria rodando, passando por clubes como Santos, São Paulo e Vitória.

O Fla que derrotou o Bayer Leverkusen na decisão em Tóquio e levantou a Copa Kirin de 1988. Em pé: Leandro, Delacir, Valmir, Gonçalves, Paulo César e Cantarele. Agachados: Márcio, Gerson, Paloma, Zico e Gilmar Popoca.

Zico ergue a Copa Kirin no Japão

Curiosamente, na volta do Japão o Flamengo acabaria contratando em definitivo o meia Renato, de quem o America havia negado o empréstimo anteriormente. Chegando à Gávea no mesmo momento em que seu xará gaúcho também trocava o Fla pela Roma, Renato receberia o complemento “Carioca” para ser diferenciado do ponteiro e, como ele, formaria uma boa dupla com Bebeto, na virada de 1988 para 1989. Ainda seria o responsável por outra vitória memorável do Flamengo derrotando um grande clube europeu em um torneio internacional. Mas essa é uma outra história, a ser resgatada em breve.





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