Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:
Uma das mais belas e impressionantes taças conquistadas pelo Flamengo em sua história, o Troféu Mohamed V foi levantado há exatos 50 anos em Casablanca, no Marrocos, com uma vitória de grande peso: para ficar com ele, os rubro-negros precisaram derrotar na decisão, num jogo intensamente disputado, os argentinos do Racing, que na época ostentavam nada menos que o título de campeões mundiais interclubes.
O troféu vencido pelo Fla foi disputado anualmente (com poucas interrupções) entre 1962 e 1980, retornando sob o nome de Torneio de Casablanca para mais três derradeiras edições em 1986, 1988 e 1989. Era batizado em homenagem ao monarca marroquino que negociara com os franceses a independência do país em 1956 e que falecera um ano antes da criação da competição. Dentre os famosos torneios de verão realizados continuamente no hemisfério norte, tinha o diferencial de ser o único no continente africano.
Ao longo de sua história, contou com a participação de gigantes do futebol mundial, como Real Madrid, Barcelona, Atlético de Madrid, Bayern de Munique, Inter de Milão, Boca Juniors e Peñarol, o que evidencia seu prestígio. Quatro clubes brasileiros fazem parte deste seleto grupo: Flamengo, São Paulo, Internacional e Grêmio. Porém, só os rubro-negros tiveram a honra de levantar a enorme e imponente taça oferecida.
O torneio concluiria a rota da excursão internacional iniciada pelo Flamengo em meados de agosto de 1968. A primeira parada havia sido na Espanha, onde o clube disputou o Troféu Joan Gamper, promovido pelo Barcelona no estádio Camp Nou. Depois de derrotar o Athletic Bilbao na semifinal por 1 a 0 com um gol de bicicleta do atacante Silva “Batuta”, os rubro-negros acabaram derrotados pelos donos da casa por 5 a 4 num jogo maluco.
Em seguida, a delegação seguiu para La Coruña, onde participou da primeira edição do Torneio Conde de Fenosa, disputando apenas uma partida, uma derrota de 2 a 0 para o Racing argentino. De lá, os rubro-negros cruzaram a fronteira portuguesa e foram para Lisboa, onde tiveram como adversário o tradicional Belenenses, no estádio do Restelo, em jogo válido pelo troféu de mesmo nome. A taça foi arrematada para a Gávea com uma vitória por 3 a 2.
Comandado pelo baiano Válter Miraglia, ex-meio-campo do time nos anos 40 e 50 e ex-técnico da base, o Flamengo chegou ao Marrocos para a disputa do último troféu com dois desfalques: o zagueiro uruguaio Manicera tinha um estiramento muscular no adutor esquerdo, enquanto o ponta-de-lança Fio estava vetado por uma fissura no dedo mínimo do pé esquerdo. Assim, o esforçado Guilherme, ex-Campo Grande, entrava na zaga e o meio-campo paraguaio Reyes era improvisado numa posição mais avançada, encostando nos atacantes.
De resto, o time escalado para a partida de estreia contra o time marroquino do FAR Rabat incluía o goleiro Marco Aurélio, os históricos laterais Murilo e Paulo Henrique, o quarto-zagueiro baiano Onça, o clássico volante Carlinhos “Violino” e o dínamo Liminha no meio, o ponta-direita Néviton, também baiano, o camisa 10 Silva “Batuta” e o jovem curinga Rodrigues Neto, então na ponta-esquerda, ajudando a compor o meio-campo.
Além de ter a torcida local a seu favor no Estádio Marcel Cerdan, o time do FAR (sigla para Real Força Aérea) contava com vários jogadores que integrariam a seleção marroquina a qual disputaria a Copa do Mundo do México dali a menos de dois anos: o goleiro Allal Ben Kassou, os defensores Lamrani, Fadili e Benkhrif, os meias Maaroufi e Bamous e o atacante El Khiati. E atuaria diante do rei do Marrocos, Hassan II, filho de Mohammed V.
O Flamengo, no entanto, é que abriria o placar com Liminha aos 15 minutos. O FAR reagiria, mostrando um futebol veloz e aguerrido, empatando aos 34 minutos com Maaroufi e criando chances para virar o placar. O Fla conseguiu se segurar e voltou mais objetivo para a etapa final. Pressionou durante quase todo o segundo tempo a defesa local, mas só conseguiu marcar o gol da classificação aos 40 minutos, com Silva.
Antes disso, no entanto, a influência de Hassan II já havia interferido no andamento da partida, num lance curioso. Com o placar em 1 a 1, a bola saiu pela lateral num ataque do Flamengo, sendo devolvida por um jogador do banco de reservas rubro-negro a Paulo Henrique antes da chegada do gandula. Silva recebeu a cobrança rápida, driblou seu marcador e chutou da quina da área, vencendo o goleiro.
Mas o rei não concordou e obrigou o árbitro (também marroquino) a anular o lance, no que surpreendentemente foi atendido. Quando a nova saída estava para ser dada, o juiz foi avisado do desagrado do monarca e invalidou o lance, voltando atrás e apontando tiro de meta para o FAR. Mas não adiantou: no fim, a vitória acabou mesmo com o Fla. E o adversário na decisão seria o Racing, que bateu o Saint Étienne por 1 a 0, gol de Salomone, na outra semifinal.
Na decisão, duelo contra o time argentino que era a grande estrela do torneio. E não era para menos: tratava-se do campeão da Taça Libertadores da América do ano anterior e, na ocasião, ainda detentor do título mundial interclubes, quando derrotou numa decisão em três jogos a lendária equipe do Celtic, da Escócia, campeã europeia. A equipe dirigida por Juan José Pizzutti também chegava aclamada pelos resultados obtidos e pelo futebol de primeira linha apresentado em sua excursão.
No elenco racinguista, nomes históricos do futebol argentino, como o goleiro Agustín Cejas, os meias Juan Carlos Rulli e Enrique “Quique” Wolff e o atacante Humberto Maschio, além de outros que marcaram época no clube, como os atacantes Jaime Martinolli, Juan Carlos Cárdenas e Roberto Salomone. Um time experiente e bastante técnico, um legítimo campeão do mundo.
Em relação ao time que venceu o FAR, o Flamengo apresentou algumas mudanças, justificadas em parte pelo cansaço da maratona da excursão. Claudinei entrou no gol no posto de Marco Aurélio. No meio, Cardosinho – armador trazido do interior paulista junto com Liminha – ganhava uma chance ao lado de seu antigo colega, na vaga de Carlinhos. Na frente, o habilidoso ponta-de-lança Luís Cláudio, ex-Santos, e o atacante Diogo, ex-Prudentina, substituíam Néviton e Reyes.
Mesmo com alguns jogadores mais descansados, o Fla logo viu o Racing tomar conta do jogo e abrir o placar aos cinco minutos, com Marcos Cominelli arrematando um centro de Cárdenas. Ao longo da primeira etapa, aos poucos os rubro-negros conseguiram se recolocar na partida e foram premiados com o empate um minuto antes do intervalo: Cejas saiu em falso em um cruzamento, e Luís Cláudio chutou para o gol vazio, igualando o marcador.
O jogo recomeçou equilibrado na etapa final, mas aos 23 minutos o Fla passou à frente num chute de Liminha que surpreendeu Cejas. Com o Racing tonto, Silva ampliou aos 30 em grande jogada individual, passando por dois defensores antes de finalizar. O time argentino só conseguiu se reorganizar já perto do fim do jogo e descontou aos 40 com o ponteiro Salomone. Mas os rubro-negros seguraram a vantagem e confirmaram o triunfo sobre os campeões mundiais, que valeu também como o troco da derrota em La Coruña.
Ao fim do jogo, o rei Hassan II desceu das tribunas para entregar a taça ao capitão Paulo Henrique, que recebeu o troféu sob aplausos entusiasmados do público marroquino e enquanto uma banda marcial entrava em campo tocando um tema comemorativo da conquista. A delegação rubro-negra retornou ao Rio dois dias depois, recepcionada pela torcida no aeroporto do Galeão e exibindo a enorme taça, trabalhada em ouro e prata. Uma taça digna do feito de derrotar um campeão do mundo.
Silva com a taça no desembarque no Aeroporto do Galeão
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