segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Flamengo: Campeão do Troféu Palma de Mallorca em 1978


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:

Fosse outro clube, talvez tivesse sucumbido, amarelado, até tirado seu time de campo. Eram oito contra 11, ou contra 12, se contarmos Vossa Senhoria, mais um do lado adversário. Oito que conseguiram segurar, com garra fora do comum, uma vitória épica construída com brilhantismo na primeira etapa, o que até a imprensa local reconheceu e saudou. Uma vitória daquelas que merecem ser contadas e recontadas, geração após geração.

Há 40 anos, em 19 de agosto de 1978, mesmo desfalcado de Zico, o Flamengo vencia um dos jogos mais memoráveis de sua história, ao bater o poderoso Real Madrid por 2 a 1 na Espanha – num jogo em que teve três jogadores, o técnico Cláudio Coutinho e todo o banco de reservas expulsos por uma arbitragem absurdamente caseira – e levantar o Troféu Ciutat de Palma, em Mallorca.

Em meados de 1978, o Flamengo vivia um impasse. Embora contasse com o mais novo superastro do futebol brasileiro, Zico, não levantava um troféu de grande relevância desde dezembro de 1974, quando conquistara o Campeonato Carioca. A Frente Ampla pelo Flamengo (FAF), grupo político que ganhara as eleições no fim de 1976 alçando Márcio Braga à presidência, prometia revolucionar o clube, mas ainda não havia convertido seu modelo de administração em títulos.

As duas últimas ocasiões em que o time andou perto de levantar um troféu haviam sido perdidas em jogos extras decididos de maneira dramática nos pênaltis diante do Vasco: a Taça Guanabara de 1976 e o segundo turno do Campeonato Carioca de 1977 – que teria colocado os rubro-negros na decisão da competição diante dos cruzmaltinos. No Brasileiro de 1977, depois de fazer boa campanha nas duas primeiras fases, o desempenho caiu vertiginosamente na terceira. Mas na edição seguinte da competição, logo na sequência, os resultados seriam ainda piores.

Sem poder contar com Zico nem com o lateral-direito Toninho, cedidos para a Seleção Brasileira que se preparava para disputar a Copa do Mundo da Argentina, e também sem o técnico “titular” Cláudio Coutinho (de licença, pelo mesmo motivo), o Flamengo fez um Brasileiro de 1978 decepcionante, bem abaixo da expectativa, ficando apenas em 16º lugar entre os 74 participantes do mastodôntico campeonato. E uma das evidências apresentadas por aquela campanha irregular era a de que o elenco precisava ser fortalecido.

Não em quantidade: o treinador Joubert, ex-defensor rubro-negro nos anos 50 e 60, utilizara nada menos que 28 jogadores, quase três times inteiros, ao longo do torneio. A questão era a qualidade: além de inchado, o elenco era sensivelmente desnivelado, onde se misturavam jogadores de verdadeiro talento (feitos em casa ou trazidos de fora, como Carpegiani e Cláudio Adão) com outros que simplesmente não estavam à altura de defender o Flamengo.

Encerrada a Copa do Mundo e a participação do Flamengo no Brasileiro, Coutinho retornou ao comando da equipe rubro-negra com uma reputação a reconstruir. Uma faxina no elenco levou mais de uma dezena de jogadores a serem negociados, emprestados ou devolvidos à base. E reforços pontuais foram trazidos. Um deles, o veterano goleiro cruzeirense Raul, surpreendido com o anúncio da própria contratação, mas convencido diante da perspectiva imediata de embarcar para uma excursão europeia, na qual o clube disputaria alguns torneios de verão.

Dias depois de derrotar o Atlético-MG por 2 a 0 em amistoso no Mineirão, o time rubro-negro viajou para a Espanha levando quase todo o seu elenco para o segundo semestre, incluindo os novos contratados. Do próprio Galo vieram o meia Cléber e o atacante Marcinho. Do Cruzeiro, além de Raul, também aportaram os atacantes Tião e Eli Carlos (com o ponteiro Júnior Brasília seguindo para a Raposa). Do Bahia, chegou o meia Alberto Leguelé, trocado pelo volante Merica. Para a zaga, vieram Manguito, revelação do Olaria no Carioca do ano anterior, e o experiente Moisés, o “Xerife”, que retornava para sua segunda passagem pela Gávea, dez anos depois.

Ainda se recuperando de um estiramento sofrido durante a Copa, Zico ficou no Rio. Não participaria dos três torneios que o Fla disputaria na Europa – e em dois dos quais, curiosamente, enfrentaria rivais cariocas. Pelo Troféu Teresa Herrera, em La Coruña, venceria o Fluminense nos pênaltis após empate sem gols, no jogo que marcaria a estreia de Raul pelo clube. E pelo Torneio de Milão, o último da excursão, derrotaria o Botafogo por 2 a 0 no estádio San Siro. Entre os dois, haveria o Troféu Ciutat de Palma, realizado na cidade de Palma de Mallorca, nas Ilhas Baleares, costa leste espanhola, em 18 e 19 de agosto.

Quatro equipes participavam daquela décima edição do torneio: o Rayo Vallecano – pequeno clube de Madrid promovido pela primeira vez à elite espanhola no ano anterior – e o RDWM (sigla para Racing White Daring Molenbeek) belga eram tidos como figurantes. O confronto que se aguardava para a decisão seria entre o Flamengo e o Real Madrid, detentor do título espanhol daquele ano com uma campanha espetacular: seis pontos à frente do vice Barcelona, o qual havia derrotado nos dois confrontos da liga (4 a 0 no Santiago Bernabéu e 3 a 2 no Camp Nou).

Nas semifinais, deu a lógica: em duas vitórias de virada, Fla e Real Madrid bateram Rayo Vallecano e o Molenbeek por 2 a 1 e 3 a 2, respectivamente, avançando para a final a ser jogada no dia seguinte, no estádio Lluís Sitjar. O time rubro-negro apresentou algumas alterações: Nélson entrou na zaga no lugar do improvisado Ramírez, Cléber ganhou a vaga do volante Jorge Luís no meio e Tita retornou à ponta-direita no lugar de Tião. Os demais titulares foram os mesmos da semifinal: Raul no gol, Toninho e Júnior nas laterais, Manguito na zaga, Carpegiani e Adílio no meio e Eli Carlos e Cláudio Adão na frente.

Além de seus três astros estrangeiros (o volante argentino Enrique “Quique” Wolff, o armador alemão Ulrich “Uli” Stielike e o ponta dinamarquês Henning Jensen), o Real Madrid dirigido por Luís Molowny contava com vários espanhóis tarimbados e de seleção, como o goleiro Miguel Ángel, os defensores Sol, San José e o veterano Pirri, o meia Vicente Del Bosque e o atacante Juanito. Mas o principal adversário rubro-negro não seria nenhum jogador merengue, e sim o árbitro Jesús Ausocúa Sanz, 43 anos, natural de Valladolid e que apitou na elite espanhola entre 1976 e 1982.

A péssima atuação do juiz começou a ser notada logo aos sete minutos de jogo, quando Cléber recebeu lançamento em boa posição para marcar, mas Ausocúa Sanz apitou impedimento inexistente. Dois minutos depois, no entanto, ele não teve como anular a jogada do primeiro gol rubro-negro: Toninho recebeu de Tita e fez a jogada de ultrapassagem até a linha de fundo. De lá mesmo, cruzou forte para Cláudio Adão, que chutou para a defesa parcial de Miguel Ángel e pegou o rebote para estufar as redes.

Aos poucos, o Fla foi consolidando seu amplo domínio na partida e criou duas ótimas chances para ampliar o marcador aos 17, com Adílio e Tita. O Real, confuso, só chegou pela primeira vez com perigo aos 20 minutos graças à intervenção do árbitro: Jensen engatilhou uma bicicleta dentro da área rubro-negra e quase atingiu a cabeça de Manguito. Inexplicavelmente, Ausocúa Sanz assinalou tiro livre indireto contra o Fla, cobrado por Pirri por cima do gol.

Aos 37, pouco depois de Eli Carlos perder mais uma ótima oportunidade, Cléber ampliou para o Flamengo, apanhando rebote da defesa e chutando sem chances para Miguel Ángel. E só aos 40 o Real voltou a ameaçar, com Jensen exigindo grande defesa de Raul. A sensação, no entanto, era a de que o placar estava até barato para os merengues quando a partida foi para o intervalo, tal era a superioridade rubro-negra em todas as ações e todos os setores do campo.

Na crônica da partida escrita por José Damian González para o jornal madrilenho El País (que pode ser lida na íntegra aqui), a fantástica atuação rubro-negra na primeira etapa é destacada com palavras fortes: “O Flamengo, no primeiro tempo, havia oferecido uma bela lição de futebol (…). O virtuosismo dos jogadores do Flamengo provocou o mais claro ridículo dos brancos [madridistas]. A equipe de Coutinho mal deixou a de Molowny tocar na bola”, disse o texto, antes de passar a comentar a atuação do árbitro.

No intervalo, satisfeito com a exibição até ali, o treinador rubro-negro preparava a estratégia para a etapa final: “Estou com três jogadores descansados no banco. Prontinhos para entrar. Não mudarei o esquema. Vamos continuar marcando sob pressão e aumentar a cautela na defesa. Nossas jogadas de ataque estão surtindo efeito, mas é preciso não esquecer que o time do Real Madrid é perigoso. Toca a bola com maestria e, quando vai à frente, cria problemas”, observou Coutinho.

O técnico não contava, no entanto, com uma mudança radical no panorama da partida levada a cabo pelo senhor Ausocúa Sanz no segundo tempo. Com o Real Madrid partindo para uma pressão desordenada na etapa final, Aguilar foi lançado na área aos 12 minutos e Raul saiu para fazer a defesa aos seus pés. Mas o atacante merengue caiu, e o árbitro aproveitou a deixa para apitar um pênalti para lá de discutível. Eli Carlos reclamou da marcação e foi expulso. Aguillar cobrou a penalidade e descontou para os madridistas.

O Flamengo recuou para segurar o resultado, e o árbitro continuou a inverter faltas e distribuir cartões amarelos para os jogadores rubro-negros: Manguito, Júnior, Tita e Cláudio Adão foram punidos quase em sequência. Aos 18, Toninho bateu falta perto da área do Real, a bola desviou na barreira e saiu para escanteio. Ausocúa Sanz marcou tiro de meta. O lateral rubro-negro reclamou e também foi expulso de campo.

Para recompor a defesa, Tita foi substituído pelo lateral uruguaio Ramírez, mas esta foi a única alteração que Coutinho pôde fazer das três que programara. Aos 27 minutos, Cléber sofreu falta não marcada no campo de ataque, protestou e também recebeu o cartão vermelho. Revoltados, o treinador e todo o banco do Flamengo ameaçaram entrar em campo. Todos foram expulsos. O papelão do árbitro foi tão vergonhoso que a própria torcida local, que de início torcia para o Real Madrid, passou a apoiar furiosamente pelo Flamengo.

Com a má intenção do árbitro já escancarada inclusive para o público, o time rubro-negro passou a dar chutões para todos os lados e evitar choques e contatos com os adversários. Àquela altura, apenas Raul, Ramírez, Manguito, Nélson, Júnior, Carpegiani, Adílio e Cláudio Adão estavam em campo pelo Fla. Mesmo assim, o inoperante Real Madrid pressionava sem levar perigo. O árbitro então lançou mão de sua última cartada: sob o pretexto de descontar o tempo de paralisação pelos protestos do Fla, estendeu o jogo até os 50 minutos, algo incomum para a época.

Depois de jogar 23 minutos com três homens a menos e sem poder fazer substituições, o Flamengo assegurou a vitória – e o título – na última volta do ponteiro: Juanito apareceu sozinho no meio da defesa e, com um leve toque, encobriu Raul. O estádio Lluis Sitjar prendeu a respiração. Até Cláudio Adão aparecer de maneira providencial para afastar a bola com uma cabeçada em cima da linha. Depois disso, só restava a Ausocúa Sanz apitar o fim do jogo – ou jogar a toalha, se preferisse. Nada nem ninguém tiraria a vitória do Flamengo naquele dia em Palma de Mallorca.

Manchete do jornal espanhol El Mundo Deportivo 

Aplaudido de pé pelos cerca de 20 mil torcedores, o Fla recebeu o troféu e partiu para a volta olímpica, enquanto o árbitro saía à francesa e sob vaias. Aquela vitória diante de um time daquele porte e naquelas condições criou a certeza de que coisas boas viriam para o Flamengo a partir daquele segundo semestre de 1978. Ou alguém ainda duvidaria?



E no Brasil o destaque dado pela capa do Jornal dos Sports:






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