Jogos Inesquecíveis: 29/05/1949 - Flamengo 3 x 1 Arsenal
Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:
Campeão mundial em cima do Liverpool, o Flamengo tem em sua história outra famosa vitória sobre uma equipe inglesa. Em 29 de maio de 1949, os rubro-negros batiam o badalado Arsenal por um inapelável 3 a 1, no amistoso em São Januário que fez parte da excursão do time londrino pelo Brasil. Com atuação magistral do meia Jair da Rosa Pinto, foi uma lição de futebol, um momento de brilho perene dentro de uma época difícil do clube.
O período que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial marcou um momento em que as distâncias no mundo foram encurtadas, o que também se refletiu no futebol. Com a evolução da aviação civil, os jogos internacionais entre clubes e seleções se tornaram mais frequentes, tanto dentro dos continentes quanto até mesmo cruzando o Atlântico. E a escolha do Brasil como país-sede da Copa do Mundo de 1950 atiçou a curiosidade europeia sobre a bola jogada aqui.
Nesta época, a virada da década de 1940 para a de 1950, era comum receber a visita de equipes como o Malmö sueco ou o Rapid Viena austríaco. Mas quem mais recebia atenção e admiração eram mesmo os clubes ingleses, que voltavam a atuar no país após algumas décadas. Então fora da Fifa, a Inglaterra se colocava à margem da Copa do Mundo, o que só aumentava a mitificação em torno do jogo que vinha sendo praticado por seus inventores.
OS GUNNERS ENTRE NÓS
O primeiro a vir foi o Southampton, na época um clube da segunda divisão inglesa, em meados de 1948. No ano seguinte foi a vez dos londrinos do Arsenal, equipe de mais fama e prestígio e com melhores credenciais. Havia vencido seu sexto título inglês na temporada 1947/48, com sete pontos de vantagem para o segundo colocado Manchester United, e na campanha seguinte terminara na quinta colocação (a taça foi levantada pelo Portsmouth).
A vinda do Arsenal ao Brasil, a convite do Botafogo, ficou acertada no fim de março. Em princípio, seriam apenas três partidas, todas no Rio, enfrentando os alvinegros, o Vasco (que cederia o estádio de São Januário) e um terceiro clube, Flamengo ou Fluminense. O contrato foi assinado em 22 de abril, com os ingleses (que haviam recusado propostas de outros países) recebendo 48 mil libras de garantia. A delegação viajaria de avião, dividida em dois voos.
Conforme as conversas foram se encaminhando, as datas no Rio aumentaram para quatro (agora Fla e Flu enfrentariam os londrinos), sendo incluídos jogos em São Paulo, contra o Trio de Ferro da capital paulista. A primeira parte da delegação do Arsenal chegou ao Rio no dia 10 de maio, e a segunda no dia 12. Entre aqueles dois dias, a Seleção Brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano (atual Copa América), também disputado na capital carioca.
Entre os destaques do escrete campeão dirigido por Flávio Costa, dois rubro-negros: os meias Zizinho e Jair Rosa Pinto. O primeiro, porém, não enfrentaria o Arsenal: precisaria operar de uma apendicite logo após o Sul-Americano, desfalcando o Fla por cerca de um mês. No time paraguaio, que havia obtido um excelente vice-campeonato, o grande nome havia sido o arrojado goleiro Sinforiano García, do Cerro Porteño, e cobiçado pelo Flamengo.
O MOMENTO DO FLAMENGO
García havia sido feito partida excepcional na surpreendente vitória do Paraguai – dirigido por outro nome que mais tarde faria história na Gávea, Manuel Fleitas Solich – sobre o Brasil em pleno estádio de São Januário por 2 a 1, resultado que forçou um jogo extra para decidir o título. E mesmo na goleada aplicada pelos favoritos brasileiros na revanche (7 a 0), ele salvara sua equipe de uma derrota ainda maior. Era apontado como o melhor arqueiro do torneio. O paraguaio García, estreante daquela tarde, faria história no Flamengo.
Entre o pedido inicial de valor equivalente a 300 mil cruzeiros do Cerro Porteño pelo passe do goleiro, a viagem do dirigente rubro-negro Francisco Abreu a Assunção para tratar da negociação e a chegada de García à Gávea, passaram-se menos de duas semanas. O paraguaio aportava a tempo de enfrentar o Arsenal e com a missão de solucionar os problemas no gol rubro-negro vindos desde a saída do veterano Jurandyr, titular do tri carioca em 1942-43-44.
Titular entre 1945 e 1948, Luiz Borracha alternara grandes momentos com falhas clamorosas e acabou sendo negociado com o Bangu em março de 1949. O reserva Doly foi promovido, mas também não mostrou estar preparado, sofrendo muitos gols nos amistosos de pré-temporada disputados pelo Flamengo (especialmente numa vitória por 6 a 5 diante dos alvirrubros). García, por outro lado, chegava com a experiência de 20 partidas pela seleção de seu país.
O Flamengo também tinha outras novidades para a temporada 1949, na qual tentaria reverter o acentuado declínio técnico em que vinha desde a conquista do tri carioca. Um era o zagueiro Juvenal, vindo do Cruzeiro de Porto Alegre e já cotado para a Seleção. Outro seria um nome que se estabeleceria no time por muitos anos e no início da década seguinte se tornaria seu capitão: o ponteiro Esquerdinha, vindo do Olaria junto com o médio Válter.
O detalhe curioso sobre aquela equipe rubro-negra dizia respeito a seu comandante, que havia feito fama e se tornaria uma lenda como treinador… de basquete: tratava-se do paraibano Togo Renan Soares, o Kanela, técnico do time do Flamengo que conquistaria 12 das 13 edições do campeonato carioca da modalidade entre 1948 e 1960 e que levaria a seleção brasileira de bola ao cesto ao bicampeonato mundial em 1959 e 1963.
Kanela vinha dirigindo o time do Flamengo desde as últimas rodadas do campeonato carioca de 1948, quando substituíra o demitido José Ferreira Lemos, o “Juca da Praia”, ex-jogador e dirigente do Botafogo, ex-árbitro da liga carioca e ex-técnico do America e do Bangu. Naquela temporada de 1949, o Fla havia disputado somente amistosos contra os adversários mais variados, obtendo 12 vitórias, três empates e apenas uma derrota, um bom retrospecto.
COMEÇA A EXCURSÃO
A estreia do Arsenal em gramados brasileiros não poderia ter sido melhor para os ingleses: no domingo, 15 de maio, os Gunners golearam o Fluminense de Castilho, Carlyle e Orlando “Pingo de Ouro” por 5 a 1 em São Januário. Seria a vitória mais enfática conquistada pelos londrinos na excursão. Em seguida, o time viajaria à capital paulista, onde empataria com o Palmeiras em 1 a 1 na quarta e venceria o Corinthians por 2 a 0 no domingo jogando no Pacaembu.
A primeira derrota dos londrinos viria na outra quarta-feira, num jogo noturno – algo ao qual os ingleses não estavam acostumados, já que os refletores só chegariam à maioria dos estádios britânicos apenas na década seguinte – contra o Vasco, que embora contasse com um grande time, precisou jogar em seu limite e contar com uma boa dose de sorte (algumas bolas dos Gunners acertaram a trave de Barbosa no segundo tempo) para vencer por 1 a 0.
Querendo recuperar seu prestígio, os ingleses entraram em campo mordidos para enfrentar o Flamengo no domingo seguinte, dia 29. Tom Whittaker, técnico dos Gunners, só fez uma troca no time em relação ao jogo com o Vasco, dando chance ao novato centroavante Peter Goring no lugar de Ronnie Rooke (que deixaria o clube após a excursão). De resto, era a mesma equipe, cujos destaques eram o goleiro George Swindin e o ponta-direita Ian McPherson.
OS RUBRO-NEGROS SE ARMAM
O Flamengo, por sua vez, promovia a estreia de García no gol. E, de acordo com o esquema WM comum na época (uma espécie de 3-2-2-3), a linha de defesa trazia Juvenal no miolo de zaga, com o veterano Biguá – um dos remanescentes do time tricampeão carioca – na lateral-direita e o novato Job, promovido da base, pelo lado esquerdo. No meio, outro veterano, o paraguaio Bria, fazia dupla com Beto, que ganhava o lugar do antigo capitão Jayme de Almeida.
A linha ofensiva trazia dois pontas-de-lança: o sergipano Gringo, de apenas 22 anos, e Jair Rosa Pinto, o craque Jajá de Barra Mansa, referência técnica daquele time, especialmente na ausência de Zizinho. Revelado pelo Madureira no fim da década de 30, clube pelo qual chegou à Seleção Brasileira, transferiu-se para o Vasco em 1943 junto com os companheiros de ataque Lelé e Isaías. Quatro anos depois, aportava na Gávea como reforço de peso.
Nas pontas, o gaúcho Luisinho, outro vindo do Cruzeiro de Porto Alegre (e que mais tarde faria história no Internacional) atuava pela direita, enquanto o já citado Esquerdinha atuava na outra faixa. Pelo meio, no comando do ataque, jogava Durval, centroavante trazido do Madureira no início de 1948 e que marcou impressionantes 123 gols em 131 jogos pelo Flamengo, mas acabou esquecido por ter atuado num período ruim do clube.
O JOGO
A prova de que o Arsenal jogaria para reabilitar seu prestígio diante do público carioca (e brasileiro) veio com a abertura do placar contra o Flamengo logo aos 50 segundos de jogo. Pouco depois do apito inicial, o médio Macaulay abriu na direita para Logie, que cruzou alto. Goring, sozinho, cabeceou sem defesa para García. A impressão era a de que uma nova goleada inglesa, semelhante à aplicada diante do Fluminense, consumaria-se em São Januário.
O estádio abarrotado de gente, entretanto, não demoraria a comemorar um gol rubro-negro. Depois de se desencontrar por um tempo após sofrer o gol de saída, o Flamengo teve uma falta do zagueiro Smith em Durval marcada a seu favor aos oito minutos, a uma certa distância da grande área. O goleirão Swindin armou a barreira, sete homenzarrões do Arsenal, jogou o boné para dentro do gol e firmou a vista, à espreita do chute do mirrado Jair Rosa Pinto.
A cobrança saiu forte, com curva, contornando a barreira pelo lado direito. Mas quando se esperava que ela viesse para as mãos do arqueiro dos Gunners, era surpreendentemente fez outra curva, tomando o rumo das redes enquanto Swindin, estático, preparando-se para o salto que não daria, apenas observava. Enquanto os vascaínos das sociais de São Januário se calavam, a torcida rubro-negra que abarrotara o estádio era a imagem do êxtase.
Foi a vez do Arsenal se desarvorar e perder a tranquilidade que não recuperaria mais ao longo da partida. E a virada rubro-negra chegaria no início da etapa final, depois de Jair Rosa Pinto fazer um carnaval na defesa inglesa: driblou Daniels e Barnes, antes de chutar forte, sem chances para Swindin. Foi a senha para o time londrino perder também a esportividade: logo, o meia Bryan Jones deu um carrinho em García após o goleiro fazer uma defesa.
Prontamente a confusão se instaurou: Biguá revidou de imediato, a guarda civil entrou em campo distribuindo golpes de cassetete e a briga só acabou cinco minutos depois, com a chegada da Polícia Especial e a retirada de Jones de campo, substituído. As trocas de jogadores durante a partida, aliás, foram outro sinal da desorganização do Arsenal naquela tarde: Tom Whittaker quase não havia mexido no time nos outros jogos. Neste, fez cinco mudanças.
Na metade do segundo tempo, os ingleses tentaram empatar na base do abafa. Foi então que García, recuperado da entrada de Jones, praticou algumas defesas espetaculares, como num chute à queima-roupa de Lishman. O Flamengo descansa alguns titulares: o veterano Jayme de Almeida entra no lugar de Beto para retomar o controle do meio-campo, o impetuoso atacante Bodinho entra na ponta-direita, enquanto Luís Rosa substitui Gringo.
E aos 35, depois de ter tido um pênalti de Barnes em Esquerdinha ignorado por Mário Vianna, o Fla fechou o placar num contragolpe: Luís Rosa lançou Durval, que arrancou e teve calma para chutar forte, de peito de pé, e vencer Swindin, decretando o triunfo histórico, a derrota mais contundente e categórica imposta aos ingleses em sua visita ao Brasil, a “apoteose gloriosa do futebol nacional”, como publicou a revista Esporte Ilustrado em sua crônica da partida.
DEPOIS DA GRANDE VITÓRIA
O Arsenal ainda faria mais duas partidas antes de encerrar a excursão: empataria em 2 a 2 com o Botafogo, campeão carioca no ano anterior, num jogo considerado tecnicamente fraco pelos observadores. E voltaria à capital paulista para ser derrotado pelo São Paulo por 1 a 0, antes de regressar a Londres. Na temporada que se seguiria, os Gunners venceriam a prestigiosa Copa da Inglaterra, batendo o Liverpool por 2 a 0 no estádio de Wembley.
O renascimento rubro-negro que se julgou acontecer com o triunfo sobre os ingleses, porém, durou pouco. O Flamengo novamente andou longe de brigar pelo título carioca, terminando em terceiro lugar. O próprio Jair Rosa Pinto teve vida curta no clube dali em diante: atuaria apenas mais oito vezes antes de deixar a Gávea em agosto daquele ano, vilanizado pela torcida após uma rumorosa derrota de virada para o Vasco. Seguiria para o Palmeiras.
Os rubro-negros só retomariam a hegemonia do futebol carioca a partir de 1953, com a chegada do técnico paraguaio Fleitas Solich, que levaria o clube a mais um tricampeonato, tendo García e Esquerdinha como remanescentes. Aquela vitória sobre o Arsenal, porém, permanece como uma glória indiscutível na história do clube, um momento em que o Flamengo manteve sua legenda de triunfos épicos mesmo durante um de seus períodos mais difíceis.
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 3 x 1 ARSENAL
Local: Estádio de São Januário, Rio de Janeiro (Público: 25.899 pagantes)
Domingo, 29 de maio de 1949
Amistoso / Árbitro: Mário Vianna.
Gols: Peter Goring (0-1) aos 50 segundos, Jair Rosa Pinto (1-1) aos oito minutos do primeiro tempo; Jair Rosa Pinto (2-1) aos oito e Durval (3-1) aos 35 minutos do segundo tempo.
Flamengo: García – Biguá, Juvenal e Job – Bria e Beto (Jayme de Almeida) – Luisinho (Bodinho), Gringo (Luís Rosa), Durval, Jair Rosa Pinto e Esquerdinha. Técnico: Togo Renan Soares, “Kanela”.
Arsenal: Swindin – Barnes, Daniel e Smith (Wade) – Macaulay (Jones) e Forbes – McPherson (Rooke), Logie (Lewis), Goring, Lishman e Vallance (Fields). Técnico: Tom Whittaker.
O período que se sucedeu à Segunda Guerra Mundial marcou um momento em que as distâncias no mundo foram encurtadas, o que também se refletiu no futebol. Com a evolução da aviação civil, os jogos internacionais entre clubes e seleções se tornaram mais frequentes, tanto dentro dos continentes quanto até mesmo cruzando o Atlântico. E a escolha do Brasil como país-sede da Copa do Mundo de 1950 atiçou a curiosidade europeia sobre a bola jogada aqui.
Nesta época, a virada da década de 1940 para a de 1950, era comum receber a visita de equipes como o Malmö sueco ou o Rapid Viena austríaco. Mas quem mais recebia atenção e admiração eram mesmo os clubes ingleses, que voltavam a atuar no país após algumas décadas. Então fora da Fifa, a Inglaterra se colocava à margem da Copa do Mundo, o que só aumentava a mitificação em torno do jogo que vinha sendo praticado por seus inventores.
OS GUNNERS ENTRE NÓS
O primeiro a vir foi o Southampton, na época um clube da segunda divisão inglesa, em meados de 1948. No ano seguinte foi a vez dos londrinos do Arsenal, equipe de mais fama e prestígio e com melhores credenciais. Havia vencido seu sexto título inglês na temporada 1947/48, com sete pontos de vantagem para o segundo colocado Manchester United, e na campanha seguinte terminara na quinta colocação (a taça foi levantada pelo Portsmouth).
A vinda do Arsenal ao Brasil, a convite do Botafogo, ficou acertada no fim de março. Em princípio, seriam apenas três partidas, todas no Rio, enfrentando os alvinegros, o Vasco (que cederia o estádio de São Januário) e um terceiro clube, Flamengo ou Fluminense. O contrato foi assinado em 22 de abril, com os ingleses (que haviam recusado propostas de outros países) recebendo 48 mil libras de garantia. A delegação viajaria de avião, dividida em dois voos.
Conforme as conversas foram se encaminhando, as datas no Rio aumentaram para quatro (agora Fla e Flu enfrentariam os londrinos), sendo incluídos jogos em São Paulo, contra o Trio de Ferro da capital paulista. A primeira parte da delegação do Arsenal chegou ao Rio no dia 10 de maio, e a segunda no dia 12. Entre aqueles dois dias, a Seleção Brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano (atual Copa América), também disputado na capital carioca.
Entre os destaques do escrete campeão dirigido por Flávio Costa, dois rubro-negros: os meias Zizinho e Jair Rosa Pinto. O primeiro, porém, não enfrentaria o Arsenal: precisaria operar de uma apendicite logo após o Sul-Americano, desfalcando o Fla por cerca de um mês. No time paraguaio, que havia obtido um excelente vice-campeonato, o grande nome havia sido o arrojado goleiro Sinforiano García, do Cerro Porteño, e cobiçado pelo Flamengo.
O MOMENTO DO FLAMENGO
García havia sido feito partida excepcional na surpreendente vitória do Paraguai – dirigido por outro nome que mais tarde faria história na Gávea, Manuel Fleitas Solich – sobre o Brasil em pleno estádio de São Januário por 2 a 1, resultado que forçou um jogo extra para decidir o título. E mesmo na goleada aplicada pelos favoritos brasileiros na revanche (7 a 0), ele salvara sua equipe de uma derrota ainda maior. Era apontado como o melhor arqueiro do torneio. O paraguaio García, estreante daquela tarde, faria história no Flamengo.
Entre o pedido inicial de valor equivalente a 300 mil cruzeiros do Cerro Porteño pelo passe do goleiro, a viagem do dirigente rubro-negro Francisco Abreu a Assunção para tratar da negociação e a chegada de García à Gávea, passaram-se menos de duas semanas. O paraguaio aportava a tempo de enfrentar o Arsenal e com a missão de solucionar os problemas no gol rubro-negro vindos desde a saída do veterano Jurandyr, titular do tri carioca em 1942-43-44.
Titular entre 1945 e 1948, Luiz Borracha alternara grandes momentos com falhas clamorosas e acabou sendo negociado com o Bangu em março de 1949. O reserva Doly foi promovido, mas também não mostrou estar preparado, sofrendo muitos gols nos amistosos de pré-temporada disputados pelo Flamengo (especialmente numa vitória por 6 a 5 diante dos alvirrubros). García, por outro lado, chegava com a experiência de 20 partidas pela seleção de seu país.
O Flamengo também tinha outras novidades para a temporada 1949, na qual tentaria reverter o acentuado declínio técnico em que vinha desde a conquista do tri carioca. Um era o zagueiro Juvenal, vindo do Cruzeiro de Porto Alegre e já cotado para a Seleção. Outro seria um nome que se estabeleceria no time por muitos anos e no início da década seguinte se tornaria seu capitão: o ponteiro Esquerdinha, vindo do Olaria junto com o médio Válter.
O detalhe curioso sobre aquela equipe rubro-negra dizia respeito a seu comandante, que havia feito fama e se tornaria uma lenda como treinador… de basquete: tratava-se do paraibano Togo Renan Soares, o Kanela, técnico do time do Flamengo que conquistaria 12 das 13 edições do campeonato carioca da modalidade entre 1948 e 1960 e que levaria a seleção brasileira de bola ao cesto ao bicampeonato mundial em 1959 e 1963.
Kanela vinha dirigindo o time do Flamengo desde as últimas rodadas do campeonato carioca de 1948, quando substituíra o demitido José Ferreira Lemos, o “Juca da Praia”, ex-jogador e dirigente do Botafogo, ex-árbitro da liga carioca e ex-técnico do America e do Bangu. Naquela temporada de 1949, o Fla havia disputado somente amistosos contra os adversários mais variados, obtendo 12 vitórias, três empates e apenas uma derrota, um bom retrospecto.
COMEÇA A EXCURSÃO
A estreia do Arsenal em gramados brasileiros não poderia ter sido melhor para os ingleses: no domingo, 15 de maio, os Gunners golearam o Fluminense de Castilho, Carlyle e Orlando “Pingo de Ouro” por 5 a 1 em São Januário. Seria a vitória mais enfática conquistada pelos londrinos na excursão. Em seguida, o time viajaria à capital paulista, onde empataria com o Palmeiras em 1 a 1 na quarta e venceria o Corinthians por 2 a 0 no domingo jogando no Pacaembu.
A primeira derrota dos londrinos viria na outra quarta-feira, num jogo noturno – algo ao qual os ingleses não estavam acostumados, já que os refletores só chegariam à maioria dos estádios britânicos apenas na década seguinte – contra o Vasco, que embora contasse com um grande time, precisou jogar em seu limite e contar com uma boa dose de sorte (algumas bolas dos Gunners acertaram a trave de Barbosa no segundo tempo) para vencer por 1 a 0.
Querendo recuperar seu prestígio, os ingleses entraram em campo mordidos para enfrentar o Flamengo no domingo seguinte, dia 29. Tom Whittaker, técnico dos Gunners, só fez uma troca no time em relação ao jogo com o Vasco, dando chance ao novato centroavante Peter Goring no lugar de Ronnie Rooke (que deixaria o clube após a excursão). De resto, era a mesma equipe, cujos destaques eram o goleiro George Swindin e o ponta-direita Ian McPherson.
OS RUBRO-NEGROS SE ARMAM
O Flamengo, por sua vez, promovia a estreia de García no gol. E, de acordo com o esquema WM comum na época (uma espécie de 3-2-2-3), a linha de defesa trazia Juvenal no miolo de zaga, com o veterano Biguá – um dos remanescentes do time tricampeão carioca – na lateral-direita e o novato Job, promovido da base, pelo lado esquerdo. No meio, outro veterano, o paraguaio Bria, fazia dupla com Beto, que ganhava o lugar do antigo capitão Jayme de Almeida.
A linha ofensiva trazia dois pontas-de-lança: o sergipano Gringo, de apenas 22 anos, e Jair Rosa Pinto, o craque Jajá de Barra Mansa, referência técnica daquele time, especialmente na ausência de Zizinho. Revelado pelo Madureira no fim da década de 30, clube pelo qual chegou à Seleção Brasileira, transferiu-se para o Vasco em 1943 junto com os companheiros de ataque Lelé e Isaías. Quatro anos depois, aportava na Gávea como reforço de peso.
No desenho tático do Jornal dos Sports, os dois times no sistema WM
Nas pontas, o gaúcho Luisinho, outro vindo do Cruzeiro de Porto Alegre (e que mais tarde faria história no Internacional) atuava pela direita, enquanto o já citado Esquerdinha atuava na outra faixa. Pelo meio, no comando do ataque, jogava Durval, centroavante trazido do Madureira no início de 1948 e que marcou impressionantes 123 gols em 131 jogos pelo Flamengo, mas acabou esquecido por ter atuado num período ruim do clube.
O JOGO
A prova de que o Arsenal jogaria para reabilitar seu prestígio diante do público carioca (e brasileiro) veio com a abertura do placar contra o Flamengo logo aos 50 segundos de jogo. Pouco depois do apito inicial, o médio Macaulay abriu na direita para Logie, que cruzou alto. Goring, sozinho, cabeceou sem defesa para García. A impressão era a de que uma nova goleada inglesa, semelhante à aplicada diante do Fluminense, consumaria-se em São Januário.
O estádio abarrotado de gente, entretanto, não demoraria a comemorar um gol rubro-negro. Depois de se desencontrar por um tempo após sofrer o gol de saída, o Flamengo teve uma falta do zagueiro Smith em Durval marcada a seu favor aos oito minutos, a uma certa distância da grande área. O goleirão Swindin armou a barreira, sete homenzarrões do Arsenal, jogou o boné para dentro do gol e firmou a vista, à espreita do chute do mirrado Jair Rosa Pinto.
A cobrança saiu forte, com curva, contornando a barreira pelo lado direito. Mas quando se esperava que ela viesse para as mãos do arqueiro dos Gunners, era surpreendentemente fez outra curva, tomando o rumo das redes enquanto Swindin, estático, preparando-se para o salto que não daria, apenas observava. Enquanto os vascaínos das sociais de São Januário se calavam, a torcida rubro-negra que abarrotara o estádio era a imagem do êxtase.
Os gols do jogo desenhados nas páginas da revista Esporte Ilustrado
Foi a vez do Arsenal se desarvorar e perder a tranquilidade que não recuperaria mais ao longo da partida. E a virada rubro-negra chegaria no início da etapa final, depois de Jair Rosa Pinto fazer um carnaval na defesa inglesa: driblou Daniels e Barnes, antes de chutar forte, sem chances para Swindin. Foi a senha para o time londrino perder também a esportividade: logo, o meia Bryan Jones deu um carrinho em García após o goleiro fazer uma defesa.
Prontamente a confusão se instaurou: Biguá revidou de imediato, a guarda civil entrou em campo distribuindo golpes de cassetete e a briga só acabou cinco minutos depois, com a chegada da Polícia Especial e a retirada de Jones de campo, substituído. As trocas de jogadores durante a partida, aliás, foram outro sinal da desorganização do Arsenal naquela tarde: Tom Whittaker quase não havia mexido no time nos outros jogos. Neste, fez cinco mudanças.
Na metade do segundo tempo, os ingleses tentaram empatar na base do abafa. Foi então que García, recuperado da entrada de Jones, praticou algumas defesas espetaculares, como num chute à queima-roupa de Lishman. O Flamengo descansa alguns titulares: o veterano Jayme de Almeida entra no lugar de Beto para retomar o controle do meio-campo, o impetuoso atacante Bodinho entra na ponta-direita, enquanto Luís Rosa substitui Gringo.
E aos 35, depois de ter tido um pênalti de Barnes em Esquerdinha ignorado por Mário Vianna, o Fla fechou o placar num contragolpe: Luís Rosa lançou Durval, que arrancou e teve calma para chutar forte, de peito de pé, e vencer Swindin, decretando o triunfo histórico, a derrota mais contundente e categórica imposta aos ingleses em sua visita ao Brasil, a “apoteose gloriosa do futebol nacional”, como publicou a revista Esporte Ilustrado em sua crônica da partida.
DEPOIS DA GRANDE VITÓRIA
O Arsenal ainda faria mais duas partidas antes de encerrar a excursão: empataria em 2 a 2 com o Botafogo, campeão carioca no ano anterior, num jogo considerado tecnicamente fraco pelos observadores. E voltaria à capital paulista para ser derrotado pelo São Paulo por 1 a 0, antes de regressar a Londres. Na temporada que se seguiria, os Gunners venceriam a prestigiosa Copa da Inglaterra, batendo o Liverpool por 2 a 0 no estádio de Wembley.
O renascimento rubro-negro que se julgou acontecer com o triunfo sobre os ingleses, porém, durou pouco. O Flamengo novamente andou longe de brigar pelo título carioca, terminando em terceiro lugar. O próprio Jair Rosa Pinto teve vida curta no clube dali em diante: atuaria apenas mais oito vezes antes de deixar a Gávea em agosto daquele ano, vilanizado pela torcida após uma rumorosa derrota de virada para o Vasco. Seguiria para o Palmeiras.
Os rubro-negros só retomariam a hegemonia do futebol carioca a partir de 1953, com a chegada do técnico paraguaio Fleitas Solich, que levaria o clube a mais um tricampeonato, tendo García e Esquerdinha como remanescentes. Aquela vitória sobre o Arsenal, porém, permanece como uma glória indiscutível na história do clube, um momento em que o Flamengo manteve sua legenda de triunfos épicos mesmo durante um de seus períodos mais difíceis.
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 3 x 1 ARSENAL
Local: Estádio de São Januário, Rio de Janeiro (Público: 25.899 pagantes)
Domingo, 29 de maio de 1949
Amistoso / Árbitro: Mário Vianna.
Gols: Peter Goring (0-1) aos 50 segundos, Jair Rosa Pinto (1-1) aos oito minutos do primeiro tempo; Jair Rosa Pinto (2-1) aos oito e Durval (3-1) aos 35 minutos do segundo tempo.
Flamengo: García – Biguá, Juvenal e Job – Bria e Beto (Jayme de Almeida) – Luisinho (Bodinho), Gringo (Luís Rosa), Durval, Jair Rosa Pinto e Esquerdinha. Técnico: Togo Renan Soares, “Kanela”.
Arsenal: Swindin – Barnes, Daniel e Smith (Wade) – Macaulay (Jones) e Forbes – McPherson (Rooke), Logie (Lewis), Goring, Lishman e Vallance (Fields). Técnico: Tom Whittaker.
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