quinta-feira, 1 de abril de 2021

O fututo do futebol e dos direitos de transmissões


Em mais um excelente trabalho de César Grafietti, desta vez publico aqui no blog a íntegra de dois artigos escritos por ele, desta vez para o Mondo Sportivo Brasil. O artigo "Direitos de transmissão: a Europa segue 'monopolizando' o espetáculo" publicado em 31 de março, e o o texto "O futebol europeu fervendo", publicado em 18 de março. São duas belas reflexões para nos fazer pensar sobre os caminhos do mercado de futebol e os impactos para o Flamengo, sendo interessante notar também as semelhanças entre os interesses e conflitos entre países europeus similares aos dilemas entre estados em um país continental como o Brasil. Segue abaixo a íntegra destes textos:


DIREITOS DE TRANSMISSÃO: A EUROPA SEGUE "MONOPOLIZANDO" O ESPETÁCULO
O tema dos direitos de transmissão esportivas continua quente no esporte. Há muita coisa acontecendo na Europa, EUA e no Brasil. Cada vez mais se fala em presente e futuro, mas vamos ver que a grande maioria ainda mantém o pé firme no que alguns chamam de passado.

Direitos de transmissão são a maior fonte de receita do esporte mundial. É de onde vem o dinheiro, a exposição que gera receitas comerciais e o maior relacionamento com o torcedor. Ainda que as redes sociais venham ocupando um espaço importante nesse contato clube-torcedor, ainda é a transmissão esportiva ao vivo o carro-chefe do esporte.

Não se fala mais em "direitos de TV", mas sim "direitos de transmissão". Afinal, a plataforma é irrelevante neste momento em que há cada vez mais formas de conexão entre competição e torcedor. Portanto, se é TV aberta, fechada, streaming, rede social, tanto faz. O que importa não é o meio, mas o contato com o torcedor, ou fã.

No Brasil, onde a TV ainda é o grande veículo de relacionamento entre clubes, competições e torcedores, seja através da transmissão aberta, seja pela fechada ou pay-per-view em sistema de TV, há uma enorme divulgação da ideia de disrupção na forma de transmitir as partidas e competições. Seja através do modelo do Campeonato Carioca, ou da Copa do Nordeste, a ordem é espalhar a transmissão no maior número de plataformas possível para acessar o maior número de torcedores possível.

É uma ideia. O problema das ideias e da tentativa de emplacá-las é que por trás de algumas há uma série de agendas e interesses próprios. Sempre que alguém defender uma tese com tanta ênfase observe se a pessoa não faz parte de algum stakeholder que obterá vantagens com isso.

O risco das negociações descoordenadas e feitas em diversas plataformas é que você pode atingir mais pessoas, mas na pulverização o valor cai. E se o valor cai, é menos receita, mesmo que você tenha mais pessoas pagando menos. Afinal, quanto é esse menos? Sem contar que a questão de usar outras plataformas como “futuro” é tão clichê que até o Facebook recentemente resolveu repensar sua estratégia e deixou de competir pelos direitos de transmissões esportivas, focando em outros conteúdos ligados ao esporte.

Tanto faz se você faz a transmissão pelo TikTok, pelo Twitch ou pela TV Aberta. No fim, o que importa é quanto você monetiza dessa relação. E quanto mais você invade um campo que não é seu habitat natural, maior a chance de ser engolido.

Segundo matéria recente do Globoesporte.com, o Campeonato Carioca da atual temporada está sofrendo enorme impacto das transmissões piratas via redes sociais, sites e Youtube. Mesmo com o trabalho dedicado a evitar este tipo de crime, ainda assim parece ser como enxugar gelo. Outro aspecto de risco na hora de fazer conta de retorno.

OS NEGÓCIOS NA EUROPA
No Brasil as agendas acabam reforçando a ideia de que temos um monopólio que precisa ser quebrado, e que as negociações diretas são o grande trunfo para isso. Pode ser, até porque o modelo atual de negociações da principal competição nacional não é bom. Mas mesmo num modelo ruim há dois meios transmitindo a Série A (Globo e TNT Sports). No Campeonato Carioca há um modelo com vendas diretas, PPV de TV Fechada, TV Aberta. A Copa do Nordeste há anos é transmitida pelo SBT e pela LiveMode, que também distribui numa série de outros meios. Meios diferentes distribuídos pela mesma empresa.

A Conmebol tem um modelo de negociação das competições, separando por pacotes, que é o modelo Europeu. Falando nele, vamos atualizar algumas informações: foi definido um novo contrato de direitos de transmissão da Serie A italiana. Depois de quase 20 anos de relacionamento da liga com a Sky, quem conquistou o principal pacote foi DAZN, distribuidora de conteúdo via streaming, num acordo com a operadora de telefonia TIM.

Curiosamente, a competição direta foi a com Sky/Eleven, e enquanto a DAZN oferecia um valor maior e a transmissão via plataforma de streaming, o competidor tinha como apelo o desenvolvimento de um canal próprio da liga a partir da Eleven. Tudo que os agentes no Brasil defendem. No final, vendeu a proposta de maior valor do DAZN. Não importa o meio.

Note que na Itália a DAZN pagou um valor relevante para ter todas as partidas, sendo 7 com exclusividade – ou o que algumas pessoas no Brasil chamariam de “monopólio” – enquanto na Alemanha há uma divisão entre Sky e DAZN, mas onde cada operador atua com exclusividade em determinados dias da semana.

Na Inglaterra é a mesma coisa: divisão entre 3 operadoras e cada um oferece partidas exclusivas. Não é monopólio, é exclusividade. Nos últimos meses a UEFA renovou os contratos de direitos de transmissão de suas competições para os próximos 3 anos.

Veja como na Espanha e no Reino Unido haverá exclusividade – não monopólio – o que fez com que o preço de negociação aumentasse. Nos demais países foram negociados pacotes por dia (16 partidas na Terça, 16 partidas na Quarta e um terceiro com todas as partidas restantes), de forma a ter competição e aumentar o preço.

Negociação da competição, mais que o excesso de exposição, é que gera valor ao negócio. Mesmo assim, nas competições nacionais a renovação atual tem redução de valores nos direitos domésticos entre 5% e 10%, queda que deve impactar também a Premier League na renovação para a temporada 2022/23.

O fato é que testar formas e formatos é interessante e necessário. Mas a busca pelo torcedor espalhado pelos diversos meios de entretenimento que existem hoje pode ser apenas um caminho rumo à confusão na oferta. Por mais que os clubes europeus pensem na produção e venda de conteúdo, a realidade é que este conteúdo é adicional às partidas, é complementar ao jogo. E a negociação das competições é muito mais eficiente quando feita de forma coordenada, mesmo que isso signifique exclusividade.

Os direitos de transmissão perderão valor. O futebol precisará buscar novas fontes de receita, precisará ser criativo, vender highlights, ocupar espaços. Há que ter cuidado com a gestão do novo. A vantagem de não ser pioneiro é evitar os custos e erros de quem saiu na frente. Existe um caminho óbvio e a partir dele uma série de possibilidades. Só tenha cuidado se alguém tentar te vender a roupa nova do rei.

O FUTEBOL EUROPEU FERVENDO...
O futuro das competições continentais, e de certa forma das nacionais, está em discussão pela UEFA, federações e também clubes, e chegar num denominador comum que atenda todos os interesses será um grande desafio para a confederação presidida por Aleksander Ceferin.

A partir da temporada 2024/2025 a estrutura das competições continentais europeias deve mudar, puxadas por uma alteração já prevista na Champions League. Há uma queda-de-braço entre grandes clubes representados pela ECA (European Club Association), as federações e ligas nacionais, os clubes de menor expressão e a própria UEFA. Cada um tentando puxar a sardinha para seu lado, está faltando brasa nessa churrasqueira.

Pressionada pelo fantasma da European Super League, a UEFA trabalha para fazer da Champions League uma competição ainda mais atraente. Não é segredo para ninguém que a competição de clubes mais interessante do mundo começa a despertar alguma emoção apenas a partir das 8ªs de final, quando começam jogos que tem efetivamente disputa e normalmente mais qualidade. A fase de grupos costuma ser um grande marasmo, com poucas zebras e muita obviedade.

Por conta disso, os clubes representados pela ECA demandam maior competitividade, mais partidas interessantes e uma competição que gere mais dinheiro para eles. Sensível a esta demanda e pressionada pela possibilidade dos clubes se juntarem numa liga apenas com os grandes – ainda que alguns atravessem um momento onde se valem mais da história que das conquistas recentes – a UEFA estuda algumas possibilidades de alteração na estrutura de sua principal competição, e o que parece ser o modelo mais aceito foi o do chamado “Modelo Suiço”.

Neste modelo haveria um aumento de 32 para 36 clubes participante na fase preliminar, acabando com os grupos e formando uma disputa com 10 rodadas. O modelo prevê o seguinte:
i. As primeiras 18 partidas seriam definidas por sorteio;
ii. A segunda rodada seria definida por sorteio considerando que vencedores jogam contra vencedores, perdedores contra perdedores e quem empatou comporia os clubes que faltassem nessas partidas;
iii. Em toda rodada se enfrentariam vencedores e perdedores da rodada anterior;
iv. Com isso haveria uma maior chance de termos clubes de maior apelo midiático se enfrentando em todas as rodadas, em partidas com caráter decisivo;
v. Ao final, os 16 primeiros formariam as 8ªs de final montada pelo ranking, com o 1º enfrentando o 16º, 2º com 15º e assim sucessivamente;

Não bastasse isso, o pedido da ECA e que aparentemente teria sido aceito pela UEFA é de que as vagas fossem preenchidas primeiramente pelo ranking de clubes, que é formado pelo desempenho continental ao longo dos últimos 5 anos, de forma que provavelmente algumas competições nacionais já iniciariam com os clubes previamente classificados para a Champions League, tirando o principal objetivo para clubes intermediários, que sabem que dificilmente serão campeões nacionais. E daí começam as reclamações das ligas, federações, clubes intermediários e torcedores.

O modelo atual já garante alguns benefícios financeiros aos clubes, que recebem cotas de participação maiores que outros por conta do ranking. Por exemplo, em 2018/19 o Barcelona recebeu 50% a mais que o Ajax (€ 121 milhões contra € 81 milhões), mesmo ambos tendo chegado às semifinais da competição. Ao mesmo tempo, o CSKA Moscou recebeu 60% a mais que o Lokomotiv Moscou, mesmo ambos tendo sido eliminados na fase de grupos.

As reclamações, como disse, vem de vários lados. O aumento de jogos na Champions League faria com que houvesse redução de calendários nacionais. Em alguns casos como as copas inglesas isso significaria que clubes de divisões menores poderiam ficar com menos jogos e dinheiro. Em outros casos poderia forçar a redução da quantidade de clubes nas ligas nacionais de 20 para 18.

Os torcedores, através da FSE (Football Suporters European) tem feito protestos contra esta reforma, pois temem que haja um aumento na diferença financeira entre os clubes de maior apelo e os mais regionais. Querem, juntos com as federações nacionais e ligas, que as novas vagas sejam preenchidas por aspectos esportivos, de desempenho nas competições locais.

Os clubes locais ainda reclamam que esta mudança pode gerar perde de capacidade financeira deles, de forma que a formação de atletas, geralmente feita por clubes menores, seja afetada, impactando a continuidade da atividade esportiva.

Ao longo da semana o presidente da ECA e também presidente da Juventus, Andrea Agnelli, fez um pronunciamento na reunião anual dizendo que a pandemia deve ter retirado entre € 6,5 bi e € 8bi dos clubes, e que o futebol está sofrendo. Assim como em outras oportunidades, Agnelli voltou a reforçar que o futebol precisa estar tento às novas gerações, que se interessam menos pelo esporte e mais pela qualidade do jogo. Em cima disso disse que o futebol tem muitos jogos irrelevantes, com pouco apelo, e isso tira dinheiro do negócio e interesse dos torcedores. E assim reforçou a ideia de que a estrutura de competições precisa mudar, defendendo o suposto novo modelo da Champions League.

AGORA, VAMOS POR PARTES...
Por um lado Agnelli tem razão, e só uma boa qualidade do espetáculo mantém os torcedores e fãs próximos à modalidade, e qualidade esportiva traz atenção, dinheiro e sustentabilidade. Tem razão também quando diz que há muitos jogos irrelevantes nas competições, sejam nacionais, sejam continentais. Agora, ao diagnóstico correto não se pode aplicar o remédio errado.

Se é possível ajustar a quantidade de clubes nas competições nacionais, não é aumentando o abismo financeiro que a qualidade do jogo melhorará. Mais dinheiro concentrado tende a gerar maior abismo, inclusive em relação ao clube que Agnelli preside, a Juventus. O remédio tende a ser mais uma melhor distribuição do dinheiro que necessariamente concentração.

O futebol precisa de competitividade nas duas pontas da tabela, mas também com partidas mais imprevisíveis entre a ponta de cima e a de baixo. Além disso, a formação de atletas feita pelos clubes mais regionais é fundamental para o desenvolvimento do esporte. A Juventus de Agnelli tem Kulusevski, Chiesa e McKennie que foram revelados em clubes menores e que não disputam as primeiras posições de seus campeonatos há muito tempo.

O problema de soluções aparentemente mágicas e que concentram poder é que ao final da temporada haverá um único campeão. No lugar de valorizar as competições nacionais e procurar melhorar a qualidade do que se joga, a obsessão por uma grande competição continental fará com que muitos clubes deixem de ser campeões por muitos anos. Aliás, como a Juventus de Agnelli, que nas últimas três Champions League foi pouco mais que coadjuvante, e vê o crescimento de Inter, Milan e Atalanta incomodar o desempenho na Itália.

O segredo do futebol está menos na megalomania e mais na capacidade de construir estruturas sólidas.



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