domingo, 28 de março de 2021

O posicionamento do Flamengo no mercado de transmissões esportivas e o streaming


Entrevista com o Vice-Presidente de Marketing do Flamengo, feita e publicada no site da Revista VEJA em 26 de março de 2021, em texto de autoria de Luiz Felipe Castro, o mesmo responsável pelo texto seguinte, publicado na própria Revista VEJA (edição nº 2.731).


FlaTV+, Globo e patrocínios: os planos do marketing do Flamengo

Dirigente Gustavo Oliveira cita trunfos e entraves de iniciativas como a plataforma própria de streaming e rebate críticas sobre sua gestão. Afirmou ele: "O modelo tradicional de TV Aberta funcionou e ainda funciona bem para o Brasil, mas não acreditamos que seja o modelo do futuro".

Clubes mundo afora, dos mais riscos aos mais endividados, buscam formas de amenizar os danos financeiros causados pela pandemia do novo coronavírus. No Brasil, até mesmo o atual bicampeão nacional Flamengo sofre com a ausência de sua torcida nos estádios, a fuga de patrocínios e também a desvalorização do Campeonato Carioca. O cenário caótico é alvo de críticas de parte dos rubro-negros, mas a direção garante trabalhar com responsabilidade e visando o futuro. Reportagem de VEJA desta semana detalhou as tendências do mercado de transmissões esportivas, com destaque para as negociações entre Amazon e Disney com grandes ligas como a NFL, e também para a iniciativa da FlaTv+, o novo canal de streaming do Flamengo.

Gustavo Oliveira, vice-presidente de comunicação e marketing do Flamengo falou à VEJA sobre as estratégias do clube. Ele negou qualquer animosidade com a TV Globo, a "maior parceira do futebol nacional e também do Flamengo", e se disse satisfeito com os novos acordos para o Estadual — transmitido em TV Aberta pela Record TV e via pay-per-view do Carioca nas operadoras Claro, Sky e Vivo e também nos aplicativos dos clubes, como a FlaTV+, cujo pacote completo custa R$ 129,90.

O dirigente comentou as críticas que seu departamento vem recebendo e citou entraves tecnológicos e culturais que atrasam a popularização das novas plataformas. "É um processo de aprendizado, para nós e para os torcedores, mas é um caminho sem volta", explica. "O modelo tradicional de TV Aberta funcionou e ainda funciona bem para o Brasil, mas não acreditamos que seja o modelo do futuro. Queremos estar preparados para tudo". Gustavo Oliveira também detalhou as dificuldades para negociar novos patrocinadores — há quatro espaços vagos no uniforme — e detalhou qual o cenário que projeta para os próximos anos. Confira a entrevista, na íntegra:

Como avalia o cenário das transmissões esportivas e o crescimento dos serviços de streaming como a FlaTV+?

Gustavo Oliveira: Fora do Brasil, a Amazon, Disney e outros players estão fazendo movimentações realmente grandes. Nós ainda estamos engatinhando, mas nossos movimentos visam o futuro, o plano é exatamente estar preparado para entrar nesse jogo. É plantar para colher daqui uns anos, embora já estejamos ganhando um bom dinheiro com a implantação da FlaTv e FlaTV+.

Trata-se, então, de uma espécie de “laboratório”?

Gustavo Oliveira: É um laboratório que já dá dinheiro. Estamos investindo muito neste projeto, que ainda não é tão reconhecido. É um processo de aprendizado importante e de posicionamento para o futuro. Pensamos o Flamengo não só para a nossa administração, é algo para os próximos cinco ou dez anos. O modelo tradicional de TV Aberta funcionou e ainda funciona bem para o Brasil, mas não acreditamos que seja o modelo do futuro. Queremos estar preparados para tudo.

Talvez alguns torcedores ainda tenham dúvidas: quais as diferenças entre a FlaTV e a FlaTV+?

Gustavo Oliveira: A FlaTV é nosso canal no Youtube, de graça, com mais de 6 milhões de seguidores, só atrás de Barcelona e Real Madrid entre os clubes de futebol, e aproximadamente 150 programas por mês. Ali, monetizamos diretamente com anunciantes. Já a FlaTV+ é um aplicativo pago que não terá só a transmissão dos jogo. Esse foi um processo acelerado no Campeonato Carioca, uma oportunidade que apareceu, mas o conceito a curto e médio prazo é fazer uma grande rede de assinatura. A FlaTV+ terá conteúdos premium, exibição de treinos, bastidores exclusivos e eventualmente jogos de futebol e outros esportes. Numa comparação mais simples, é como se a FlaTV fosse a Globo e a FlaTV+ mais o GloboPlay. Se a gente cobrar, por exemplo, 10 reais, imaginando uns 200.000 clientes, teremos 24 milhões de reais por ano, um número bem representativo para o futebol. A FlaTV+ será o canal do torcedor mais fanático, este é o conceito que estamos desenvolvendo, mas é um processo.

Quantos assinantes a FlaTV+ já tem?

Gustavo Oliveira: Não gostaria de abrir isso agora, mas é um número bastante razoável, estamos muito contentes com o resultado. E além do valor da FlaTV+, que fica 100% conosco, recebemos dinheiro também das operadoras de TV a cabo, cerca de 50% do pay-per-view do Carioca.

Nas redes sociais, muitos torcedores reclamam que não conseguem assistir aos jogos. A que se deve isso?

Gustavo Oliveira: Há muitas dificuldades, como as questões tecnológicas, fila virtual, ataque hacker. Há também questões culturais, leva tempo. É um processo de aprendizado, para nós e para os torcedores, mas é um caminho sem volta. O clube tem que ter plantel bom, boa estrutura, e também valorizar sua marca e seu conteúdo.

O brasileiro ainda não está pronto para ver futebol fora da TV Aberta?

Gustavo Oliveira: Há uma confusão grande em relação a isso. O jogo em TV Aberta passa como sempre foi, mas agora na Record. A Globo nunca transmitiu todos os jogos do campeonato, era um jogo de quarta e outro de domingo, e o resto ia para o Premiere, para lucrar com pay-per-view, geralmente os melhores jogos iam para lá. Hoje é a mesma coisa, mas é que diante deste novo cenário algumas pessoas não entenderam que passou da Globo para Record e do Premiere para outras plataformas. E há outra confusão ao comparar preços, pois a pessoa não paga só o Premiere, é o pay-per-view mais a TV a cabo. Com a FlaTV+ ele pode comprar só o aplicativo. Há até mais oportunidades de se ver os jogos hoje. Existe ainda uma dificuldade na divulgação, pois fechamos tudo dias antes de começar o campeonato, o público estava acostumado com futebol na TV de quarta e domingo e agora é terça e sábado... demora um pouco a acostumar.

A proliferação de sites piratas também atrapalha este processo?

Gustavo Oliveira: Muito, mas o Campeonato Carioca está fazendo um trabalho especial para derrubar esses links, há uma equipe dedicada a combater a pirataria, um acordo com Google, Facebook, operadoras de TV a cabo, mas não é fácil. A pirataria é um problema grave, é impressionante, faz um mal enorme para toda a indústria. Tem gente que acha normal, mas é um crime. Tem torcedor que sai espalhando link pirata e nem percebe o quanto isso prejudica o próprio clube pelo qual ele torce.

Como está a relação do Flamengo com a Globo?

Gustavo Oliveira: A Globo é a maior parceira do futebol brasileiro e também do Flamengo, apesar de termos um grau de dependência menor do que outros times, pois ampliamos nossas fontes de renda. Temos ótimo relacionamento com a Globo, um contrato excelente com eles para o Brasileirão, vigente até 2024. O que acontece é que ano passado, tivemos uma decisão estratégica de valorizar nosso conteúdo e, no caso do Campeonato Carioca, o Flamengo representava 70% do pay-per-view, dava o dobro de audiência, mas recebia o mesmo que os outros clubes grandes. Achávamos que merecíamos receber mais, a Globo não concordou e tudo bem, o contrato não foi renovado. Buscamos então outras alternativas, como a FlaTV, conseguimos alguma receita, que evidentemente não igualou os R$ 18 milhões, mas serviu de aprendizado nesta valorização de conteúdo e o movimento foi crescendo, inclusive em outros clubes.

O quanto a pandemia atrapalhou os planos financeiros do Flamengo?

Gustavo Oliveira: Trabalhamos com um processo de responsabilidade financeira desde a entrada da nossa gestão em 2013 e, baseado nisso, estamos buscando todos os caminhos para passar pela pandemia. Em 2019, ganhamos R$ 110 milhões em bilheteria. Em 2020, tivemos pouco mais de R$ 20 milhões. Perdemos bilheteria, sócio-torcedor, patrocinador, fora a confusão logística, se joga ou não joga. É muito duro para nós e para todos os times. Temos muita receita, mas também muita despesa, é um time caro. Mas de maneira geral estamos conseguindo passar por isso.

Diante de toda essa crise, os 18 milhões que recebiam da Globo pelo Estadual não estão fazendo falta?

Gustavo Oliveira: Não dá para dizer. Ano passado teria entrado esse dinheiro, mas não tenho certeza se a Globo manteria os mesmos moldes do Estadual para 2021. Para você ter uma ideia, a Globo fez uma nova proposta esse ano: no total, baixou de R$ 125 milhões para R$ 45 milhões, sendo que só R$ 5 milhões ficariam para o Flamengo. Não concordamos, os outros times também não, e buscamos um modelo diferenciado.

Como imagina o cenário ideal para as transmissões de futebol?

Gustavo Oliveira: As coisas estão mudando com muita rapidez, é difícil prever. O que eu gostaria: que houvesse grandes players disputando o conteúdo do futebol brasileiro. A NFL está muito valorizada porque tem muita gente disputando: Facebook, Amazon, as emissoras de TV Aberta e Fechada, todo mundo brigando por aquele conteúdo. Guardadas as proporções, esse seria o nosso cenário sonhado, ter diversos players disputando o Brasileirão e eventualmente fatiando. Esse conceito é bastante razoável e dá bastante dinheiro lá fora. É o que já está acontecendo com a Libertadores, no SBT, Fox e Facebook.

Mas lá fora os clubes não transmitem seus próprios jogos de forma independente... Mas essa foi só uma oportunidade de mercado, quisemos abrir o leque para diversas alternativas e volto a dizer: isso não é um problema, não estamos perdendo dinheiro com isso e aprendendo muito com o processo.

A Libertadores deu audiências ótimas para os padrões do SBT, mas bem menos do que a Globo registrava. Os patrocinadores do Flamengo não ficam incomodados?

Gustavo Oliveira: É obvio que todos querem estar na Globo, mas não existe só ela. Hoje os conteúdos estão em todas as redes sociais e isso, de certa forma, complementa essa ausência. Hoje eu cobro "X" do patrocinador não só pela presença na TV, mas nos sites, jornais, YouTube, no Facebook, tem um mix de mídia. E o jogo passa no SBT ou na Record, mas a Globo também cobre, né, passa no noticiário dela. Hoje quando vou negociar um patrocinador, consigo cobrar mais porque não entrego só a marca no uniforme, mas todo o engajamento por trás disso. Todas as nossas redes sociais são superavitárias, consideramos como um patrocinador a mais.

Nas redes sociais, alguns torcedores reclamam da falta de novos patrocinadores e até pedem a sua demissão. Como avalia esta crítica?

Gustavo Oliveira: Não acompanho o que falam de mim, mas a cornetagem faz parte. Veja só, o patrocínio do Flamengo cresceu 15% de 2019 para 2020. Há quatro espaços em branco, é verdade. Mas isso ocorreu a partir de março, com a pandemia. A MRV saiu porque ela quer concentrar tudo no projeto do Atlético Mineiro, algo normal. Ano passado, mesmo com a pandemia, nós fizemos um negócio excepcional, que é o Banco Nação BRB, um patrimônio que construímos que nos garante um fixo de faturamento e mais uma verba maior no futuro. Tem gente que fala que o BRB é político... o Flamengo é a maior plataforma de esporte do Brasil, uma das maiores do mundo. As ações do banco subiram demais depois do acordo.

Mas o clube está à procura de novos parceiros...

Gustavo Oliveira: Sim, temos quatro lugares vagos: a meia, o calção, as costas e a manga. Tínhamos um bom acordo de calção, mas a empresa deixou de pagar três meses, por isso cortamos. Nossos patrocínios estão muito valorizados. Temos propostas que 95% dos clubes brasileiros aceitariam, mas eu não posso vender um espaço maior por menos do que os meus atuais patrocinadores pagam. Temos de ter muito cuidado, a pandemia afetou o mercado, mas em breve vamos anunciar um acordo muito interessante.

É ruim para o Flamengo que rivais estaduais como Vasco e Botafogo estejam em crise?

Gustavo Oliveira: Claro, gostaríamos que nossos coirmãos estivessem em uma situação melhor. Mas é preciso lembrar que em 2013 o Flamengo devia R$ 750 milhões e fez um dever de casa duro. Muita gente sacaneava nosso time. A estratégia era ficar alguns anos sem ganhar nada para colher os frutos na frente. Ainda ganhamos uma Copa do Brasil, que foi ótimo. Claro que o cenário de pandemia torna tudo mais difícil, mas acho que esse é o caminho. Agora, é claro que é ruim para todo o futebol carioca ver o Vasco e o Botafogo na Série B. Mas são clubes muito grandes e tenho certeza que têm condições de voltar fortes.


Transmissões esportivas sofrem concorrência de serviços de streaming

A ideia é buscar novos públicos. O serviço de streaming de filmes e séries Netflix foi direto ao ponto em um relatório recente: "Não estamos disputando dólares, mas horas. Competimos com (e perdemos para) o game Fortnite mais do que com a HBO". Fisgar a atenção do consumidor e oferecer o melhor cardápio ao menor preço se tornou um desafio ainda maior numa era em que o conceito de concorrência é radicalmente pulverizado. Assim como o iTunes balançou a indústria da música na virada do século e o streaming vem modificando o cinema, é inevitável que o esporte também viva uma revolução, que já começa a ganhar corpo.

Os melhores exemplos vêm dos Estados Unidos. A liga de futebol americano NFL fechou um acordo de direitos de transmissão de 110 bilhões de dólares por onze temporadas. A surpresa não está nos valores, mas na presença da Amazon, que desafiou as emissoras tradicionais CBS, ABC, NBC, Fox e ESPN e garantiu a exclusividade dos jogos de quinta-feira via streaming no Amazon Prime Video. Não é a única investida da empresa. A Twitch, sua plataforma especializada em e-sports, fechou parcerias com clubes como Real Madrid e Milan e com campeonatos como LaLiga, MotoGP, Fórmula 1 e NBA. A Disney também entrará forte na disputa pelo streaming esportivo, com o lançamento da Star+, serviço que oferecerá produções de seus braços esportivos, Fox e ESPN, e será vendida à parte no Disney+. A novidade deve chegar em junho ao Brasil.


Nenhuma outra liga tem contribuído tanto para a revolução nas transmissões quanto a NBA, o campeonato profissional de basquete americano. Além de ser transmitida por uma série de emissoras mundo afora — Band, ESPN, SporTV e Budweiser (isso mesmo, o canal de uma cervejaria) são os parceiros de mídia no Brasil —, oferece todos os seus jogos no aplicativo NBA League Pass, cujo pacote completo custa R$ 169,99 por ano e tem o Brasil como terceiro maior mercado, atrás apenas de EUA e Austrália. Há diversas alternativas, seja em plataformas consolidadas como YouTube e Facebook, seja em novas como DAZN e OneFootball.

O torcedor chega a ficar confuso diante de tanta oferta, ainda mais no Brasil, onde o modelo clássico de esporte em TV aberta imperou durante décadas e com 25% da população sem acesso à internet. Há, no entanto, um movimento de mudança, com o Flamengo puxando a fila. Embalado por conquistas e com ligações estreitas em Brasília, o clube mais popular do país liderou a campanha pela chamada MP do futebol, que daria aos mandantes o direito de vender ou transmitir seus jogos. O texto caducou, não sem antes causar uma enorme confusão jurídica que deu ao Flamengo a chance de mostrar seus jogos do Carioca em seu próprio canal, a FlaTV, e que levou a Globo a rescindir o acordo pelo estadual no ano passado.

Para aumentar o caos, veio a pandemia, que atingiu em cheio os cofres de clubes, ligas e emissoras. A animosidade baixou — dirigentes do Flamengo repetem aos quatro ventos que "a Globo sempre foi e seguirá sendo o maior parceiro do clube e do futebol nacional" —, mas bastante coisa mudou. SBT e Band abocanharam pacotes de peso como a Libertadores e a Fórmula 1, respectivamente. Estaria a Globo encrencada? Nem tanto. A emissora carioca compreendeu bem o espírito dos novos tempos e vem realocando seus investimentos no serviço Globoplay. O esporte continua sendo importante, mas não a ponto de levar a emissora a fazer loucuras.

O Flamengo foi além. Recentemente lançou a plataforma paga FlaTV+ para transmitir o estadual, um modelo que foi seguido pelos rivais cariocas. "Nosso movimento visa ao futuro", diz Gustavo Oliveira, vice-presidente de marketing rubro-negro. "É mais um posicionamento para o mercado de que estamos no jogo". Entre os entraves que o dirigente destaca está a popularização de sites e aplicativos piratas que roubam os sinais de transmissão. Como nos campeonatos de futebol, a jornada dos novos modelos de transmissão será árdua, mas quem largar bem sairá vitorioso.











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