O Flamengo conquistou três títulos consecutivos da Liga Nacional Brasileira de Basquete. Um feito histórico. No embalo das conquistas, deu-se uma oportunidade rara de relato de quem esteve lá dentro, vivendo a rotina destas vitórias. O vice-presidente de Esportes Olímpicos do Flamengo, Alexandre Póvoa, escreveu cartas para cada uma das grandes conquistas no período. Um belo relato histórico a ser preservado na memória do basquete brasileiro. Segue abaixo as duas primeiras cartas, e nos próximos textos serão publicadas as demais.
Um relato de agradecimento, descrição das dificuldades e muitas vezes repleto de desabafos.
Carta 1 e 2 (NBB 5 e Liga das Américas 2014) - transcritas abaixo
Carta escrita em Junho de 2013
Escrevo essa mensagem como homenagem e agradecimento aos blogs que tanto contribuíram, com elogios e críticas mas, sobretudo, com apoio à causa do basquete rubro-negro, grande campeão do NBB 5. Acho que depois daquele jogo de sábado dia 01/06, após tanta pressão e emoção, resolvi dar uma respirada no contato com vocês e a imprensa.
Mas tenho lido os blogs, sempre aprendendo com vocês e me divertindo bastante com os comentários emocionais dos torcedores. Mas tudo está valendo, se o Flamengo for campeão e sempre tivermos anualmente um sábado perfeito como aquele. E que o basquete brasileiro aprenda que não pode se contentar em espetáculos com o nível abaixo do observado, em um ginásio em nível de NBA, com 17 mil pessoas assistindo. Infelizmente, espetáculos como aquele ainda são exceção, dado que ainda jogamos em ginásios acanhados e desconfortáveis, com pressão externa que não deveria fazer parte de um jogo de basquete de alto nível.
Eu, que já estive lá dentro da quadra como jogador e agora tento contribuir de fora, percebo que o torcedor comum tem pouco conhecimento da formação e condução de um grupo que chega a um título como esse. É tudo importante: A escolha do elenco, o papel fundamental da comissão técnica, o entendimento das necessidades da equipe, a tranquilidade fora da quadra. Porém, mais fundamental que conhecer as qualidades de um grupo, é o pleno entendimento dos pontos fracos e o trabalho em cima deles (ou, no mínimo, blindá-los de alguma forma).
É risível, se não fosse de um anti-rubronegrismo horrendo, a polêmica sobre se o título pertence a A, B ou C, não merecendo comentário. Campeão não fui eu, Marcelo Vido, a diretoria antiga ou atual. Sobretudo a equipe, o Flamengo e toda a nação rubro-negra foram os campeões, isso é o que importa! Eu me sinto muito campeão como um flamenguista como outro qualquer (que é a minha condição eterna) e não como vice-presidente, uma posição transitória e efêmera. Tenho profundo respeito a quem me antecedeu, mas tenho feito dioturnamente a minha humilde parte para mudar o que achava errado e reforçar o que considerava acertos. Agora, de uma coisa, todos podem ter a certeza: Daqui há dois anos e meio, quando terminar o nosso mandato, essa diretoria não vai ficar, como todas as outras, botando a culpa no passado, em algum "Pedro Álvares Cabral rubro-negro". Desde o dia em que ganhamos a eleição (03/12/2012) respiramos Flamengo 24 horas por dia. Os ônus são todos nossos e não vamos pecar por inação. Os ônus (seja no basquete, futebol, clube social, etc...) pertencem a esse grupo. Se as pessoas acham que os bônus devem ser divididos, não tem problema, lembrando que naquele momento estávamos na quarta rodada de 43 partidas que jogamos na NBB, acabando com 37 vitórias.
TRABALHO PÓS VITÓRIA ELEITORAL
Alguns fatos ilustrativos dessa campanha vitoriosa, que ninguém sabe. Em 04/12, dia seguinte à nossa eleição, liguei para o Neto e tivemos nossa primeira conversa. O time estava na Argentina disputando o Sul Americano. Estava preocupado por conta dos boatos maldosos e de baixo nível (como sempre covardemente apócrifos) de que a então Chapa Azul acabaria com todos os esportes olímpicos. Temia que isso pudesse influenciar o time. O papo foi ótimo e desde então vi que tinha tudo para o trabalho dar liga. Uns três dias depois, no Rio e com a presença da ex-vice-presidente, do antigo diretor e do André Guimarães, conversamos também longamente sobre a necessidade de um reforço dada a contusão do Marcelinho (que viria a ser mais tarde o Bruno Zanotti), apesar das enormes dificuldades financeiras do clube.
SITUAÇÃO COMPLICADA ENCONTRADA FORA DE QUADRA
Confesso, eu fiquei assustado em janeiro com a situação caótica encontrada em termos de estrutura do clube. Ficava pendurado ao telefone para a liberação de recursos que deveriam ser pagos no Tijuca em dia de jogos (taxa de arbitragem e custos operacionais), com medo de tomar WO. A organização amadora e o caos financeiro acabaram com as noites de sono. Enfrentamos enormes problemas de ameaça de despejo de atletas por aluguéis atrasados. Eram três meses de salários atrasados (alguns 4) que pegamos o time. Quantas conversas com o grupo, que não esmoreceu um segundo, não foram necessárias?
TIME DENTRO DE QUADRA
Dentro da quadra, primeiro foi a ansiedade de não perdermos a invencibilidade de 20 jogos, situação completamente improvável no começo do campeonato. Que fique claro para todos que não acompanham basquete: O time do Flamengo campeão da NBB5, individualmente, nunca foi melhor que os outros (sobretudo após a perda do Marcelinho). Havia equipes do mesmo nível até individualmente superiores. A excelente pré-temporada realizada foi chave para termos aquele começo avassalador que nos garantiu o mando de quadra nos playoffs. Enfim, há times que se encaixam bem e, apesar das deficiências que existem (e que serão reforçadas), houve grande sinergia de grupo que foi decisiva na conquista.
PRIMEIRA DERROTA
A primeira derrota acabou acontecendo de uma forma também incrível, em um revés dentro de casa para Franca nos últimos 5 minutos de jogo. Quando começamos a cair de produção no segundo turno e as críticas começaram aparecer (muitas justas), o papo , o trabalho e blindagem foram fundamentais. Sabíamos o primeiro turno havia sido anormal (abrir aquela diferença toda na classificação), mas a queda de rendimento no segundo turno (não na tabela, mas na performance) havia sido excessiva. Fomos muito mal na Liga das Américas e ali fiquei preocupado. Mas apoiar o tempo todo era fundamental, conversávamos e trocávamos emails com frequência, sobretudo ao final dos jogos. Mas confesso que em certas horas, era difícil conviver com a incrível alternância de rendimento, como naquele jogo com o Tijuca (o último na primeira fase), em que ganhamos na segunda prorrogação. Chegamos a um ponto de inconstância que merecíamos mais umas cinco prorrogações naquele dia, “de castigo” (risos).
MANDO DE QUADRA COMO FATOR DECISIVO
No final do turno, a Comissão Técnica e a diretoria sabiam de que o mando de quadra seria decisivo em um campeonato tão equilibrado. Conversamos muito sobre isso. Quando acabou a primeira fase e tivemos umas duas semanas para treinar, enfatizamos que se ganhássemos até 7 jogos dentro de casa seríamos campeões, independente que qualquer resultado fora. A responsabilidade de ganhar fora não era nossa. Não deu outra, acabamos ganhando as seis que precisávamos, ganhando uma fora (Paulistano) e perdendo duas (São José).
MARACANÃZINHO X ARENA DA BARRA
Quantas reuniões tivemos com o Governo do Estado para tentar jogar no Maracanãzinho (sem sucesso)? Brigas (no bom sentido) com a Liga Nacional para conseguir o piso (que não tinha no Maracanãzinho) e que estava no Ceará. Fomos intencionalmente para a imprensa dizer que o Rio corria sério risco real de ficar sem a final por falta de ginásio. O Maracanãzinho só foi liberado para as quartas de final, o que não atendia as nossas prioridades técnicas. Enquanto isso, o HSBC Arena acabou conseguindo fazer alterações de eventos para nos atender, apesar do custo alto.
ARENA DA BARRA
Nossa decisão de levar para o HSBC Arena as semifinais e final foi muito criticada por muitos que achavam que perderíamos o fator pressão (infelizmente ainda presente no basquete brasileiro em ginásios como São José e Bauru, por exemplo). Para desmistificar qualquer boato, a decisão foi tomada em conjunto pela diretoria e comissão técnica. Sempre pensamos grande (inclusive o Neto e os jogadores). Porém, todos os profissionais se organizaram e trabalharam muito para que aquele ginásio ficasse cheio (quatro jogos, 50 mil pessoas presentes) – competência da assessoria de imprensa, do marketing, contatos com a prefeitura para garantir transporte, enfim, não foi à toa o sucesso da empreitada. Clube, torcida e , sobretudo, o time, fizeram a sua parte em grande sinergia. É muito difícil ganhar do Flamengo nessas condições. Seguindo nossa linha profissional, fizemos a mudança do ingresso de papel para vendas pela Internet e controle total das catracas, reduzindo a possibilidade de fraudes e invasão, comuns no Tijuca. Muita gente não gostou (risos). Nos jogos das quartas contra o Paulistano (ainda no Tijuca), fiquei assustado pelo afluxo de gente. No terceiro jogo do playoff, teve até gente com ingresso que não conseguiu entrar, dado que a polícia militar mandou fechar os portões. Aprendi que quem diz que o ginásio do Tijuca comporta mais de 2 mil pessoas está mentindo. Não sabia se ficava mais preocupado com essa situação do que com o jogo dentro da quadra.
PRIMEIRO JOGO NA ARENA - SEXTA-FEIRA CHUVOSA
Em termos de expectativas, o primeiro jogo no HSBC Arena foi o pior. Já seria o normal a tensão, por ser o primeiro jogo lá. Não sabia nem como o time reagiria e nem se a torcida compareceria em bom número. Havíamos perdido o primeiro jogo em São José, tendo atuação ruim. Ainda por cima, caiu uma tempestade histórica no Rio de Janeiro exatamente naquela sexta-feira. Minha alegria foi imensa com a presença de 7 mil pessoas mesmo assim e uma excelente atuação da equipe.
SALÁRIOS EM DIA: TRANQUILIDADE PARA O TIME
Nesse tempo todo, muita conversa com a comissão e grupo; manutenção dos salários em dia, apesar da atual diretoria já ter pago R$ 80 milhões até agora em impostos. Enfim, esse tipo de tranquilidade é fundamental para o grupo. O trabalho do Marcelo Vido, com duas Olimpíadas nas costas e profundo conhecedor de basquete, foi fundamental.
"NÃO ENTRAR NA PROVOCAÇÃO". ENTRARAM!
Outro ponto pitoresco da campanha: Quando fomos jogar em São José o quarto jogo, fiz uma reunião com o Neto e o André Guimarães dois dias antes e disse: “Podemos perder de 30 pontos, mas por favor nem pensar em brigar e perder jogadores para a final. Eles vão provocar. O problema de ganhar fora de casa desde o início dos playoffs sempre foi dos adversários, nunca nosso, por conta da vantagem adquirida”. Com os times já em quadra, eu do Rio liguei para o Marcelo Vido que estava em São José para reforçar a recomendação. O que aconteceu? Exatamente o que tinha previsto e a reação do time foi rigorosamente contrária do pedido. Confesso que fiquei muito chateado, mas compreendi. Essa é a vantagem de ter estado lá dentro da quadra. Esporte não é matemática, o sangue corre na veia. O atleta é ser humano e o clima em playoffs, sobretudo depois do terceiro jogo, é tenso. Mas caímos na provocação infantilmente e poderíamos ter jogado todo o nosso campeonato no lixo.
MOMENTO DE MAIOR MEDO EM PERDER O TÍTULO
Meu maior momento de tensão em relação à campanha foi no quinto jogo contra São José. Quem conhece basquete, viu a coisa muito feia no intervalo daquela partida aqui na Arena. A bola deles caindo sem parar (ao contrário da nossa), Marquinhos com 3 faltas e Caio com duas. Talvez tenha sido o único momento de toda essa longa caminhada em que temi pelo título. Se o time não reagisse no começo do terceiro quarto, teríamos muito problemas para ganhar aquele jogo. Porém, além de termos reagido, o Murilo fez a quarta falta cedo. Alívio. Essa foi sempre a característica marcante desse time, grande força nas horas certas.
SUSPENSÃO DO CAIO TORRES
Para completar, na semana da decisão, veio a suspensão do Caio. Já sabíamos que o Benite estava fora por contusão. Viramos noites, o clima de tensão era enorme. Parecia óbvio que estávamos com o bom direito todo do nosso lado, mas houve demora além do esperado para a concessão do efeito suspensivo. Sabíamos que no caso específico do Caio, o sucesso na empreitada poderia significar ganhar ou perder o campeonato. Grande trabalho da área jurídica.
GRANDE FINAL
As emoções foram se seguindo até o dia do jogo. Zico em um jogo de basquete, que honra! Júnior e Fábio Luciano, requisição de ingressos (já esgotados com menos de 48 horas de vendas) de todos os lados. 17 mil pessoas no ginásio e se existisse outro com capacidade para 30 mil também lotaria. Melhor jogador do jogo? Caio! Segundo melhor? Para quem entende de basquete, o paraguaio Bruno Zanotti, que simplesmente anulou o Robert Day, o cestinha e melhor jogador de Uberlândia. Conseguimos trazer o Bruno quase "no peito" como reforço, exatamente no começo de nossa administração, quando o Marcelinho se machucou. Quiseram os deuses que sua melhor partida fosse exatamente a grande final.
ANO QUE VEM TEM MAIS
Enfim, gostaria novamente de agradecer todos os blogs que ajudaram o basquete do Flamengo nessa linda trajetória. Ano que vem tem mais, podem ter certeza! Vamos ter um time competitivo com certeza, mas sem cometer loucuras, dentro da realidade atual do Flamengo, em busca do tri da NBB e da Liga das Américas.
Carta escrita em março de 2014
Caros amigos do basquete do Flamengo,
Em junho do ano passado, escrevi uma carta (“O Basquete do Flamengo agradece”), comemorando a grande conquista do título da NBB 5.
Sábado passado foi mais um dia de emoção única para quem ama esse esporte e para quem aprendeu a ver o Flamengo no topo em qualquer área. Jogamos oito partidas na Liga das Américas (a Libertadores do Basquete), vencemos todas, em um torneio em que participam todos os campeões e vice-campeões dos torneios nacionais da região, da Argentina ao México. Foi um sonho, do qual ainda preferimos não acordar. Somos campeões das Américas, o maior título de nossa história. Em um Maracanãzinho lotado, conseguimos, todos juntos, atingir esta glória.
Cabe ressaltar que um grupo vencedor não se faz apenas com passes precisos, defesa forte e cestas de três pontos. Esse time foi extremamente profissional e comprou o nosso projeto, mesmo com as dificuldades de conhecimento público que o clube atravessou durante o ano de 2013 (por conta da alternativa de voltarmos a ser um clube cidadão e pagar R$ 120 milhões em impostos). Salários atrasados não tiraram o foco da equipe durante um dia sequer, sempre prevalecendo o respeito ao manto rubro-negro. Estamos tratando de verdadeiros campeões, no sentido mais profundo da expressão, que merecem todos os aplausos.
Hoje, com o título de campeão das Américas nas mãos e a maior parte dos compromissos atrasados (alguns de longa data, por sinal) já encaminhada e/ou resolvida, todos têm a impressão de que o caminho foi fácil. O grupo foi bravo! Jogamos, por exemplo, em lugares complicados como a altitude de Quito e a longínqua Xalapas, a cinco horas da Cidade do México. Todos jogaram, ninguém reclamou, vencemos sempre.
Parabéns aos jogadores, à competência da comissão técnica comandada pelo José Neto, ao comando do Marcelo Vido nos Esportes Olímpicos (estamos trabalhando para que todos se auto-sustentem e atinjam no futuro a excelência) e o melhor “sexto homem” do campeonato – simplesmente, a maior torcida do mundo. Obrigado a todos que acreditaram nesse sonho, sobretudo blogs e imprensa.
Muita gente ainda tem a coragem, mesmo depois de uma conquista dessa, de perder um tempo enorme discutindo se diretorias anteriores têm ou não o mérito nesse título. Esse papo é de um “anti rubro-negrismo” irritante e triste e prova que tem gente que, definitivamente, entende muito pouco de Flamengo. Sempre cito como “colaboradores permanentes”, todos que construíram esse basquete rubro-negro, figuras emblemáticas como Kanela, Algodão, Pedrinho, Almir, entre tantos outros. Mas uma menção especial para as bênçãos de Gilberto Cardoso, nosso presidente que morreu (causa mortis: excesso de paixão) após uma cesta no último segundo em 1955, que resultou em título carioca e que introduziu naquele ginásio uma grande aura rubro-negra.
O time e a diretoria atual são apenas um pequeno parágrafo nessa linda história. Esse grupo foi montado a dedo, a partir da equipe campeã do ano passado. Nosso objetivo maior dessa temporada foi atingido. Mas tenham certeza que se trata apenas do começo. Agora, vamos partir para o tricampeonato da NBB 6, competição que estamos liderando . Em outubro, o sonho continua, com a disputa do campeonato mundial, se Deus quiser no Rio de Janeiro, contra o campeão europeu. E vem mais coisa por aí!
Podemos ganhar, podemos perder, mas vamos com tudo! O verdadeiro flamenguista só tem um dever básico: Pensar grande, sempre! Que consigamos transformar nosso ufanismo e megalomania saudável (de uma geração que viu Zico e cia. ganharem tudo) em planejamento, disciplina, treinamento e profissionalismo que, em sinergia com a maior torcida do mundo, vão sempre resultar em vitória.
Afinal, como canta a torcida, o “Basquete é o Orgulho da Nação”!
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