quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

A história de Fritz Engel, o alemão que jogou no Flamengo nos Anos 1930


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle, na minha opinião, o melhor cronista sobre história do Flamengo de todos os tempos, que assim narrou tais detalhes em seu blog Flamengo Alternativo:



O alemão Engel, primeiro à direita no Flamengo de 1937. Ao seu lado, Leônidas da Silva

Personagem obscuro e um tanto insólito de um importante período de transição da história do Flamengo, o meia alemão Fritz Engel ficou quase esquecido por muitas décadas. Entretanto, sua trajetória rubro-negra, além de explicitar um imenso choque cultural entre o futebol que se jogava no Brasil e o da Europa, entrelaça-se com a de três nomes que marcaram os anos 1930 no clube, ainda que não conseguissem tirar o Fla de um jejum de títulos cariocas: o presidente José Bastos Padilha, o técnico húngaro Izidor "Dori" Kurschner e o médio Fausto dos Santos, a "Maravilha Negra". O texto a seguir é, portanto, mais do que sobre a história de um jogador: é a crônica e o retrato de uma época.


SEU COMEÇO NA EUROPA

Foi num contexto de profundas mudanças no futebol da Europa continental, na virada dos anos 1920 para os anos 1930, que começou a carreira de Fritz Engel. Em vários países houve a implementação do regime profissional e a criação de ligas nacionais no formato de pontos corridos em turno e returno, substituindo os velhos torneios regionalizados. Na Alemanha onde o meia nascera no dia 3 de abril de 1910, porém, não foi assim: a liga nacional – Bundesliga – só chegaria em 1963/64. E o profissionalismo era não só proibido como combatido.

Engel estreou aos 19 anos no time principal do Rot-Weiss Frankfurt, clube que era algo como uma terceira força da cidade, atrás do Eintracht e do FSV, e que, como eles, jogava a Bezirksliga Main-Hessen, um dos torneios que, entre 1927 e 1933, compunham o campeonato regionalizado do Sul da Alemanha. Este, por sua vez, classificava seu vencedor para a fase decisiva do Campeonato Alemão. De perfil modesto, o clube vermelho ("rot") e branco ("weiss") nunca conseguiu avançar para a fase principal do campeonato nacional naquele período.

Mesmo assim, Engel havia conseguido se firmar como um dos destaques da equipe, ao lado do goleiro Willibald Kress (que chegou a defender a seleção alemã em 1929), até ser envolvido, junto com vários outros atletas, num caso de violação das regras do amadorismo descoberto pela Deutscher Fussball-Bund (DFB, a federação alemã) em 1932. O episódio, sobre cuja origem pairam duas versões distintas, teve Kress como pivô e desencadeou uma investigação que durou alguns meses, colocando a carreira dos envolvidos em suspenso.

Quando o caso estourou, Engel foi levado por Kress, junto com outros atletas, para a vizinha França, onde defenderam o Mulhouse em amistosos pouco antes do início da temporada 1932/33, a primeira do profissionalismo no país. Mas, com o processo ainda correndo, a federação alemã vetou sua transferência em definitivo. O Mulhouse havia sido pentacampeão da Alsácia nas últimas cinco temporadas amadoras e regionalizadas do futebol francês. Naquela que se iniciaria, além do profissionalismo, seria instituída uma liga nacional.

A sentença da DFB sairia no fim de setembro de 1932, com a condenação dos envolvidos. A Engel coube uma suspensão de dois anos, gancho que acabaria cancelado com o perdão por parte da federação alemã no fim de julho de 1933. Mas o meia não quis continuar no país: preferiu se mudar para a Suíça, onde continuou sua carreira de jogador atraído por uma excelente proposta do Grasshoppers, de Zurique, então presidido por Willy Escher, acionista majoritário da Nestlé, e dirigido desde 1925 pelo húngaro Izidor "Dori" Kurschner.

Em suas duas temporadas com o Grasshoppers, Engel não chegou a vencer a liga suíça, terminando em segundo e em quarto lugar. Mas, sob o comando de Dori Kurschner, levantou a copa nacional em 1934. O time formava com o Servette a base da seleção helvética ao incluir destaques do futebol do país como o goleiro Willy Huber, os zagueiros Severino Minelli e Walter Weiller e o atacante André "Trello" Abegglen. E na final, disputada no estádio Wankdorf, de Berna, no dia 2 de abril de 1934, bateu exatamente o clube de Genebra por 2 a 0.

Na temporada seguinte, 1934/35, Engel terminaria como vice-artilheiro do Grasshoppers na liga com oito gols marcados, um a menos que o maior goleador da equipe, o lendário Max "Xam" Abegglen, irmão mais velho de "Trello". Três deles foram anotados no que seria seu último jogo pelo time de Zurique no campeonato: a vitória de 5 a 3 sobre o Young Boys, de Berna, em 22 de maio de 1935. Curiosamente, seu próximo clube seria justamente este adversário, seguindo os passos de Dori Kurschner, que também havia migrado para lá.


A AVENTURA BRASILEIRA

Mas Engel não ficaria muito tempo em Berna. Faria apenas duas partidas pelo Young Boys em outubro de 1935, antes de receber uma interessante proposta de trabalho como técnico em eletricidade da firma de importações Paul J. Christoph no Brasil, mais exatamente na então capital, o Rio de Janeiro. O jogador, no entanto, também pretendia procurar algum time onde pudesse continuar a atuar. E, munido de uma carta de recomendação assinada pelo secretário da FIFA, começou a bater à porta dos principais clubes.

Engel (à esquerda) na redação de O Jornal com o amigo e intérprete Welmans

Indicado pela carta do secretário ao Vasco, ao Fluminense e ao Flamengo, Engel procurou primeiro os cruzmaltinos, já por volta do Natal de 1935, após um contato com o técnico da equipe, o inglês Harry Welfare. Mas nada em caráter definitivo, como explicou em visita à redação de O Jornal: "Tomei parte do treino na última quinta-feira (26 de dezembro), mas nada me prende ao Vasco. Confesso que desejava ser experimentado no Fluminense e no Flamengo, pois estou decidido a jogar no clube que melhores vantagens me oferecer".

Na mesma visita, acompanhado do amigo Josef Welmans, que lhe serviu de intérprete, Fritz Engel falou um pouco de sua trajetória e comentou onde costumava jogar: "Atuei no final da temporada na posição de center-half, mas anteriormente ocupara as meias direita e esquerda, em cujas posições atuo com bastante familiaridade". Center-half, vale explicar, era o médio central no velho sistema 2-3-5, que recuaria para se tornar o zagueiro central no WM, esquema nascido na Inglaterra e que se difundira pela Europa nos anos 1930.

Engel também teceu suas impressões sobre os jogadores brasileiros: "São extremamente rápidos e desconcertantes" e "cabeceiam com oportunidade, o que os torna elementos realmente perigosos". E se disse ansioso para disputar uma partida de verdade e testar sua própria adaptação ao jogo daqui e suas chances de ser aprovado em algum dos grandes clubes da cidade. "Sem que surja essa oportunidade, que tanto almejo, tudo será dificuldade para mim, pois não é possível conseguir agradar sem demonstrar o meu exato valor".

Sem acerto no Vasco, tentou a sorte no São Cristóvão, já depois da virada do ano, antes de seguir para o Fluminense. Lá, com o técnico uruguaio Humberto Cabelli, passou um tempo treinando e jogando com os reservas, mas também sem nenhuma definição. Sua última chance seria o Flamengo. Treinou e agradou, assim como ficou satisfeito com o que lhe foi oferecido. Em 17 de março de 1936, ele assinou contrato até o fim de 1938. Era um reforço significativo para os planos ambiciosos do presidente José Bastos Padilha.

Quando Bastos Padilha assumira o cargo, em fevereiro de 1933, o Flamengo vinha em situação lamentável desde o fim da década anterior: exceto por um milagroso segundo lugar em 1932, acostumara-se a se arrastar pelas colocações mais baixas do campeonato, apanhando de grandes e de pequenos – qualquer Bonsucesso, qualquer Syrio e Libanez dava de seis nos rubro-negros. Era – e pode-se dizer que ainda é – a pior fase de sua história. Mas para o presidente não bastaria tirar o Fla da lama: era preciso transformá-lo em referência.

Seria durante sua gestão que o Flamengo abriria de vez suas portas aos jogadores negros – já presentes em bom número na equipe de atletismo, mas ainda raros no futebol. Outro projeto ambicioso era a construção de estádio próprio, no então distante e periférico bairro da Gávea. Também foi Bastos Padilha que convenceu, logo no início de seu mandato, o clube a adotar o nascente profissionalismo e não perder o bonde da história. Contar com um jogador oriundo do futebol europeu era mais um movimento de vanguarda.

Havia, no entanto, muito a ser modificado na estrutura e no dia a dia do futebol brasileiro. E Engel ficou bastante impactado com o que experimentou logo que começou a se integrar a ele: "Quando vi o Flamengo de perto, fiquei estarrecido. Lá, tudo se fazia sem nenhum método. Não havia preparação física dirigida, não havia assistência médica, não havia concentração – era o caos", relembrou em depoimento ao jornalista Geraldo Romualdo da Silva numa série de reportagens publicada pelo Jornal dos Sports entre 11 e 15 de setembro de 1974.

"Basta dizer que os treinos de conjunto só se realizavam uma vez por semana, às quintas-feiras, geralmente na parte da tarde", prosseguiu Engel. "Corria-se então dois tempos de 45 minutos, igual a uma partida normal, e quando não havia mais o que fazer, Flávio Costa marcava o dia da apresentação no clube, normalmente aos domingos, na hipótese de haver jogo. Caso não houvesse, ficaria tudo para a outra quinta-feira. Nesses tempos de heroísmo e boemia, treino substituía jogo e jogo substituía treino. Na mesma proporção".

O Flamengo entra em campo em 1936: Engel é o primeiro à esquerda

As declarações de Engel eram o retrato de um período confuso no futebol brasileiro, o da transição do amadorismo para o profissionalismo. Se o regime amador no futebol brasileiro havia começado a morrer, pelo menos formalmente, ao farejar internamente ares de profissionalismo (como no caso do chamado "amadorismo marrom"), ainda haveria muito resquício de amadorismo nos primeiros tempos de regime profissional. Velhos vícios administrativos ainda eram evidentes, e alguns demorariam décadas para serem superados.

Era também muito simbólico de como havia sido feita essa transição no Brasil: a passagem do regime amador para o profissional não foi pacífica ou encarada como desdobramento natural. Veio por meio de rompimentos, cisões de liga, concorrência entre entidades. Até a imprensa se dividia entre defensores do amadorismo (como o Jornal do Brasil) e partidários do novo regime. No fim, a única semelhança entre o profissionalismo brasileiro e o europeu (de onde vinha Engel) parecia ser o fato de ambos admitirem oficialmente os pagamentos.


O COMEÇO RUBRO-NEGRO

O futebol carioca no qual Engel aportou no fim de 1935 se dividia em duas ligas principais, ambas profissionais: a Liga Carioca de Football (LCF), introdutora do regime remunerado e liderada por Flamengo, Fluminense e América, e a nova Federação Metropolitana de Desportos (FMD), criada naquele ano no lugar da extinta Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), após o Vasco deixar a LCF junto com alguns clubes para se unir ao Botafogo – até então o último resistente ao profissionalismo – na formação de uma outra entidade.

A estreia de Engel pelo Flamengo viria cinco dias após a assinatura do contrato, em 22 de março de 1936, num amistoso contra a Portuguesa de Desportos na capital paulista. A Lusa era o principal clube – e a então campeã – do fraco certame da Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), entidade coirmã da LCF em terras bandeirantes. E, diante de um Fla que não entrava em campo há mais de dois meses, saiu vencedora pelo elástico placar de 6 a 4. Engel, mesmo assim, saiu elogiado pela crônica ao fazer o passe para dois gols rubro-negros.

A qualidade do passe, aliás, era a principal virtude do meia alemão. Comparado aos companheiros brasileiros, Engel era um jogador de forte compleição física, porém mais lento, como ele próprio admitia. Por outro lado, era pródigo em colocar os outros atacantes em condições de marcar, ou então ele próprio balançava as redes, graças ao seu forte chute. Seu primeiro gol pelo Fla, aliás, viria em um disparo poderoso de fora da área na revanche contra a Portuguesa, vencida pelos rubro-negros por 3 a 2 em Laranjeiras no dia 2 de abril.

"O Flamengo conseguiu, afinal, um 'insider' esquerdo que faltava para maior eficiência do seu ataque", elogiou o Jornal dos Sports, que destacou sua inteligência e poder de decisão, formando uma ala esquerda perigosa com o ponta Jarbas. Aquela partida também marcava a estreia de outro grande reforço do Flamengo para a temporada 1936: o celebrado centromédio maranhense Fausto dos Santos, a "Maravilha Negra", revelado pelo Bangu e que defendera a Seleção na Copa do Mundo de 1930, trazido após ficar em litígio com o Vasco.

O pacote de reforços que o clube contrataria ao longo daquela temporada incluía ainda o zagueiro Domingos da Guia, outro nome decantado no futebol brasileiro e sul-americano, repatriado do Boca Juniors; seus irmãos Médio e Ladislau da Guia (atacante de chute fortíssimo, apelidado "Tijolo Quente", maior artilheiro da história do Bangu); e o atacante Leônidas da Silva, então posto à margem no Botafogo. Juntamente com Fausto, eram cinco novos atletas negros que se incorporavam ao elenco do clube de Bastos Padilha. Mais o alemão Fritz Engel.

O Flamengo de 1936: sete negros e o alemão Engel, o penúltimo agachado

Por ironia, o Flamengo no qual Engel desembarcara naquele início de 1936 contava com um jogador apelidado Alemão – o médio-direito carioca Nelson Pereira da Motta, nascido em 1910 assim como o "verdadeiro" alemão e que já integrava o quadro rubro-negro desde 1933, o ano em que o clube adotara o profissionalismo. O Alemão daqui permaneceria como dono da posição pelas temporadas de 1934 e 1935, saindo de cena somente em meados de 1936, quando da contratação de Médio, o irmão mais novo de Domingos da Guia.

Naquela temporada, além de amistosos contra a Portuguesa, contra adversários da própria LCF e contra as maiores forças do futebol mineiro (América, Atlético, Palestra Itália – atual Cruzeiro – e o tetracampeão Villa Nova), o Fla disputaria os dois certames organizados por sua liga: primeiro, de abril a setembro, o Torneio Aberto, que, como o nome indica, permitia a participação de clubes amadores e profissionais, filiados a outras entidades, de outras cidades e até de outros estados. Depois, de outubro a dezembro, o Campeonato Carioca.

Contra os mineiros, Engel também mostrou suas qualidades: balançou as redes do Atlético, na vitória por 2 a 0 em Laranjeiras no dia 3 de março, aproveitando o rebote de seu próprio cabeceio para fechar o placar. Já contra o Palestra Itália, no mesmo local, em 18 de junho, abriu a contagem na vitória rubro-negra por 3 a 0. E mesmo quando o Flamengo acabou surpreendido pelo América Mineiro, ao perder por 4 a 2 em Campos Sales exatamente um mês depois, coube a ele, jogando improvisado como centroavante, anotar o primeiro gol do time.

Já no Torneio Aberto, Engel participou de quase toda a campanha rubro-negra. O torneio tinha várias etapas eliminatórias e uma grande repescagem antes do quadrangular final. Nessa fase de mata-mata, o alemão entrou em campo nas goleadas de 9 a 2 no Villa Joppert e 8 a 2 no Bandeirantes, marcando duas vezes na primeira e uma na segunda. Esteve ainda na vitória de 2 a 0 sobre o Engenho de Dentro e anotou um gol de pênalti (e desperdiçou outra cobrança) no difícil 2 a 1 sobre o Bonsucesso, decidido apenas na prorrogação.

No quadrangular final, ele participou do 2 a 2 com o Fluminense e dos 2 a 1 sobre o América, ficando de fora por lesão do 1 a 1 com o Bonsucesso que deixou rubro-negros e tricolores empatados em primeiro lugar, necessitando de uma final extra. Esta seria disputada em dois jogos: no primeiro, em Campos Sales e com Engel no time, houve empate em 1 a 1. O alemão, porém, voltou a sentir a lesão e foi baixa no ataque rubro-negro na grande decisão, em que o Fla derrotou o Flu em Laranjeiras por 1 a 0 e conquistou o título do torneio.

A luxação no pé sofrida ainda na partida contra o América no quadrangular final do Torneio Aberto e que já o deixara de fora daquela competição fez com que Engel perdesse boa parte da campanha rubro-negra no Campeonato Carioca da LCF, recebendo do Departamento Médico do clube uma licença para se afastar temporariamente do futebol, o que fez por cerca de um mês, retornando na segunda quinzena de novembro para a reta final da competição, que reunia apenas seis clubes se enfrentando em três turnos corridos, ou 15 rodadas.

Assim como no Torneio Aberto, Flamengo e Fluminense terminariam empatados ao fim dos três turnos e teriam de disputar o título em decisão extra – agora numa melhor de três. No primeiro jogo, empate em 2 a 2. No segundo, Engel chegou a empatar para os rubro-negros no primeiro tempo, mas o Flu disparou na etapa final e venceu por 4 a 1. No terceiro, o Fla teria de vencer para tentar dividir o título (!), mas ficou sem seu meia alemão. Leônidas abriu o placar, Hércules empatou no segundo tempo, e o 1 a 1 deu a taça aos tricolores.


A CONTROVERSA REVOLUÇÃO

Naquele fim de 1936, Bastos Padilha planejava outro passo ambicioso para o futebol do Flamengo: a contratação de um treinador estrangeiro para o lugar de Flávio Costa. E abordou seu meia europeu em busca de um nome "capaz de trazer relevante contribuição para o futebol brasileiro". Engel sugeriu três: o inglês Jimmy Hogan (um dos técnicos mais influentes na Europa no início do século), o suíço Robert Pache (ex-atacante da seleção helvética vice-campeã olímpica nos Jogos de Paris, em 1924) e o húngaro Dori Kurschner.

A justificativa apresentada por Engel de que todos os três eram de primeira linha na Europa não satisfez Bastos Padilha. O presidente queria um nome que poderia revolucionar o jogo em âmbito nacional. A preferência do meia recaía naturalmente sobre Kurschner, já que o conhecia bem pelos anos de trabalho juntos. Mas, sem querer parecer suspeito para indicá-lo, hesitava. O presidente, que falava alemão fluentemente, foi apertando o jogador, que acabou contando tudo sobre sua experiência profissional com o técnico húngaro na Suíça.

Fritz Engel (de braços cruzados) e Dori Kurschner (de terno): histórias entrelaçadas

Depois disso, veio a segunda parte do "interrogatório": Bastos Padilha perguntou a Engel, então já plenamente ambientado e adaptado, o que ele achava do jogador brasileiro. Com base em suas observações, o meia disse exatamente o que o dirigente esperava ouvir: "O jogador brasileiro, senhor presidente, sempre foi considerado na Europa como o melhor do mundo em malabarismo. Mas é, em contrapartida, um jogador falho por causa da precária preparação física, falta de assistência técnica e ausência total de controle médico", opinou.

O presidente rubro-negro então perguntou se já poderia telegrafar a Dori Kurschner, mas Engel preferiu escrever uma carta objetiva expondo e explicando o convite ao treinador. E pediu ainda a Bastos Padilha que Flávio Costa ficasse no clube trabalhando ao lado de Kurschner, o que acreditava ser, além de boa política, muito proveitoso ao treinador brasileiro. O presidente concordou com o argumento e aceitou. E prontamente o jogador se pôs a escrever a carta ao velho comandante com a proposta do clube, além de um comentário pessoal.

"O que lhe posso adiantar é que este é um país maravilhoso, de futebol igualmente maravilhoso, mas desorganizado. Se a proposta for aceita, o senhor deve vir preparado para assumir uma grande responsabilidade perante o Flamengo, um clube apaixonante, de torcedores que às vezes se tornam exaltados. A convivência com o futebol brasileiro me leva a deduzir que seu material humano é riquíssimo, superior até ao europeu. Falta-lhe disciplina", relatava Engel, radiografando as virtudes e defeitos do jogo por aqui.

"A técnica individual", prosseguia o alemão na carta, "é perfeita, nascente em qualquer pé que bate numa bola. A tática, entretanto, primitiva. Também não existe assistência médica, e a alimentação deixa muito a desejar. Espero que o senhor compreenda bem isto tudo antes de assumir a decisão de viajar", concluía. Aconselhado por seu antigo comandado, Dori Kurschner topou a empreitada e, no dia 16 de março de 1937, desembarcava no porto do Rio de Janeiro de sua viagem no Augustus, navio de luxo da frota marítima italiana.

Nada mais seria como antes no Flamengo. A chegada de Kurschner impactaria a todos: imprensa, torcida, jogadores e até o próprio treinador e a trajetória de Engel no clube (até a Seleção Brasileira, dado que Flávio Costa em alguns anos viria a assumir a Seleção Brasileira, à qual levou um esquema tático inspirado no que ele viu Kurschner utilizar no Flamengo, culminando com o vice-campeonato na Copa do Mundo de 1950). Logo nas primeiras declarações, mostrou ter prestado atenção à recomendação do meia alemão e anunciou que seu trabalho na direção no time só começaria após analisar a condição física e clínica de cada jogador: "Meu trabalho, em grande parte, terá de ser orientado pela palavra do médico". Só depois é que viria a avaliação técnica e a implementação do esquema tático.

"Tática", aliás, era uma palavra quase inédita nas discussões sobre futebol por aqui. A ponto de Mário Filho ter de escrever artigos no Jornal dos Sports destrinchando o que se queria dizer com o termo. Jogava-se aqui na mesma formação desde que o futebol chegara ao país, na virada do século: o que ficaria mais tarde conhecido numericamente por 2-3-5 (ou "pirâmide"). E o resto se deixava por conta do jogo intuitivo próprio dos craques. Qualquer outra maneira de se fazer era encarada com estranhamento, como invenção de moda.

O mesmo acontecia nos treinos: o que se fazia aqui era correr e jogar, como se fosse um grande "rachão". Quando Kurschner mandou trazer uma dúzia de bolas para o campo com o objetivo de fazer os jogadores aprimorarem o domínio, passes longos e curtos, chutes, cabeceio, piques, enfim, fundamentos do jogo, não tardou a virar piada no Café Rio Branco, inflamado reduto rubro-negro do Centro da cidade. Afinal, a cultura do futebol daqui era a do quem é bom já nasce feito. "Futebol se joga é com uma bola só", diziam, entre risadas.

A novidade tática que Kurschner trazia, porém, tinha menos a ver com o WM clássico britânico, em que o beque central era uma figura parruda, um mero rebatedor, do que com sua adaptação centro-europeia, em que o centromédio atuava no espaço entre os dois zagueiros e os outros dois médios e tinha perfil de distribuição de jogo. Um meio do caminho entre o 2-3-5 e o sistema com três zagueiros. Era nessa função que ele pretendia instaurar Fausto dos Santos, com base nas suas observações feitas logo nos primeiros treinamentos.

Leônidas e Engel (ao centro) ouvem atentos a preleção de Dori Kurschner

Tanto Kurschner quanto Engel conheciam Fausto da Suíça. O médio havia sido vendido pelo Vasco ao Barcelona em 1931, mas não durou muito na Catalunha: os médicos detectaram um problema em seus pulmões e, diante de um quadro inicial de tuberculose (doença fatal na época), recomendaram seu empréstimo ao Young Fellows, um dos rivais do Grasshoppers em Zurique, certos de que os ares da cidade poderiam ajudá-lo no tratamento. O problema é que Fausto, boêmio notório desde os tempos de Bangu, não se interessava em se tratar.

Fausto então logo retornou à América do Sul, primeiro em rápida passagem pelo Nacional do Uruguai e em seguida a volta ao Vasco, de onde saiu brigado para o Flamengo. E já nos primeiros treinos de Kurschner, os problemas entre jogador e treinador começaram. Conhecendo o quadro clínico delicado do médio, o húngaro – que não falava português e tinha que recorrer a um alemão professor de natação do clube como seu intérprete – tentava se aproximar de Fausto para convencê-lo de que naquela função ele pouparia a saúde e renderia bem mais.

Mas havia no futebol brasileiro da época não só a noção de que um esquema com três zagueiros seria por demais defensivo, como também a de que recuar um médio – que atuava numa das posições mais nobres em campo – para a zaga – uma das mais ignaras – seria um desprestígio, quase uma ofensa ao jogador, que se sentiria rebaixado. Fausto, nome de peso e, portanto, influente no elenco, na torcida e na imprensa, rebelou-se. Com isso, automaticamente Dori Kurschner começava a cair em desgraça no início de seu trabalho.

Só que o húngaro também tinha seus partidários: setores da imprensa (entre eles Mário Filho e o Jornal dos Sports), outros nomes pesados do elenco (Domingos e principalmente Leônidas) e sobretudo o presidente Bastos Padilha, que deu carta branca a Kurschner para as reformulações. E quando a paciência do quase sempre polido treinador se esgotou, ele decidiu barrar de vez Fausto. E quem passou a ocupar a posição de centromédio na função pretendida pelo técnico? O alemão Fritz Engel, que já atuara assim na Alemanha e na Suíça.

No início, Kurschner chegou a hesitar entre Engel e o experiente médio Otto, jogador consagrado no Bonsucesso de Gentil Cardoso (o primeiro a esboçar o WM no país), para aquela posição. Mas o fato de já ter trabalhado com o alemão (que, como ele, vinha de uma escola onde o sistema estava mais assimilado) e a qualidade do passe do jogador pesaram para escalá-lo em função tão crucial. E Engel também poderia, quando preciso, fazer o beque central do WM clássico, fixo na área, usando de seu porte físico para marcar o centroavante adversário.

Atuando mais recuado, Engel naturalmente balançaria bem menos as redes em 1937 do que havia feito no ano anterior, quando marcou 13 gols em 26 jogos. Nesta segunda temporada no clube ele seguiria como titular, mas só anotaria quatro tentos, todos eles nas vezes em que atuou na linha de ataque. Um deles na vitória de 5 a 3 sobre o Atlético Mineiro, que acabara de vencer o Torneio dos Campeões da Federação Brasileira de Football (entidade rival de CBD).

Outro gol simbólico viria no empate em 2 a 2 com o Vasco em São Januário no dia 15 de agosto. Afinal era o primeiro confronto entre os rivais desde a debandada vascaína da LCF para fundar a FMD, em 1935. Acontece que, em julho de 1937, as duas ligas concorrentes haviam chegado a um acordo, que selou a chamada "pacificação" e levou à criação de uma entidade única, a Liga de Football do Rio de Janeiro (LFRJ). Com todos os principais clubes sob o mesmo guarda-chuva, uma série de amistosos entre eles foi realizada.

Um pouco antes, no dia 16 de julho, Engel também havia participado (atuando como médio) de um amistoso que discretamente entraria para a história rubro-negra: a vitória por 4 a 2 sobre um combinado argentino chamado Aliança Beccar-Varela. Nesta equipe estava o ponta Agustín Valido, que dentro de pouco tempo se juntaria ao clube para fazer história anos depois. Mas ele não seria o único reforço oriundo do país vizinho: do meio daquela temporada em diante, o elenco rubro-negro passaria a contar com diversos jogadores argentinos.

Engel ganha a disputa aérea na vitória sobre o Atlético Mineiro em Laranjeiras

Com efeito, no jogo contra o Madureira pelo Carioca no velho campo do Tricolor Suburbano na rua Domingos Lopes, em 31 de outubro, o Flamengo entrou em campo com nada menos que sete forasteiros: Engel de centromédio, o goleiro espanhol Talladas (ex-Celta de Vigo e Galícia, da Bahia) e cinco argentinos: o zagueiro Atmio Luis Villa (ex-Lanus), o médio-esquerdo Arcádio López (ex-Ferro Carril), o meia-direita Agustín Valido (ex-Boca e Lanus), o centroavante Agustín Cosso (ex-Vélez) e o meia-esquerda Emilio Novo (também ex-Ferro Carril).

Engel deixava de ser o único estrangeiro no time, mas desde que entrara no lugar de Fausto, no início do ano, ele também se tornara alvo dos que atacavam o técnico. "A partir dessa data tornei-me um 'espião de Kurschner'. Poucos me encaravam de frente. Raros me tinham na conta de amigo. Que podia fazer, se já não me queriam bem? Provar que não estava ali para espionar ninguém? Era direito isso? Estava em boa paz com a minha consciência. Tinha outro ofício. Podia procurar outro clube. Não liguei", comentou no depoimento de 1974.

Alguns jornais também carregavam nas tintas e caprichavam no tratamento cruel aos dois europeus. O Diário de Notícias, por exemplo, era um dos que extrapolavam, falando em "influência nefasta" do húngaro e publicando uma caricatura do treinador (ou "destreinador", como o chamava) caracterizado como "Açougueiro de Viena". Engel também não era poupado: apelidavam-no desde "funcionário" até de "cunhadinho" e "doce de coco" de Kurschner, além de afirmar que seu estilo de jogo atrapalhava o de Domingos da Guia.

A desastrosa estreia no Campeonato Carioca, com goleada de 4 a 0 para o São Cristóvão em Laranjeiras no dia 3 de outubro, também não ajudou. Porém, nem mesmo quando o time passou invicto por todos os 11 jogos do segundo turno da competição, aplicando incríveis goleadas como os 9 a 3 no Andarahy e os 5 a 1 no Vasco, os méritos do treinador foram reconhecidos: na ocasião, o Diário de Notícias preferiu atribuir a melhora sensível da campanha ao fato de o time do Flamengo vir "empregando somente o padrão brasileiro" de jogo.

A reação no returno (que adentrou o ano de 1938) não bastou, e no fim das contas o Fluminense levou outro título. O jejum rubro-negro no campeonato já chegava a uma década, e a pressão sobre o treinador só crescia. Quando Fausto foi enfim trazido de volta ao time, na metade do returno, Engel passou de novo ao ataque e balançou as redes não só naqueles 5 a 1 sobre o Vasco, batendo pênalti, como também em outra vitória elástica sobre o rival: 5 a 2 num amistoso em Campos Sales em 12 de fevereiro, logo após o fim do Carioca.

Veio então uma excursão a Salvador (na qual o Flamengo enfrentou o Botafogo local, o Bahia, o Ypiranga e o Galícia), o Torneio Início (resgatado após quatro anos) e, em meados de abril, o novo Torneio Municipal, que reunia os mesmos nove clubes que disputariam o Carioca de 1938 se enfrentando em turno e returno. Com o trabalho do treinador minado por todos os lados, o Fla perdeu nada menos que nove dos 12 primeiros jogos nesta competição. "Mestre, há raios no céu!", dizia Engel. "Deixe que caiam!", teria respondido Kurschner.

Até que Engel não suportou mais. "Cada dia que a gente passa aqui, mestre, representa um novo desafio, um novo passo no caminho de uma úlcera ou um enfarte. Por mim, prefiro ir embora". Bastos Padilha já havia renunciado à presidência. Os jornais que defendiam Kurschner já admitiam a batalha como perdida. E do lado dos opositores do treinador não havia mais respeito algum, fosse da parte de jornalistas, de jogadores ou de dirigentes, como o diretor de futebol Joaquim Guimarães e suas constantes interferências na escalação.

O alemão vestiria a camisa rubro-negra pela última vez em 3 de julho de 1938, no empate em 2 a 2 com o Botafogo pelo Torneio Municipal. Ao todo, fizera 73 partidas e 22 gols. Pediu rescisão de contrato com o Flamengo e acertou sua transferência exatamente para o Botafogo, seu último adversário em vermelho e preto. Ficaria no clube de General Severiano até o fim de 1939, numa passagem minada por lesões. Ainda tentaria continuar a carreira no São Cristóvão, em 1940, mas logo se retiraria dos gramados para se dedicar a outra profissão.

O primeiro à direita no Fla de 1938: a cara fechada indica a saída iminente

Pouco tempo depois da saída de Engel do Flamengo, Kurschner também veria seu fim da linha no clube. Sua situação se agravara com as derrotas para Vasco e Fluminense nos dois primeiros jogos do time em seu novo estádio na Gávea. No dia 26 de outubro de 1938 ele entregaria o cargo ao diretor Hilton Santos, mas sua rescisão só seria acertada em 17 de novembro. E logo ele receberia um convite do dirigente botafoguense Carlito Rocha para comandar seu time, no qual se encontraria outra vez com Engel e trabalharia até agosto de 1940.

Pouco tempo depois, em 8 de dezembro de 1941, o húngaro faleceria no Rio vitimado por um ataque cardíaco. Fausto, seu suposto antagonista na berlinda, já havia falecido de tuberculose em Minas Gerais com apenas 34 anos, em 28 de março de 1939. Por outro lado, neste mesmo ano quem saía consagrado era Flávio Costa, a quem Engel atribuía ter tramado nos bastidores para o declínio do treinador europeu. Após passar pela Portuguesa carioca, Flávio voltou ao Flamengo e levou o time ao título carioca, pondo fim ao jejum de 12 anos.

Fritz Engel, por sua vez, afastou-se definitivamente do futebol e foi tocar a vida. Fez-se industrial, estabeleceu uma família e por muitas décadas permaneceu no anonimato, até ser procurado em Duque de Caxias, onde vinha morando, pelo jornalista Geraldo Romualdo da Silva, do Jornal dos Sports, para falar de sua passagem e da de Kurschner pelo clube, em aspas que reproduzimos aqui. Tempos depois, em 1º de abril de 1983, a dois dias de completar 73 anos, faleceria no Hospital de Bonsucesso, com cobertura discreta da imprensa.


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