quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A Epopéica Consagração do Primeiro Tri-campeonato Carioca do Flamengo


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle, na minha opinião, o melhor cronista sobre história do Flamengo de todos os tempos, que assim narrou tais detalhes em seu blog Flamengo Alternativo:



O título carioca de 1944, que deu ao Flamengo seu primeiro tricampeonato estadual, é um dos mais lembrados da história do clube. O gol de cabeça do argentino Agustín Valido contra o Vasco fechou uma campanha marcada pela superação para uma equipe tida como liquidada. O time de Flávio Costa perdeu peças fundamentais antes e durante sua caminhada e andou quase sempre à margem de favoritismos. Mas, bem à moda flamenga, arrancou no final e levou outro caneco graças à velha e boa mistura de categoria e raça, experiência e heroísmo. Um tri lendário.


A SAÍDA DE DOMINGOS DA GUIA

Se a conquista do bi carioca pelo Flamengo em 1943 viera de forma categórica, representando o auge daquele time, o primeiro obstáculo ao tri não demoraria a aparecer. Já na segunda quinzena de janeiro de 1944, o clube se veria envolvido num dos casos mais discutidos daquele ano: a venda do zagueiro Domingos da Guia para o Corinthians, que desencadeou a revolta da torcida rubro-negra e de grande parte da imprensa carioca contra o presidente do clube, Dario de Mello Pinto, além de acirrar ainda mais a rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Desde a adoção do profissionalismo, no início da década anterior, o futebol carioca havia tomado do paulista o status de principal força nacional. Mas na primeira metade dos anos 1940, turbinados pelas gordas arrecadações oriundas do recém-construído Pacaembu e pelo crescimento industrial de São Paulo, os clubes bandeirantes ensaiavam uma recuperação e já rivalizavam no aspecto financeiro, a ponto de o São Paulo pagar o valor recorde para transferências no futebol brasileiro ao tirar Leônidas da Silva do Flamengo em meados de 1942.

Na época havia o Campeonato Brasileiro de Seleções, decidido quase todo ano entre cariocas e paulistas. Se os primeiros haviam dominado a competição durante os anos 1930, os segundos vinham de levantar um bicampeonato em 1941 e 1942, em ambos os anos superando os favoritos cariocas. A seleção do antigo Distrito Federal, no entanto, daria o troco em 1943, reconquistando a taça com o requinte de aplicar uma estrondosa goleada de 6 a 1 nos paulistas em São Januário em um dos jogos da série decisiva, no fim de dezembro.

Diante disso, em meados de janeiro de 1944, quando começou o burburinho dando conta de que o Corinthians fizera proposta oficial (e por quantia fabulosa) ao Flamengo pelo passe de Domingos, parte da imprensa carioca naturalmente encarou o assunto como uma retaliação paulista à perda do título brasileiro, buscando enfraquecer o futebol do Rio. Assim, o caso passou a transcender o clube: "Domingos não é só um defensor do Flamengo; é um patrimônio do football da cidade", declarou Vargas Netto, presidente da Federação carioca.

Outro ponto para o qual a imprensa do Rio chamava a atenção eram os valores oferecidos pelo Corinthians na negociação, supostamente conflitantes com uma determinação do Conselho Nacional do Desporto (CND) que estipulava um teto de Cr$ 650 mil para gastos com elenco (incluindo passes, salários e luvas) por parte dos clubes. Falava-se que o clube do Parque São Jorge desembolsaria até Cr$ 350 mil, somando as partes do Flamengo e do jogador. Era quase o dobro do que o São Paulo pagara para levar Leônidas um ano e meio antes.

A controversa venda de Domingos em manchete do Jornal dos Sports

Domingos, por sua vez, dizia que gostaria de continuar no Flamengo, clube em que atuaria por mais tempo na carreira e onde estava desde 1936. Mas vinha se indispondo com dirigentes rubro-negros, em especial com Dario de Mello Pinto, num atrito que tivera sua origem na concentração dos jogadores, na semana que antecedeu a perda do título carioca de 1941, no notório Fla-Flu das "bolas na Lagoa". O zagueiro chegara a entrar em litígio com o clube em meados de 1943, só acertando os ponteiros pouco antes do início do Campeonato Carioca.

Já o presidente rubro-negro crescera os olhos sobre o montante oferecido pelo Corinthians, até porque a situação financeira do Fla não era das melhores. O negócio foi concretizado sob sigilo, enquanto Dario, para aplacar a fúria dos torcedores, mantinha pela imprensa que Domingos era inegociável. Quando o desfecho do caso veio à tona, o mandatário – que anos depois se desfaria de Zizinho para o Bangu de maneira tola – tratou de transferir a responsabilidade ao jogador, o qual teria supostamente manifestado o desejo de deixar a Gávea.

Quem também não ficou exatamente triste com a saída do "Divino Mestre" foi o técnico Flávio Costa. Em entrevista à biografia do zagueiro, seu companheiro de defesa Newton Canegal lembrou de ter ouvido o treinador dizer que deu "graças à Deus quando Domingos saiu", já que ele não podia tirá-lo do time. Comentário que, aliás, só faz alimentar certa reputação angariada por Flávio ao longo de sua carreira: a de não ser um grande apreciador de zagueiros técnicos, preferindo o estilo rebatedor que décadas depois seria conhecido como "zagueiro-zagueiro".


O INÍCIO DA TEMPORADA

Vendido Domingos, logo surgiu o questionamento: quem seria seu substituto? A primeira aposta, endossada pela revista Esporte Ilustrado, era o gaúcho Artigas, que, embora integrasse o elenco desde 1939, nunca havia ido além de um tapa-buraco, fosse atuando como médio-direito, médio-esquerdo, centromédio ou até mesmo na zaga. Com ele, o Fla iria a São Paulo para dois amistosos contra o Corinthians antes de encarar os Torneios Relâmpago (em março) e Municipal (entre abril e junho), que serviriam de termômetro para o certame principal.

Os resultados, porém, foram desastrosos, com a defesa se revelando vulnerável demais sem Domingos: contra o Corinthians, duas derrotas por 3 a 2 e 4 a 2. E somando os dois torneios que viriam na sequência, o Flamengo deixaria passar assombrosos 33 gols em 13 jogos, incluindo pesadas derrotas de 6 a 2 e 4 a 2 para o Botafogo e de 5 a 2 para o Vasco – além de, naturalmente, terminar bem longe de ambos os títulos. Sem a presença impositiva de seu antigo líder, o setor defensivo rubro-negro não botava mais medo algum nos adversários.

"Este ano iniciou mal", recordou Zizinho em sua autobiografia Zizinho: O Mestre Ziza. "(Domingos) deixava as fileiras de um exército em plena campanha, no momento mais psicológico: Da Guia nos abandonava, este sereno jogador, um verdadeiro comandante e um irmão mais velho fora do gramado", lamentou. "Houve um momento de desânimo entre nós, parecia quase impossível a disputa do campeonato sem aquela segurança em nossa defesa. Entrar em campo, olhar para trás e não ver o Da Guia era coisa muito séria", escreveu o Mestre.

O argentino Coletta (à direita): outra aposta para o lugar de Domingos

O jeito foi pegar o dinheiro da venda de Domingos e buscar na Argentina outro zagueiro – este, bem ao gosto de Flávio Costa: o vigoroso Sabino Coletta, do Independiente (zagueiro que havia sido o titular da Seleção da Argentina na Copa Roca de 1939). Junto dele veio outro nome do futebol platino: o meia-esquerda Rafael Sanz, destaque do pequeno Banfield e trazido para tentar suprir outra perda iminente: a de Perácio, recrutado pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) no ano anterior e vivendo a expectativa de, a qualquer momento, ter de se juntar aos "pracinhas" na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

A dupla estreou em 17 de junho, na derrota por 1 a 0 diante do Fluminense em São Januário pela penúltima rodada do Torneio Municipal, o qual, a exemplo dos Torneios Relâmpago e Início (este disputado em 26 de março), acabou vencido pelo Vasco. Dirigidos pelo uruguaio Ondino Viera, os cruzmaltinos despontavam como os grandes papões da temporada e eram os maiores favoritos ao título que não conquistavam desde o período em que o futebol carioca se dividia em duas ligas, antes da fusão (conhecida como "pacificação") ocorrida em 1937.

Vindo de seguidas campanhas fracas na virada da década (foi sexto colocado em 1939 e sétimo em 1942), o Vasco havia se reerguido com uma equipe bastante renovada durante o certame de 1943, apesar de ver a taça ficar de novo com o Flamengo. Assim como o Fluminense, contava com um elenco numeroso, porém bastante coeso – ao contrário dos tricolores, que começaram a temporada de 1944 em péssima forma, vencendo sua primeira partida apenas no fim de abril, já pelo Torneio Municipal, e só daí em diante ensaiaram uma reabilitação.

Quem também buscava encerrar seu jejum de conquistas era o Botafogo. O clube de Heleno de Freitas desejava se redimir da campanha vexatória de 1943, quando terminou só em sétimo lugar entre dez equipes. No entanto, já naquela época a imprensa comentava a incrível capacidade dos alvinegros de, mesmo contando com grandes jogadores, perderem o rumo ao se verem em situações favoráveis nos certames: havia o exemplo recente de 1942, quando o clube chegou a abrir vantagem na ponta, mas no fim viu o título ir para o Flamengo.

A se tirar pelo desempenho no Torneio Municipal, o maior concorrente do Vasco seria o América, que cumpriu campanha sólida naquela competição e terminou na segunda colocação apenas um ponto atrás dos cruzmaltinos, tendo ainda o ataque mais positivo do certame (27 gols em nove partidas). Comandado pelo inteligente, porém subestimado Gentil Cardoso, o time rubro precisaria lidar, no entanto, com uma baixa sensível às vésperas do início da competição: seu centroavante, o gaúcho César, foi vendido ao Corinthians no fim de junho.


COMEÇO OSCILANTE NO CARIOCA

E seria exatamente o América o adversário do Flamengo na rodada de abertura do Campeonato Carioca. Entre baixas e retornos, Flávio Costa teria de quebrar a cabeça para escalar a zaga, já que Coletta estava lesionado e Newton Canegal discutia sua renovação de contrato. Além disso, Perácio, que parecia recuperado de lesão e treinou durante a semana, foi confirmado como desfalque no setor ofensivo. Assim, o Fla teria dois médios, Artigas e Quirino, improvisados na defesa, com o mineiro Tião ocupando o lugar de Perácio na ponta-de-lança.

Biguá, o paraguaio Modesto Bria, e Jayme de Almeida

De resto era mesmo time que encerrara a campanha vitoriosa de 1943. No gol, a experiência de Jurandyr. Na chamada "linha média", firmava-se a trinca Biguá-Bria-Jayme – embora na prática, dentro do sistema conhecido como "diagonal", o trio não formasse uma linha e tivesse funções táticas bastante distintas uns dos outros. Nas pontas, o jovem Jacyr ocupava a direita enquanto Vevé, que já sofria com problemas crônicos de joelho, retornava na esquerda. Por dentro, Zizinho era o meia-armador e Pirillo, o valente comandante do ataque.

De branco, o ataque do Fla para a estreia: Jacyr, Pirillo, Zizinho, Tião e Vevé

Entretanto, aquela largada da campanha não seria nada promissora, dando aso ao que davam o time rubro-negro como acabado: o América dominou o jogo inteiro, apesar de só conseguir balançar as redes no segundo tempo. O ponta-esquerda Jorginho abriu a contagem, o meia Lima ampliou num rebote de Jurandyr, e o mesmo Jorginho ainda perdeu a chance de fazer o terceiro ao chutar para fora um pênalti cometido por Biguá. No fim, Vevé descontou para o Fla e Pirillo ainda acertou a trave. Mas a vitória americana por 2 a 1 foi justa.

Para quem acreditava em superstição, porém, era até um bom sinal, já que o Fla havia sido vencido pelo América no primeiro turno tanto na campanha de 1942 quanto na de 1943 – antes de dar o troco, é claro, como juros e correção nos turnos seguintes. Outra escrita havia contra o adversário seguinte, o Botafogo, para quem o Flamengo não perdia pelo Carioca desde 1941. Com os retornos de Newton e Coletta na defesa e de Perácio no setor ofensivo para o confronto a ser disputado em Laranjeiras, os rubro-negros tentariam a reabilitação no certame.

E ela viria de maneira categórica: senhor de todo o jogo, o Flamengo perdeu a chance de abrir o placar ainda no começo do primeiro tempo quando Perácio chutou um pênalti nas mãos do goleiro Ary. Mas na etapa final a goleada rubro-negra se desenhou quando Biguá, o melhor jogador em campo, arrancou da lateral direita e disparou um petardo ao se aproximar da área alvinegra para colocar o Fla em vantagem e, logo em seguida, o centromédio botafoguense Santamaria se lesionou, passando a fazer número na ponta-esquerda.

O Botafogo, é verdade, ainda conseguiu empatar num pênalti batido por Válter. Mas, dominado inteiramente (Heleno era completamente anulado por Newton Canegal), apenas assistiu ao Flamengo chegar à vitória por 4 a 1, com Zizinho marcando duas vezes e Pirillo completando o placar. Era a quarta vitória rubro-negra consecutiva marcando quatro gols sobre os rivais pelo Carioca: antes, havia feito 4 a 0 na Gávea no terceiro turno de 1942 e vencido por 4 a 1 em General Severiano e 4 a 2 também na Gávea nos dois confrontos de 1943.

O próximo oponente era o São Cristóvão, a grande sensação do ano anterior ao conquistar o Torneio Municipal e brigar até quase a última rodada pelo título carioca. Embora tivesse vendido parte de sua linha média (ponto alto do time) de um ano para o outro, ainda era tido como um time perigoso. Já no Fla, o argentino Coletta, que demonstrava dificuldade em se adaptar ao sistema de marcação do time, sofreu distensão muscular e voltou a ser baixa. Foi a deixa para Flávio escalar a defesa que se firmaria como a titular da campanha.

Antigo fiel escudeiro de Domingos, Newton Canegal foi deslocado do posto de zagueiro esquerdo para aquele que era ocupado pelo Divino Mestre: o centro da defesa. Com Biguá mantido na zaga direita, o outro lado ganhou de vez um ocupante antes improvisado por ali: o mineiro Quirino, vindo do Bonsucesso em meados de 1942. Médio de origem, era bastante rápido, embora de compleição física robusta, além de muito vigoroso na marcação. Até ali só era usado para cobrir as ausências de Volante ou de Jayme. Agora tinha sua grande chance.

O Flamengo, no entanto, teve que correr duas vezes atrás do empate naquela tarde de 16 de julho em São Januário. No primeiro tempo, o São Cristóvão saiu na frente com Nestor, e o Fla empatou com Perácio. Já na etapa final, Santo Cristo recolocou os cadetes em vantagem, mas Pirillo, cobrando pênalti que ele mesmo sofreu, fechou o placar em 2 a 2. A oscilação da equipe já levava alguns órgãos de imprensa a tirar os rubro-negros do páreo, como decretou a revista O Globo Sportivo: "O Flamengo distancia-se cada vez mais do campeonato".

Se o São Cristóvão havia sido a sensação de 1943, o próximo adversário rubro-negro era a grande surpresa de 1944: o Canto do Rio, que, mesmo sendo de outro estado (o antigo estado do Rio de Janeiro, tendo Niterói como capital), disputava o Carioca graças a uma licença especial e vinha colhendo ótimos resultados: terceiro no Torneio Municipal (só atrás de Vasco e América), dividia a liderança do Carioca com o Fluminense ao fim da terceira rodada, após vencer São Cristóvão e Bonsucesso e arrancar um 2 a 2 com o Vasco em São Januário.

Os destaques do clube niteroiense eram o experiente ponta-direita Paschoal, ex-Botafogo, e a dupla de goleadores formada por Carango e Geraldino (que se sagraria o artilheiro daquela edição do Carioca), mas a grande revelação era o médio Eli do Amparo, que tivera rápida passagem pelo Vasco por empréstimo durante o Torneio Relâmpago, mas retornara para o Municipal e o Carioca, tornando-se, de passagem, o primeiro atleta do clube convocado para a Seleção Brasileira, no escrete que fez dois amistosos com o Uruguai em maio.

Com o gramado da Gávea castigado pelas chuvas e transformado num grande lamaçal, o Fla enfrentou o Canto do Rio com alterações nas pontas: Tião e Jarbas entravam nos lugares de Jacyr e Vevé, ambos com problemas físicos. E os dois acabaram marcando os gols da vitória por 2 a 0: Tião num belo sem-pulo na etapa inicial e Jarbas aproveitando uma sobra a dois minutos do fim do jogo, que de resto foi truncado, com duas expulsões para cada lado (Pirillo e Bria pelos rubro-negros e Eli do Amparo e Guálter pelos cantorrienses).

O melhor jogador em campo naquela partida – o único a receber nota acima de 8 na avaliação feita pela revista O Globo Sportivo (ganhou um 9) – era um nome pouquíssimo badalado, mas que discretamente vinha se firmando no time do Flamengo: o mineiro Quirino acumulava atuações sólidas no lado esquerdo da defesa, mesmo atuando improvisado. Já fazia esquecer Coletta (que chegara com prestígio de jogador internacional) a ponto de ganhar da torcida um apelido para lá de lisonjeiro: para os rubro-negros, virara "Quirino da Guia".

Fechando o mês de julho, seria a vez de enfrentar, no dia 30, o lanterna Bonsucesso também na Gávea. O primeiro tempo, em que os rubro-negros ficaram com um a menos após a expulsão de Biguá, foi mais parelho: Perácio abriu a contagem de pênalti e Helmar empatou para os visitantes. Já na etapa final – em que os leopoldinenses também tiveram um expulso, o médio Telesca – o time de Flávio Costa deslanchou: Pirillo anotou duas vezes antes de Perácio anotar mais um, com Zizinho e Jarbas completando a goleada de 6 a 1.

A seguir, o jogo contra o Madureira na Gávea, foi tumultuado: o Tricolor Suburbano abusou dos pontapés – nem sempre coibidos pelo árbitro Durval Caldeira – e, ainda no primeiro tempo, lesionou Perácio, que passou o resto da partida só fazendo número. Na etapa final os visitantes reclamaram do gol da vitória rubro-negra por 1 a 0, marcado por Pirillo, e ameaçaram deixar o campo após a expulsão de seu capitão, o uruguaio Spina, sendo demovidos por seu presidente Aniceto Moscoso, o lendário banqueiro do bicho da região.

A vitória apertada ajudou a não perder os ponteiros de vista. O Fla seguia em terceiro, a um ponto do Vasco e dois do líder Fluminense, e empatado com o Canto do Rio, que seguia sua trajetória sensacional naquela rodada ao golear o Botafogo por 5 a 1 no Caio Martins. Por outro lado, aquela seria a última partida de Perácio na campanha rubro-negra: afastado inicialmente pela distensão muscular sofrida contra o Madureira, ele embarcaria para a Itália em meados de setembro juntamente com as tropas da FEB para lutar com o Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial, aportando no dia 14 de outubro.

Sem Perácio, o argentino Sanz ganharia sua primeira chance no campeonato na partida contra o Bangu na Gávea. Os alvirrubros até ali somavam apenas um ponto no certame, mas vinham de endurecer o jogo contra o Fluminense em Laranjeiras, perdendo por apenas 1 a 0. Contra o Fla, no entanto, a história se revelou outra: a tranquila vitória rubro-negra por 4 a 1 foi inteiramente definida ainda no primeiro tempo, com uma tripleta de Pirillo (incluindo um de pênalti) e o substituto Sanz anotando o outro tento. Massinha descontou para o Bangu.

O desfecho do turno traria ao Flamengo dois clássicos cruciais, ambos na casa dos adversários: Fluminense em Laranjeiras seguido do Vasco em São Januário. Precisando vencer para se igualar aos tricolores na liderança, o Fla sofreu um pouco no início do primeiro confronto, mas não demorou a assumir o controle do jogo e dominar amplamente, tendo em Zizinho sua grande figura, lutando e organizando o setor ofensivo. Porém, o time esbarraria na firmeza da defesa do adversário, com o goleiro Batatais acumulando milagres e garantindo o 0 a 0.

Apertando a defesa do tricolor no Fla-Flu do turno, disputado à noite

Contra o Vasco, a atuação não esteve no mesmo nível, apesar de boas partidas de Zizinho, Jayme, Pirillo, Newton Canegal e Quirino. Porém, num jogo fraco no geral, o Fla saiu prejudicado pela confusa arbitragem de Antônio Reginato na derrota por 2 a 1. Os vascaínos abriram o placar com o ponteiro Chico, que claramente ajeitou a bola no braço no lance. Os rubro-negros empataram com Pirillo, mas logo a seguir Djalma recolocou o Vasco na frente. No fim, Rafanelli deu um rapa em Sanz dentro da área, mas o juiz ignorou o pênalti claro.

Bem na virada do turno, a derrota voltava a distanciar o Flamengo da ponta da tabela: o time que chegara a ser vice-líder agora era o quarto colocado com 12 pontos ganhos, três a menos que o Fluminense, ainda no topo, tendo entre os dois o Vasco e o Canto do Rio. O returno teria a mesma sequência de jogos, mas com os mandos invertidos – o que, para os rubro-negros, significava emendar mais dois clássicos seguidos: primeiro seria a vez de encarar o América na Gávea. E uma semana depois, enfrentar o Botafogo em General Severiano.

Assim como fizera contra o Vasco, o Fla não cumpriu boa atuação diante do América, exceto por boas partidas individuais de jogadores como Jurandyr e Jayme. Mas desta vez ao menos venceu – e por placar elástico: os rubros saíram na frente com Esquerdinha, mas num intervalo de cinco minutos Zizinho e depois Sanz, de cabeça, já haviam decretado a virada. Na etapa final, o Fla recuou e passou a jogar de contra-ataque. Mas ainda achou outros dois gols: Pirillo anotou o terceiro e Zizinho, batendo falta, fechou a goleada em 4 a 1.

Mas o que monopolizou as discussões no rescaldo daquela rodada foi o outro clássico, Fluminense x Vasco, disputado no sábado à noite em Laranjeiras e que foi interrompido já em sua fase final em virtude de uma briga generalizada entre atletas dos dois times. Curiosamente, tricolores e vascaínos voltariam a campo na quarta-feira, desta vez na Gávea, para disputarem os pouco mais de seis minutos restantes do duelo, que apenas confirmaram a vitória do Flu por 2 a 1. Era mais uma demonstração de ânimos exaltados naquele campeonato.

E já na rodada seguinte haveria outra, em General Severiano, quando o Flamengo foi enfrentar o Botafogo pela terceira rodada. Mais uma vez atuando mal, os rubro-negros saíram atrás quando Heleno marcou para os alvinegros em cobrança de falta. Porém, ainda chegaram a empatar quando Geninho perdeu a bola para Jarbas e este entregou a Jayme, que, com um chutaço de fora da área, superou o goleiro Ary e deixou tudo igual. Mas pouco antes do intervalo, o time da casa voltou a ficar em vantagem no placar com gol de Valsecchi.

O Flamengo até voltou melhor para a etapa final, mas quem marcou – por duas vezes – foi o Botafogo, primeiro com o ponta Walter e em seguida com Heleno. Os dois gols desarticularam a equipe rubro-negra, que ainda descontou com Jarbas após escanteio. Mas a reação e a própria partida terminaram aos 31 minutos após um daqueles lances eternamente controversos: o meia alvinegro Geninho chutou de longe na direção da meta, a bola bateu em algum lugar e voltou para o campo. O árbitro Aristides Figueira, o "Mossoró", deu gol.

Muito criticado pela crônica esportiva após o jogo por apitar sempre de longe, Mossoró acreditou – como também acharam muitos alvinegros – que a bola teria batido no ferro de sustentação das redes e, portanto, entrado. Já os rubro-negros podiam jurar que a bola batera na verdade no travessão e quicara fora sem cruzar a linha. E protestaram por alguns minutos até o capitão Jayme receber do dirigente rubro-negro Alfredo Curvelo a ordem expressa de outro cartola, Francisco Abreu: o time não daria nova saída e sentaria em campo.

Jayme, um dos principais expoentes da esportividade e do cavalheirismo no futebol brasileiro da época, era contra a ideia. Mas teve de acatar as ordens superiores. Sem ter como reiniciar o jogo, Mossoró apenas contou os minutos que faltavam para o fim até apitar encerrando o malogrado clássico. E o Fla, além de aturar as provocações da torcida da casa e ser duramente criticado na imprensa pela atitude de seus dirigentes, ainda foi punido com multa pela Federação Metropolitana, além de ter de devolver sua parte da renda do jogo.

Curiosamente, a coluna "Instantâneos", assinada pelo cronista Geraldo de la Barga, o "Bobina", no Jornal dos Sports, trouxe dois relatos sobre o lance de figuras conhecidas então ligadas ao Botafogo e que assistiam à partida. Um era Togo Renan Soares, o Kanela, que antes de fazer história no Flamengo trabalhou muitos anos como técnico em General Severiano. O outro era João Saldanha, que, aos 27 anos de idade, havia sido apontado no meio daquele ano o novo subdiretor de futebol profissional do Botafogo. E, para ambos, não foi gol.

"Por via das dúvidas" – escreveu o cronista, ao tentar buscar esclarecimentos sobre o lance muito contestado – "procurei dois botafoguenses que andassem pelas imediações do fato. Um foi o Togo. Ninguém mais Botafogo do que o Togo Renan Soares: 'Não entrou. Bateu no travessão!'" (declaração de Kanela). "O outro foi João Saldanha, desportista cem por cento, conhecedor profundo do 'association' – rapaz desapaixonado e amigo da verdade: 'Não bateu em ferro algum! Bateu na trave superior e saiu!'" (declaração de Saldanha).

Mas, ao contrário do que se possa imaginar, o gesto intempestivo de abandonar um jogo não era raro naquele tempo. Na abertura do Carioca do ano anterior, o Vasco não voltou para o segundo tempo do clássico diante do Fluminense em Laranjeiras (o qual já perdia por 3 a 0), reclamando da expulsão do atacante Isaías. Já em 1942, o América parou em campo no jogo contra o Botafogo em Campos Sales num protesto contra a arbitragem de Fioravanti D'Angelo, que, após uma briga generalizada, expulsara três atletas – todos americanos.

O próprio Botafogo, aliás, já se utilizara desse expediente em outras situações. Em 1934, no tempo da cisão de ligas, a equipe de General Severiano vinha sofrendo uma contundente derrota de 3 a 0 para o modesto Engenho de Dentro quando, a cinco minutos do fim, resolveu tirar seu time de campo em protesto por um suposto gol não validado, num lance em que – ironia das ironias! – a bola bateu na trave sendo, em seguida, rebatida pelos adversários. Restou ao Engenho de Dentro esperar em campo até o tempo regulamentar se esgotar.

Voltando a aqueles meados de setembro de 1944, o cenário no Flamengo era o de terra arrasada. Perder a invencibilidade de três anos diante do rival em jogos pelo Carioca era o de menos. A humilhação sofrida não só fizera o time ser de novo descartado do páreo para levantar o título como deixara quase todos no clube moralmente abalados. Contudo, havia no comando da equipe um treinador que sabia mexer com os brios de seus jogadores. E a ordem era se recompor para, ao menos, concluir o que restava de campeonato de maneira digna.

Assim, a escalação para o jogo contra o São Cristóvão na Gávea tinha algumas modificações. Se na defesa Coletta ganhava nova chance diante das más atuações recentes de Quirino, no ataque seu compatriota Sanz deixava o time sem convencer. Pirillo era outra baixa, mas por lesão. Quem retornava era Tião, ausente nas duas primeiras rodadas do returno e que agora atuaria em sua verdadeira posição, a ponta de lança, e não pela direita onde Nilo ocupava o posto. Já no comando do ataque quem aparecia pela primeira vez era Djalma.

Mesmo sem brilhar, o Fla passou fácil pelos cadetes. No primeiro tempo, Zizinho abriu o placar cobrando falta com "paradinha" que desmantelou a barreira, antes de Jayme ampliar de pênalti após toque de mão de Mundinho. Na etapa final, bastou apertar um pouco para Djalma fechar o jogo em 3 a 0. Uma semana depois, repetindo a escalação, o Fla foi a Niterói e somou mais uma vitória: um apertado 2 a 1 no Canto do Rio. Djalma inaugurou o escore aos cinco minutos, Carango empatou aos sete, mas Zizinho, na etapa final, garantiu o triunfo.

Adentrando o mês decisivo do campeonato, o Flamengo foi a Bonsucesso no dia 1º de outubro. Com Jacyr na ponta-direita e Pirillo de volta ao time formando dupla com Djalma no centro do ataque, os rubro-negros criaram chances para golear, mas venceram por "apenas" 2 a 0 – gols de Djalma e Jayme, de pênalti, um em cada tempo. O que ninguém esperava àquela altura é que o resultado acabasse valendo a ascensão da equipe de Flávio Costa – até pouco antes tida como fora do páreo – ao topo da tabela, num incrível empate quádruplo.


DE REPENTE, LÍDER NOVAMENTE

Quem colaborou bastante para a reviravolta na classificação – e, por tabela, ajudou muito o Flamengo – foi o América, que, como sempre, fazia campanha muito oscilante, permanecendo em grande parte do torneio numa distante sexta colocação. Porém, na mesma rodada em que o Fla venceu o São Cristóvão, os rubros surpreenderam ao derrubar o último invicto do certame, o Fluminense, vencendo em Laranjeiras por 2 a 1. E duas rodadas depois, foi a vez de baterem o Vasco por 3 a 2, impedindo os cruzmaltinos de assumirem a liderança isolada.

O clássico entre americanos e vascaínos, aliás, viu-se envolto em duas histórias nebulosas às quais a imprensa cedeu grande espaço nos dias seguintes ao jogo. Uma foi a suposta tentativa de suborno denunciada pelo zagueiro rubro Osni, que teria sido abordado por um homem com proposta em dinheiro para que ele amolecesse o jogo. A outra dizia respeito a uma dúzia de laranjas "batizadas" destinadas aos jogadores do América, entregues por um menino na porta do clube e que levariam o roupeiro do time ao hospital com distúrbios gástricos.

Na semana seguinte, o Flamengo foi de novo à Zona Norte, desta vez para encarar o Madureira em Conselheiro Galvão. Além do retorno de Tião no lugar de Djalma, os rubro-negros voltaram a contar com o grande Vevé, ausente de boa parte do campeonato devido a problemas crônicos de joelho. Mas, numa partida duríssima, quem brilhou foi o outro ponta, Jacyr, autor dos gols rubro-negros na vitória por 2 a 0, ambos no primeiro tempo. O jovem atacante, no entanto, lesionou-se no segundo tempo e ficou fazendo número em campo.

Naquela rodada, quem perdeu o bonde da liderança foi o Fluminense. Em incrível queda livre, os antes invictos tricolores haviam somado apenas um ponto nos últimos quatro jogos, perdendo não só para o América, como também para o São Cristóvão (2 a 0) e até para o vice-lanterna Bangu em Laranjeiras (3 a 2), além de empatarem com o Botafogo (1 a 1). Assim, de cinco pontos à frente do Flamengo na segunda rodada do returno, agora estavam dois atrás e já não dependiam das próprias forças. Fla, Bota e Vasco seguiam na ponta.

A dupla alvinegra se enfrentaria na rodada seguinte, enquanto ao Fla caberia enfrentar o mesmo Bangu que surpreendera o Fluminense em Laranjeiras e vinha de três vitórias seguidas, buscando se levantar das últimas posições da tabela. Originalmente marcado para São Januário, o jogo foi transferido na semana anterior para General Severiano, levando os rubro-negros de volta ao local da pesada derrota para o Botafogo que marcara um "antes e depois" na campanha. Com tudo isso, muita gente apostava em outra surpresa banguense.

"Iam jogar Bangu e Flamengo, os suburbanos com a credencial de um triunfo sobre um líder. Dos pupilos de Juca (o Bangu) diziam-se maravilhas. A vitória contra o Fluminense, levada à conta da forma do onze suburbano, que teria adquirido jogo novo. Players de 44 e antigos em forma excepcional, todos constituindo um conjunto perigoso e capaz de grandes feitos. Algo assim chegado ao milagre, justificando a surpresa da conquista contra os tricolores", escreveu Ricardo Serran, abrindo sua crônica do jogo para O Globo Sportivo.

"E o Flamengo?", prosseguia Serran. "Bom, do bi-campeão quase não se falava. Ou melhor, falava-se para apontar os defeitos do quadro. Nem mesmo a sua campanha silenciosa – em que pese o 'affaire' do jogo Botafogo e Flamengo – estava no primeiro posto, juntamente com o famoso esquadrão cruzmaltino. Os pessimistas preferiam falar em sorte dos rubro-negros, quando não no trabalho dos outros. Sim, os outros fizeram força, muita força mesmo, para colocar o Flamengo na situação que desfruta", comentava o cronista em tom irônico.

Com Quirino de volta à defesa no lugar do lesionado Coletta, o Flamengo largou em vantagem aos 15 minutos quando Pirillo acertou a trave e pegou ele próprio o rebote para mandar às redes. O Bangu, entretanto, deu a entender que endureceria também este confronto ao empatar aos 26 com Otacílio. Mas pouco antes do intervalo o Fla retomaria a frente no placar quando Tião cruzou fechado para área, o goleiro Robertinho saiu em falso e a bola entrou direto. Na volta para a etapa final, o que se viu foi o Bangu desmoronar completamente.

Foi então um recital de Vevé em meio à pressão rubro-negra sobre a sofrível saída de bola do Bangu. Logo aos seis minutos o ponteiro recebeu de Zizinho, invadiu a área, livrou-se da falta de Sousa e bateu para fazer o terceiro. Aos 10, ele ampliou com um chute forte e rasteiro. Aos 23, Zizinho chutou, Robertinho rebateu e Pirillo, sempre oportunista, apareceu para marcar o quinto. Aos 35, Vevé completou sua tripleta finalizando com estilo. E aos 40, Jacyr recebeu de Pirillo para fechar em 7 a 1 a goleada rubro-negra que impressionou a cidade.

E a conta poderia ter sido ainda maior: pouco depois do sexto gol o zagueiro banguense Bilulú interceptou a bola com a mão dentro da área, num pênalti tão claro que até o próprio jogador se acusou, levantando os braços para acenar ao árbitro Antônio Rocha Dias. O apitador, no entanto, fez que não era com ele e simplesmente mandou o jogo seguir. De todo modo, a goleada mantinha o Fla na ponta da tabela a duas rodadas do fim, agora tendo a companhia apenas do Vasco, que bateu o Botafogo por 1 a 0 em São Januário no sábado à noite.


UM HERÓI QUE RETORNA

Em seus dois jogos restantes, o Flamengo teria pela frente os clássicos contra Fluminense e Vasco – ambos com mando de campo rubro-negro, mas de início marcados para São Januário e Laranjeiras, respectivamente, devido a uma ordem baixada no início daquele ano pelo presidente da Federação, Vargas Netto, ainda ecoando a tragédia ocorrida num São Cristóvão x Flamengo em Figueira de Melo, em setembro de 1943, quando parte das superlotadas arquibancadas de madeira cederam, ferindo centenas de torcedores.

A medida tomada pelo presidente da entidade era a interdição dos estádios cariocas que ainda contavam total ou parcialmente com as arquibancadas em madeira, abrindo uma exceção para jogos menores em estádios que também contassem com acomodações em cimento. Na época, além do lance principal de arquibancada em concreto armado (o mesmo existente até hoje), o estádio da Gávea tinha sua capacidade completada por estruturas de madeira atrás dos gols e do outro lado do campo, já à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.

Quando a tabela do returno foi divulgada, em meados de agosto, indicando São Januário como local do Fla-Flu e Laranjeiras para o confronto da rodada decisiva contra o Vasco, o Flamengo se viu enfim instado a arregaçar as mangas e agir. No fim de setembro, o clube recebeu o OK da Federação para mandar os dois jogos decisivos na Gávea mediante a condição de construir novas arquibancadas de cimento em lugar das de madeira, com mais 10 mil lugares. Feitas a toque de caixa, as obras duraram cerca de 20 dias. Logo, tudo estava pronto.

Paralelamente, um outro – inesperado – trunfo para a reta final vinha sendo preparado: o retorno de Agustín Valido, ponta (ou meia)-direita argentino que defendera o Fla entre 1937 e 1943, sendo campeão carioca em 1939 e 1942. A história já tão diversas vezes contada remete ao início daquele mês de outubro, quando Valido, que se retirara dos gramados em maio de 1943 para tocar a tipografia que abrira no Rio em sociedade com dois compatriotas, bateu à porta da Gávea com um pedido.

O argentino veio solicitar ao técnico Flávio Costa a cessão do campo da Gávea para uma pelada entre funcionários de sua empresa e de outra equipe, no que foi atendido. No dia da partida, porém, um dos jogadores do time da gráfica não compareceu, e Valido teve que quebrar um galho jogando na zaga. Saiu-se bem melhor que o esperado, chamando a atenção de todos – inclusive de Flávio – pela ótima forma. De tal maneira que o treinador começou a fazer força para persuadir Valido a retornar aos gramados e ajudar o Flamengo na reta final.

Relembrou o argentino: "“Acontece que um dos meus jogadores faltou e fui obrigado a suar a camisa. Entrei de zagueiro, vejam só. Mas, sem falsa modéstia, atuei até bem. Foi aí que tudo começou. Flávio Costa dizendo que eu tinha que ajudar o Flamengo. Respondia que aquilo era uma loucura, não podia ser. Outras pessoas do clube engrossaram o coro, pedindo que eu voltasse. O Flamengo precisava, esse tipo de coisa”. Relutante, Valido não pretendia ter de novo o futebol como ofício. Mas a bola tem seus desígnios – e ele sabia muito bem disso.

Valido acabou aceitando ser inscrito como amador, procurando colaborar mais fora de campo ao emprestar sua experiência e capacidade de motivar os companheiros, além de eventualmente reforçar o elenco nos treinos – até porque Jacyr, então titular da ponta-direita, vinha jogando no sacrifício desde que se lesionara contra o Madureira e poderia se tornar mais um desfalque a qualquer momento. Porém, o argentino foi pego de surpresa quando Flávio anunciou que ele estava escalado para a partida contra o Fluminense.

Valido, Zizinho, Pirillo, Tião e Vevé: o ataque dos dois jogos finais

E lá foi o Flamengo a campo com Jurandyr, Newton, Quirino, Biguá, Bria, o capitão Jayme (que durante a semana esteve ameaçado de não jogar por lesão), Valido, Zizinho, Pirillo, Tião e Vevé. Antes daquela rodada, comentava-se na imprensa a possibilidade de um empate quádruplo ao fim do campeonato, dependendo de uma combinação de resultados. Fla e Vasco lideravam com 24 pontos, dois a mais que Flu e Bota. Para essa hipótese se materializar, porém, os tricolores deveriam, antes de tudo, derrotar os rubro-negros na Gávea.

Por um curto tempo, essa hipótese pareceu plausível já que, aos 15 minutos, Magnones abriu o placar para o Flu. Mas as chances tricolores começaram a morrer quatro minutos depois, quando Tião empatou a partida. E aos 31, quando a pressão rubro-negra já era sufocante para o adversário, Bria acertou um belo chute num rebote de escanteio e colocou o Fla na frente. Ainda antes do intervalo, aos 42, o árbitro Durval Caldeira marcou um pênalti para os rubro-negros que Jayme cobrou com categoria e converteu para ampliar a vantagem.

A arbitragem de Durval Caldeira, aliás, desagradaria aos dois times: logo a seguir da penalidade marcada para o Fla e protestada pelos tricolores, ele compensou marcando uma inexistente para o Flu. Jambo bateu e converteu, mas o juiz mandou voltar a cobrança. Na segunda batida, o atacante tricolor errou o alvo. Na volta do intervalo, o Fla saiu marcando com Zizinho, mas outra vez o árbitro entrou em cena para anular o tento, alegando impedimento de Pirillo no início do lance (antes, Durval já invalidara outro gol de Tião).

O Fla, no entanto, não se perturbou. Jogando com inteligência e confiança, logo continuou a balançar as redes tricolores. Aos 19 minutos, Zizinho apanhou um rebote de escanteio e, mesmo apertado por três adversários, chutou bem para fazer – agora sim! – o quarto gol. E aos 22, foi a vez de Pirillo escorar com uma belíssima cabeçada um cruzamento de Tião e marcar o quinto. Nesse momento, a torcida do Fla já acenava para os tricolores com lenços de adeus, enquanto Raúl Rodríguez, médio do Fluminense, xingava o juiz e era expulso de campo.

E ainda houve tempo para mais um gol rubro-negro, aos 34 minutos, quando Vevé desceu num contra-ataque e passou a Tião, que chutou na trave. No rebote, sempre oportunista, Pirillo surgiu para conferir e fechar a contagem em 6 a 1. Era a maior goleada da história dos Fla-Flus até ali – marca que, por ironia, seria batida novamente pelos próprios rubro-negros já no ano seguinte com um 7 a 0 pelo Torneio Municipal. Mas sobretudo era um resultado que, além de tirar de vez Flu e Bota da briga, reafirmava a força da chegada do Flamengo.


A DECISÃO ETERNA

No outro jogo crucial da rodada, o Vasco bateu o Bangu por 4 a 3 em São Januário na bacia das almas, graças a um gol de Ademir em impedimento. Mas era o que bastava para chegar ao duelo decisivo com os mesmos 26 pontos do Flamengo e manter viva a esperança de fechar o "Grand Slam" carioca vencendo todos os títulos possíveis da cidade na temporada. Por isso mesmo, e apesar da arrancada final do Flamengo, os cruzmaltinos eram apontados como favoritos pela maioria da imprensa: "O Vasco tem mais time", era o quase consenso.


Havia, porém, uma voz dissonante – e uma voz bastante vivida no futebol: Gentil Cardoso, técnico do América e que logo passaria por todos os grandes clubes da cidade, um dos treinadores mais astuciosos do país em seu tempo. Falando ao Globo Sportivo, Gentil reconhecia que o Vasco era um time muito bem treinado e não ficava atrás em termos técnicos. Não obstante, fechava com o Fla por um motivo simples: "A camisa rubro-negra. Às vezes a gente chega a ter a impressão de que quem joga é a camisa, e não o craque", opinava.

A se julgar pelo estado físico dos atletas rubro-negros na semana da decisão, parecia ser mesmo o caso de recorrer à "mística da camisa" (que vinha pelo menos desde 1927). O próprio Valido, que retornara ao time no Fla-Flu, sentia o corpo cobrar a conta do esforço feito em campo: "No dia seguinte eu não consegui andar. O corpo todo me doía. Não podia mover o pescoço. E tinha febre". O argentino era apenas um dos inúmeros casos clínicos com os quais o Dr. Newton Paes Barreto, médico rubro-negro, tinha que lidar.

"Parecia uma enfermaria e não uma concentração", comparou Zizinho em seu livro de memórias. Além da febre de Valido, outros dois casos em especial tiravam o sono de Paes Barreto e Flávio Costa. Vevé tinha o joelho esquerdo já minado pelas lesões que abreviariam sua carreira e, na reta final do certame, entrava em campo com o local enfaixado. Após o torneio, o ponta se submeteria a uma cirurgia de extração de meniscos. Já Pirillo sofria de orquite, inflamação nos testículos que causa uma das piores dores que um homem pode suportar.

E foi nessas condições – "cheirando a remédios", como diria Zizinho – que o Flamengo pisou o gramado da Gávea para enfrentar o Vasco que, com tantos nomes de alto nível no ataque, dera-se até ao luxo de descartar o cracaço Jair Rosa Pinto, escalado na preliminar de aspirantes. Naquela partida, o vencedor ficaria com o título, ao passo que o empate provocaria uma decisão extra, em melhor de três jogos. Com o estádio abarrotado e gente amontoada até nas árvores vizinhas, a tarde agradável de primavera tinha atmosfera carregada.

Só que mesmo com tantos astros em seu ataque (Ademir, Lelé, Isaías, Chico), o Vasco criou apenas uma chance clara de gol em todo jogo, aos 24 minutos do primeiro tempo, num lance em que Jurandyr pegou a finalização de Djalma no contrapé e ainda voltou para espalmar o rebote. O Fla era nitidamente o senhor das ações, embora tivesse em Valido um jogador que fazia número em campo, em condições físicas precárias. Por outro lado, quem brilhava era o capitão Jayme, um esteio do time, com a classe e o dinamismo de sempre no meio.

O jogo, entretanto, seguiu travado, tenso, num impasse de infartar até quase o seu final. Foi quando, aos 41 minutos da etapa final, o lateral Rubens fez falta em Vevé do lado esquerdo do ataque rubro-negro. O próprio ponta cobrou alçando para a área, a defesa vascaína rechaçou, e a bola então voltou para Vevé, que cruzou de novo. Saltaram Zizinho, Pirillo e Valido, mas foi o argentino que, num último esforço, acertou a cabeçada santa, mandando a bola às redes de Barqueta. 1 a 0 Flamengo. E a Gávea explodia de emoção represada!!


O campo foi rapidamente tomado, com os soldados do Gemac (Grupo Especial Mecanizado de Artilharia da Costa), todos rubro-negros, misturando-se aos jogadores e torcedores. Beijado no rosto por Tião, Valido chegou a desmaiar, assim como Pirillo, diante do esforço feito durante todo o jogo. Ainda houve pouco mais de três minutos de jogo, e o Fla ainda obrigou Barqueta a fazer mais três defesas importantes, mas ninguém conseguia prestar atenção em mais nada. O apito final de Guilherme Gomes foi a senha para desatar um carnaval.

Naquele momento o argentino fez uma das maiores declarações de amor ao clube já proferidas: “Nasci longe, mas Flamengo. Nada se compara a esse clube. Imperfeito como todos – onde ao que se diz, mandam muitos. Superado até em organização por outros. No entanto, vence sempre. Por que vence? Porque está na alma do povo. Porque é a própria alma do povo.


FOI UM ÉPICO CAPÍTULO FINAL

O cortejo saiu da Gávea e foi até a sede da Praia do Flamengo. Carregados por entre a multidão estavam os cartazes encomendados pelo clube ao argentino Lorenzo Molas, popular chargista do Jornal dos Sports e criador dos primeiros mascotes dos clubes cariocas. Um deles rebatia as provocações botafoguenses após o confronto do returno e encerrava de vez a questão ao colocar o Popeye (então mascote rubro-negro) por cima de um Pato Donald (mascote alvinegro) desfalecido, derrotado e de bruços, sob os dizeres: "Campeão até sentado!".

Quem ainda quis conversa depois de tudo foi o Vasco: reclamando de suposta falta de Valido no lance do gol, os cruzmaltinos chegaram a anunciar que exibiriam no Cineac Trianon (cinema do Centro do Rio que ficava no mesmo prédio da sede da Federação) o filme do jogo escancarando a irregularidade. Mas, na hora H, a fita engasgava sem esclarecer nada. Virou piada. Ainda hoje os vascaínos ainda fazem circular como "prova" uma foto de um jogador do Fla empurrando um do Vasco ao cabecear. Só que a imagem é de outro lance.

No balanço final, a campanha rubro-negra falava por si. O Fla foi, isolado, o time que mais ganhou (13 vitórias) e menos perdeu (três derrotas). E, se não teve o melhor ataque (atrás do Vasco por 53 a 50, mas bem à frente do Fluminense, terceiro no quesito com 45 tentos), teve de longe a defesa menos vazada: só 18 gols sofridos, contra 21 do Botafogo e 27 de Vasco e Fluminense. Além disso, na soma dos confrontos de turno e returno, não levou desvantagem contra nenhum dos outros nove adversários. Em suma: foi o melhor, indiscutivelmente.

Por outro lado, a conquista fechava um capítulo na história do clube e do futebol carioca. Até o fim da década vários jogadores se aposentariam e outros (como Jurandyr e Pirillo) seriam negociados – e seus substitutos não vingariam. Zizinho quebraria a perna duas vezes antes de ser vendido de forma controversa ao Bangu em 1950. E Flávio Costa trocaria a Gávea por São Januário dali a alguns anos.


FLAMENGO, TRI-CAMPEÃO CARIOCA EM 1944


Nenhum comentário:

Postar um comentário