domingo, 2 de novembro de 2025

Contra Tudo e Contra Todos: a guerra vencida nas Quartas da Libertadores 2025


Era noite de 18 de setembro de 2025 e o Maracanã estava tomado pelo vermelho e o preto, ardendo em brasa pelo calor humano da multidão, 70 mil vozes. Dois escudos múltiplas vezes campeões da Libertadores estavam por definir um dos semifinalistas daquela edição – o do Flamengo, campeão em 1981, 2019 e 2022, e o do Estudiantes de La Plata, campeão em 1968, 1969, 1970 e 2009 – dois velhos conhecidos que se reencontravam em palcos de grandes epopeias. O apito inicial ainda nem ecoara e já havia a impressão de que aquele confronto de quartas de final carregava algo de irrespirável, como se cada lance trouxesse um pequeno destino dentro dele, uma quantidade de tensão que transbordava pelos vãos do estádio.

No primeiro duelo, no Maracanã, no Rio de Janeiro, o Flamengo começou como se tivesse pressa de escrever a própria versão dos fatos. A pressão alta, a faca nos dentes, a bola que parecia magnetizada nos pés e a sensação de que, se houvesse fôlego, aplicariam uma goleada histórica. Cm 15 segundos de bola rolando, o placar foi aberto. Bola correndo de pé em pé até Pedro se livrar do marcador e tocar na saída do goleiro uruguaio Muslera. Com 8 minutos saiu já um segundo gol. Um começo avassalador. A vantagem de 2 a 0 nos minutos iniciais tinha cara de roteiro pronto: microfissuras no sistema argentino, infiltrações cirúrgicas pelo lado esquerdo, o camisa 10 Giorgian De Arrascaeta com um relógio interno de aço suíço em ser preciso em cada jogada, Pedro ocupando a área como quem reclamava o seu próprio território. Mas o futebol, que nunca se contenta com um primeiro ato linear, tinha guardado para a noite uma bateria de episódios que dariam combustível a muitos debates.


Aos 45 do primeiro tempo, Samuel Lino arrancou pela esquerda e caiu na área. O Maracanã inteiro prendeu o ar. O Flamengo pediu pênalti! Houve um toque em seu pé, aparentemente involuntário sim, do zagueiro rival, um contato sutil, que lhe causou um trançar de suas pernas. Sem querer também é pênalti! O juiz não apontou nada. A arbitragem de vídeo chamaria para uma revisão? Nada foi assinalado, moldando a primeira grande discussão da noite: houve ou não a penalidade?

Também é impossível passar incólume pela polêmica em torno de um diálogo nos momentos finais daquela primeira etapa. Segundo o lateral-esquerdo uruguaio do Flamengo, Matías Viña, que estava no banco de reservas: todo mundo escutou quando o quarto árbitro colombiano Jhon Ospina teria alertado ao técnico do Estudiantes, Eduardo Domínguez, sobre o risco do amarelado de que ele devia tirar o seu camisa 4 de campo, porque ele já estava amarelado e seria expulso. No dia seguinte, Viña ainda reforçou em entrevista para a televisão: "eu falo o mesmo idioma que eles, não tenho dúvida nenhuma do que escutei". Do ponto de vista da ética funcional, o episódio abriu um debate nada trivial sobre o papel do quarto árbitro no gerenciamento do calor do banco. Domínguez devolveu a bola dizendo que o conteúdo foi de outra natureza: uma "sugestão" sobre como manter a casa arrumada no tumulto de um grande jogo. O acontecimento, documentado e repercutido, é daqueles que irão reaparecer em discussões sobre protocolos, como um precedente incômodo. A pressão pela indignação dos jogadores rubro-negros em cima da equipe de arbitragem na entrada do túnel de saída de campo, em nada mudou a algo. Entretanto, o episódio ganhou vida própria, como costumam ganhar os fatos que tocam na fronteira frágil entre norma e convenção, entre conversa de campo e interferência técnica.


O segundo tempo, por sua vez, acendeu outras brasas. A história ficaria gravada com a expulsão de Gonzalo Plata – duplamente amarelado, quando, na leitura da maioria, tinha sido ele o alvo da falta, e não o autor. A decisão, assinada pelo árbitro colombiano Andrés Rojas, foi recebida no campo com incredulidade e fúria contida. Horas depois, a própria Conmebol revogaria o segundo amarelo, liberando Plata para a partida de volta, ao avaliar que de fato havia sido um erro da arbitragem. O reconhecimento do erro, noticiado aliviou o impacto disciplinar, mas não desfez a cicatriz daquela noite. O diretor de futebol do Flamengo, o português José Boto, ainda no calor do pós jogo, falaria em atuação "escandalosa e vergonhosa", citando não apenas a expulsão, mas pênaltis não marcados e uma possível infração de mão na origem do gol argentino que encurtou o placar nos acréscimos. A palavra "condicionado" passou a atravessar entrevistas e manchetes.

Para quem viu o jogo sem o filtro da paixão, a sensação de arbitrariedade foi se instalando como um nevoeiro. Desde o primeiro tempo as fortes faltas platenses para matar contra-ataques passavam sem qualquer cartão amarelo, enquanto mínimas faltas rubro-negras logo faziam subir um cartão. No jogo inteiro: 12 faltas e 5 cartões amarelos para o Flamengo, e 16 faltas e apenas 3 cartões amarelos para o Estudiantes.


Para piorar, no lance que vem a acontecer a expulsão de Gonzalo Plata, as câmeras de TV no dia seguinte captaram que o zagueiro argentino desvia a bola com um leve soco nela dentro da área. Já seria pênalti. Na sequência, o zagueiro se prepara para espanar a bola, Plata estica o pé e recebe um chute, num lance ocorrido sobre a linha da grande área. Poderiam ser dois pênaltis no mesmo lance, mas o árbitro interpreta uma solada de Plata (que não existiu) e lhe aplica cartão vermelho, forçando o Flamengo a atuar nos minutos finais com um jogador a menor. Nos acréscimos, acabou saindo um gol argentino, diminuindo o placar para 2 a 1. Uma sobra de bola depois que Ayrton Lucas afastou de cabeça da área, a bola bateu por trás num braço aberto do jogador argentino, e sobrou na pequena área para um empurrão com um leve toque que venceu Agustin Rossi e foi para dentro da rede.

É impossível revisitar o primeiro jogo daquela fase quartas de final sem posicionar a discussão sobre os episódios que moldaram a percepção coletiva: o pênalti em Samuel Lino visto como lance de marcação plausível, a reclamação por um segundo pênalti a favor do Flamengo, o gol argentino cujo nascedouro teria esbarrado em toque de mão, e a expulsão que mudou o desenho tático do encerramento daquele jogo. Na soma do rumor e dos recortes, o que ficou foi o desconforto – e, de novo, a constatação de que a arbitragem de vídeo deixou zonas de sombra onde erros se acomodaram. Para quem gosta de catalogar o jogo de futebol como uma ciência, aquela noite foi um manual de exceções.


Se a ida foi um caldeirão de controvérsias, o jogo de volta, no Estádio Jorge Luis Hirschi, em 25 de setembro, tratou de recordar que a Libertadores tem uma estética própria, e ela costuma eleger seus narradores na marca da cal. A densidade emocional da noite em La Plata – gol no final do primeiro tempo, gol anulado depois, o pacto com a sobrevivência nas mãos do goleiro – condensou tudo o que os livros gostam de chamar de "grandeza do imprevisível". O Flamengo perdeu o jogo, mas desenhou a própria passagem com um conjunto de pequenas decisões, e encontrou num gesto repetitivo – voar para o canto, esticar a luva, domar o instante – a assinatura necessária para atravessar o rio e chegar do outro lado, desta vez mais uma semifinal. A imprensa descreveu o camisa 1 rubro-negro, o argentino Agustin Rossi, como o herói, e a classificação como "sofrida", o que, em "idioma de Copa", significa autêntica!


A noite em La Plata tinha outra densidade. O estádio do Estudiantes, com suas arquibancadas íntimas e a acústica de panela de pressão, parecia conspirar para que cada passe rubro-negro se tornasse um teste de nervos. Os argentinos foram ao chão como quem conhece o território ao milímetro: pressão alta, bolas aéreas milimétricas, segundas bolas disputadas como pedaços de pão. O Flamengo, que muitas vezes sabia sofrer, desta vez precisou aprender a respirar. O primeiro tempo terminou com um punhal discreto: Benedetti, em chute que vibrou no ar como fio de navalha, fez 1 a 0 e igualou a série no agregado. O detalhe cruel de ser no fim da etapa empurrou o jogo para aquele território em que o relógio lateja.

A partir dali, o duelo ganhou tons de jogo de xadrez. Filipe Luís mexeu no tabuleiro com frieza pouco comum em noites de avalanche emocional: tirou nomes pesados, protegeu zonas, travou as laterais com dobras de marcação, aceitou não ter a bola por instantes longos, como quem aceita perder metros para não perder o mapa.


O Estudiantes chegou a balançar a rede de novo com Benedetti, mas a arbitragem de vídeo traçou suas linhas, reconstituiu o lance e apontou o impedimento. Incompreensível que o auxiliar não o tenha visto em campo, sem a necessidade de ajuda de revisão, dado que tamanha era a distância a frente de Léo Ortiz. O segundo gol, que mudaria a gravidade da noite, evaporou como um espectro.

O tempo curto, a perna pesada, a mente ruidosa: faltou um último gesto de precisão a ambos. Quando o apito final escancarou os pênaltis, a Libertadores mostrou sua face mais cruel e mais lírica – o salão das decisões em que os heróis costumam ser goleiros, e os vilões, a matemática banal do erro. Houve mãos na cintura, olhares para o chão, orações silenciosas, brados nas redes. Agustín Rossi, que já tinha uma história com grandes noites, abriu uma nova página ao defender as cobranças de Benedetti e de Ascacíbar – e, com isto, anotou o seu nome no registro dos duelos que são ganhos saboreando-se cada pedaço.




A coreografia das cobranças de penalidades teve de tudo. As passadas curtas e frias, os goleiros tentando ler calcanhares, os olhos que denunciam o canto um milímetro antes da batida. Do lado argentino, Benedetti – algoz no tempo normal – reencontrou Rossi, e desta vez perdeu. Quando Ascacíbar colocou a bola e mediu a passada, a arquibancada fez o barulho que se faz quando se deseja que um homem erre – e o homem errou, porque Rossi empurrou a bola para fora com um tapa de aço. Do lado rubro-negro, a precisão foi suficiente para erguer a ponte em cima do abismo. Um, dois, três, quatro: o trajeto que começa no meio-campo, termina na marca da cal, e, se tudo dá certo, continua numa corrida até o abraço.



Quando a última cobrança beijou a rede, não houve catarse: houve alívio. O tipo de alívio que desmancha ombros e transforma o grito num soluço breve. O Flamengo, que havia vencido no Rio, perdido em La Plata, e sobrevivido na marca fatal, saía de uma eliminatória que será lembrada por detalhes fora do comum: a expulsão corrigida horas depois, os pênaltis discutidos que nunca vieram, a acusação de que o quarto árbitro atravessara a fronteira invisível entre a função de organizar e a de orientar, e a mão seguríssima de Rossi na disputa final. O saldo, enquanto narrativa, parece o de uma velha enciclopédia de Copa Libertadores da América: noites aquecidas por polêmicas, campo inclinado por catarses instantâneas, e uma classificação que tem mais cicatriz do que brilho.


Uma eliminatória se organizou em quatro linhas: no enredo técnico, o Flamengo foi superior no Rio de Janeiro por uma hora e oscilou depois, o Estudiantes empurrou em La Plata e quase virou. No equilíbrio final – 2 a 2 no agregado – um espelho fiel da soma de virtudes e imperfeições. No enredo disciplinar, a expulsão de Gonzalo Plata numa inversão da falta, transformando-se no símbolo de uma noite fora da curva, a ponto da confederação, em gesto raro, retirar o cartão no dia seguinte. A decisão salvou o elenco de um desfalque pesado na volta, mas não devolveu os minutos jogados com um a menos. No enredo institucional, as queixas do Flamengo e o discurso duro de José Boto pedindo atenção da Conmebol reavivaram a discussão sobre a governança da arbitragem no continente, enquanto o caso do quarto árbitro e a negação de Domínguez apontaram para um terreno ainda nebuloso de protocolos a clarificar. E no enredo dos heróis: Benedetti e o gol da esperança, Filipe Luís e as escolhas frias sob calor insuportável, e Rossi como o homem que fechou a porta quando tudo mais parecia aberto. Há noites em que a classificação é uma geografia de pequenas defesas: duas mãos, duas bolas, duas quedas, e uma semifinal ao alcance: Flamengo x Racing.

A memória fará o seu trabalho de cinzelar as arestas. Provavelmente, o torcedor lembrará mais do pulo de Rossi do que do toque sutil em Lino, mais da corrida até o abraço final do que do botão da cabine da arbitragem de vídeo. Mas, para quem escreve a história, é preciso guardar as camadas. A ida no Maracanã, com seus diálogos laterais, cartão com volta atrás, pênaltis que não vieram e interpretações que se chocam, foi tanto um jogo de futebol quanto um laboratório de protocolar o caos. A volta na Argentina, com sua neblina de nervos, foi a prova de que a Libertadores não é apenas um campeonato: é um modo de existir no futebol, com códigos próprios e tribunais invisíveis.

Se alguma moral precisa ser tirada, talvez seja esta: nas noites grandes, a verdade do jogo se reparte. Uma parte é bola, quilates de técnica e planos, outra parte são os homens de preto e suas decisões, certas ou não, e uma terceira parte, sempre decisiva, são os goleiros, esses especialistas em interditar o destino. No confronto entre Flamengo e Estudiantes, em setembro de 2025, todas as porções ficaram à vista. E, quando a última bola de pênalti cruzou a linha, foi possível ouvir, no mesmo segundo, a queda de um mundo em La Plata e a ascensão de outro no Rio. A semifinal estava garantida; o resto, como convém às grandes histórias, ficará disputando espaço entre o arquivo e a lenda. Dias e minutos de epopeia!


Nenhum comentário:

Postar um comentário