Texto de Rodrigo Capelo no blog Época Esporte Clube, em 25 de maio de 2017, sob o título: "As finanças do Flamengo: mesmo minado pelo passado, o milagre econômico continua".
Eduardo Bandeira de Mello é cobrado por títulos, mas nunca pôde gastar a riqueza que gerou. O jogo começou a virar em 2016 – e tudo indica que continuará a melhorar
"O Flamengo tem a justa fama de clube mau pagador. Não tem transparência. Não tem qualidade na governança. Chega a ser irresponsável no papel de contribuinte. [...] Não vamos descansar enquanto não conseguirmos equacionar esse passivo que não é só financeiro. É ético. É moral." Eis um trecho do discurso de posse de Eduardo Bandeira de Mello, no distante 12 de dezembro de 2012, perante dezenas de conselheiros e da constrangida antecessora, Patrícia Amorim. Relembrar a ocasião parece chover no molhado. Em quatro anos, o cartola recuperou as finanças do clube. Mais do que isso, colou em sua gestão um selo raro no futebol brasileiro: o da boa administração. Com justiça. E sob pressão. Por parecer tão rico, o time ganhou a obrigação de ser campeão – coisa que, de fato, fez pouco. Ainda mais agora, eliminado na fase de grupos da Libertadores, o coro aumenta. E os títulos, Flamengo?
A direção rubro-negra comanda um clube que, por causa das perversas administrações anteriores, não opera com capacidade plena. O faturamento, sim, explodiu em quatro anos. Foi de R$ 273 milhões em 2013 para R$ 469 milhões em 2016, um crescimento de 72% (guarde esse percentual). Isso aconteceu muito em função da reformulação moral que Bandeira citou em seu discurso de posse. A cena de um gigante do futebol sendo assumido por um time de executivos de grandes empresas ajudou a dobrar a receita do departamento comercial, triplicar a renda com bilheterias e sócios-torcedores, além do contrato de direitos de transmissão, que foi junto. Tudo dobrou, nestes quatro anos, e aí está a razão para a imagem de riqueza que colou e não desgruda do Flamengo de 2017.
O que pouca gente reparou é que, apesar de as receitas terem aumentado bruscamente, a maior parte disso foi usada para pagar dívidas, não para elevar despesas. O quesito que melhor indica a qualidade de um time de futebol, no aspecto financeiro, é o gasto com remunerações. Aqui contam salários, direitos de imagem e direitos de arena. A equipe de 2013 custava R$ 124 milhões. Quatro anos depois, a de 2016 demandou R$ 155 milhões. Repare que as remunerações subiram 25% enquanto o faturamento aumentou em 72%. A diferença entre um percentual e outro é explicada pelas dívidas. A maior parte do incremento de arrecadação foi parar não no Flamengo de 2016, mas nos times de 2012, 2011, 2010... Aqueles que entraram em campo, por vezes foram campeões, mas não receberam tudo o que os cartolas da época prometeram que pagariam.
O endividamento dá o tom sobre o milagre econômico que Bandeira realizou nestes quatro anos. Em 2012, o clube devia R$ 726 milhões na praça. O problema foi reduzido ano a ano graças aos superávits – o saldo entre receitas e despesas operacionais. As dívidas fiscais foram alongadas em 2015, depois que o governo federal instituiu o Profut e permitiu aos times de futebol parcelar seus débitos em até 20 anos, com descontos em multas, juros e encargos. A gestão conseguiu manter em pé o acordo do Ato Trabalhista – o único entre os grandes do Rio de Janeiro que não foi excluído nesse meio-tempo. Trata-se de uma fila de ex-funcionários a quem o clube deve. Os dirigentes pagam todo mês alguma quantia, e os credores vão recebendo até que a fila acabe. As reduções dessas duas dívidas, fiscal e trabalhista, fizeram com que o Flamengo devesse R$ 470 milhões em 2016.
A boa reputação financeira faz torcedores e imprensa acreditar que os problemas financeiros acabaram na Gávea. Não acabaram. Embora gere muita receita, a direção de Bandeira não gera receita suficiente para arcar com as despesas e ainda com as dívidas de curto prazo. O passado ainda pesa sobre os ombros dos dirigentes rubro-negros. E o clube gira com empréstimos bancários. De 2013 para a frente, o time tomou R$ 50 milhões com instituições financeiras em praticamente todas as temporadas. Só em 2016 o montante de novos empréstimos caiu para R$ 36 milhões. A dívida bancária ainda é grande. Em dezembro de 2016, o clube tinha um débito de R$ 112 milhões com bancos, uma dívida problemática porque acompanha juros agressivos e gera uma despesa financeira considerável – mais uma que tira do futebol. Não havia outra saída.
A comparação com o Palmeiras, outro novo-rico do futebol brasileiro, é inevitável. As dívidas palmeirenses foram aliviadas por um caminho diferente. Paulo Nobre, bilionário e presidente, injetou R$ 200 milhões pessoais e sanou o endividamento alviverde. Isso, somado ao patrocínio de Leila Pereira e à estabilidade financeira que o Allianz Parque proporcionou, fez com que os paulistas subissem a folha salarial de R$ 97 milhões em 2013 para R$ 198 milhões em 2016. Como o Flamengo teve de tomar outro caminho para reduzir e alongar suas dívidas, a folha rubro-negra subiu de R$ 124 milhões para os R$ 155 milhões já mencionados parágrafos atrás. Na realidade, o Flamengo só chegou ao "segundo lugar" em gastos com remunerações em 2016, seguido de perto por Cruzeiro e São Paulo, times que estão próximos da casa dos R$ 150 milhões. Em 2015, já com a reputação de ricaço, o time era apenas o sétimo da lista.
Nada disso tira do departamento de futebol flamenguista, comandado pelo executivo Rodrigo Caetano, a obrigação de conseguir resultados. A queda na primeira fase da Libertadores em 2017 é certamente decepcionante. A eliminação precoce na Copa do Brasil de 2016 diante do Fortaleza também foi um vexame, mesmo com o terceiro lugar no Campeonato Brasileiro. O Flamengo já tem porte financeiro (não só em receitas, mas em gastos) para peitar qualquer grande equipe sul-americana. Falta eficiência no investimento. Mas os resultados abaixo da expectativa precisam ser digeridos com sobriedade. Em primeiro lugar porque eles não desmerecem, de jeito nenhum, os significativos avanços feitos pela gestão de Bandeira nos campos administrativo, jurídico e financeiro. E, depois, porque talvez a expectativa seja exagerada por um punhado de motivos. O clube é festejado publicamente pela gestão, marcado pela riqueza, mas na realidade não pôde gastar tudo o que arrecadou com o presente porque tem uma herança desgraçada.
A perspectiva para 2017 é mais uma vez positiva, apesar do fracasso na Libertadores. O orçamento feito no término de 2016 é o único no país a prever um superávit superior a R$ 50 milhões – um dinheiro que tende a ser consumido mais por dívidas do que por investimentos. De novo. E há reviravoltas. A transferência de Vinicius Júnior para o Real Madrid deve render cerca de R$ 100 milhões limpos, já descontados impostos e comissões, um dinheiro inesperado e sem precedentes. O clube não tem bom histórico como vendedor de jogadores. Talvez seja a primeira ocasião em que Bandeira poderá pôr as mãos numa fortuna e usar a maior parte dela para investir, seja em atletas, seja em infraestrutura, em vez de vê-la parar nos bolsos de credores. Ainda que o imbróglio com o Maracanã esteja longe de ser resolvido com Odebrecht e governo do Rio, problema que sacrificará rendas flamenguistas com bilheterias e sócios-torcedores, o dirigente chega enfim ao ano em que poderá gastar. A probabilidade de títulos está aumentando, Flamengo.
Complementarmente, segue a análise de Vinícius Paiva, do blog Teoria dos Jogos, publicada em 26 de maio de 2017, sob o título: "Esclarecimentos a respeito das finanças do Flamengo".
Ao final de uma elogiada série de publicações acerca das finanças dos clubes brasileiros, o jornalista Rodrigo Capelo, da Época, nos brindou com suas análises a respeito da situação do Flamengo. O conteúdo revela o que já se convencionou como “chover no molhado”: a ótima gestão financeira do Rubro Negro. Mas suscita dúvidas a respeito da primazia econômica do clube no cenário atual. Tudo porque, se a situação é muito boa na comparação com cinco anos atrás, em termos absolutos existem mais dificuldades do que presume nossa vã filosofia.
Segundo o autor, o Flamengo teria arrecadado, de fato, R$ 468,7 milhões em 2016, um contraponto aos R$ 510 milhões contidos no balanço patrimonial do clube. Tudo porque contabilidade, embora seja uma ciência exata, é passível de interpretações e diferentes óticas. A principal delas é a questão dos regimes de caixa (o que de fato entrou) e competência (o que foi registrado, apesar de ocorrido em outros exercícios). Em seu balanço 2016 (que pode ser baixado aqui), o Flamengo comunica o recebimento de R$ 120 milhões de luvas pelo televisionamento, mas registra pouco mais de R$ 100 milhões a título de valor presente. Destes, R$ 70 milhões foram adiantados e outros R$ 50 milhões virão em duas parcelas (2019 e 2021). Isto significa uma diferença de aproximadamente R$ 30 milhões entre o que o clube já de fato arrecadou e o que contabiliza. Adicionalmente, R$ 11.345.000,00 adiantados pela REX pelo arrendamento do Edifício Hilton Santos (Morro da Viúva), ainda na administração Patricia Amorim, só foram contabilizados no exercício passado. Isto porque o acordo que desobrigou o Flamengo a devolver aquela quantia só foi fechado no ano que passou. Diante disto, teríamos a tal diferença de aproximadamente R$ 41,3 milhões entre receitas contabilizadas e as de fato verificadas.
Algo parecido, ainda que em vetores opostos, ocorre sob a ótica do endividamento. Segundo o balanço flamenguista, a dívida líquida teria caído para R$ 390 milhões em 2016. Capelo, em seu texto, considera R$ 469,6 milhões. Já a BDO Brazil, uma das principais empresas de auditoria do país, crava R$ 460,6 milhões. Novamente nos deparamos com questões conceituais, pois o Flamengo considerou quase todo seu ativo – que subtraído ao passivo, nos leva à mensuração do endividamento. O problema é que ativos como imobilizado ou intangível não devem ser considerados, segundo interpretação corrente, ainda que o clube o tenha feito. Presume-se, portanto, um endividamento maior, o que explica a situação do Flamengo ser boa, mas não maravilhosa como presumem aqueles que nele colaram a pecha de “novo rico”.
Uma terceira problemática passa pelos empréstimos contraídos. Conforme esclarecido nos parágrafos acima, a dívida ainda é alta e muitas das despesas são descoladas das receitas. Pagamentos imediatos e inadiáveis (como folhas salariais) ocorrem em descompasso com afluxos inconstantes como bilheterias ou premiações por título. Por conta disto, a captação de empréstimos no mercado durante a gestão Bandeira de Mello se deu a uma média de quase R$ 50 milhões anuais – exatamente o valor orçado para 2017:
Isto leva o Flamengo à condição de detentor de uma dívida bancária cara, com taxas de juros próximas aos 2% mensais. Trata-se de um passivo que, embora em queda (apenas com bancos, caiu de R$ 130,3 milhões em 2015 para R$ 111,5 milhões em 2016), o faz em ritmo menor do que o aumento das receitas, já que estas precisam ser rateadas com a administração do futebol (salários, aquisição de direitos econômicos, luvas, etc) e a composição de patrimônio (Ex: CT Ninho do Urubu).
A consequência é algo que não costuma passar pela cabeça do leitor comum, sempre confrontado com números contabilmente tão bons. A redução global do endividamento do Flamengo, ainda que excelente, nem sempre se dá na exata medida dos superávits acumulados. Em se tratando de uma administração premiada por sua austeridade, temos ideia do tamanho das dificuldades. Operacionalizar um clube com passivos importantes e demandas esportivas ainda mais altas não é nada fácil, afinal.
E veja aqui: Transparência Rubro-Negra
Nenhum comentário:
Postar um comentário