Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:
Futebol e Remo: os Campeões de Terra e Mar de 1942
Com um time recheado de nomes históricos, o Flamengo abriu o seu primeiro tri carioca, em campanha que ainda marcou o surgimento da primeira torcida organizada da história do futebol. O título carioca de 1942 marcou o início do primeiro tri estadual do Flamengo. E foi levantado por uma equipe reunindo, do goleiro ao ponta esquerda, jogadores de primeira grandeza do futebol brasileiro de seu tempo, entre eles Domingos da Guia e Zizinho. Como se não bastasse, também havia em campo uma novidade tática introduzida pelo técnico Flávio Costa e, nas arquibancadas, um novo jeito de torcer com o surgimento – no jogo que valeu o caneco – da Charanga Rubro-Negra.
A década de 1930 foi um período de profundas transformações no futebol brasileiro, com o início da adoção do regime profissional, que levaria até à criação de uma entidade nacional paralela à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), a chamada Federação Brasileira de Football (FBF), tendo impacto inclusive na participação da seleção na Copa do Mundo de 1934. Como capital do país na época, o Rio de Janeiro foi uma das frentes desse movimento que já vinha ocorrendo dentro do próprio futebol carioca desde o fim de 1932.
Entre 1933 e 1937, o jogo na cidade foi marcado pelas cisões de ligas, desde o rompimento por parte de vários clubes com a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), defensora do amadorismo, e a criação da Liga Carioca de Football (LCF), até a subsequente saída de algumas agremiações da LCF para se juntarem a clubes da AMEA, formando a Federação Metropolitana de Desportos (FMD), chegando enfim à pacificação em julho de 1937, com todos juntos sob a bandeira da Liga de Football do Rio de Janeiro (LFRJ).
O Flamengo também viveu mudanças marcantes no período. Clube que mais vezes conquistou o título carioca ao longo dos Anos 1920 (levantando a taça em 1920, 1921, 1925 e 1927), o rubro-negro se viu logo em seguida atravessando o maior jejum de sua história, demorando 12 anos para voltar a vencer a competição, só em 1939. No meio do caminho, assistiu também à chegada à presidência do empresário e publicitário José Bastos Padilha, que colocou em prática um projeto para colocar o clube na vanguarda do futebol do país.
Além de conduzir o clube ao caminho do profissionalismo – algo de início rejeitado internamente – e, com isso, impedir que o Flamengo perdesse o bonde da história, Bastos Padilha levou adiante a construção do novo estádio rubro-negro às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na freguesia da Gávea, região então tida como um subúrbio distante, um “areal de fim de mundo”, apenas com algumas fábricas e vilas operárias. Na mesma época, o clube ampliou seu quadro social e reformou inteiramente sua sede da Praia do Flamengo.
No futebol, o maior símbolo dessa vanguarda almejada foi a contratação do técnico húngaro Izidor “Dori” Kurschner em abril de 1937. Nome da "Escola Danubiana", uma das mais influentes da Europa, tinha por missão afirmar a importância da tática no jogo, trazendo novos conceitos e práticas (entre elas os treinos sem bola) e um novo sistema já disseminado pelo Velho Continente, mas quase inédito por aqui: o WM. Como tudo que é radicalmente novo, seu trabalho dividiu opiniões, e ele deixou o clube em setembro de 1938.
Com a saída do húngaro, o posto foi ocupado por Flávio Costa, ex-jogador do Flamengo campeão carioca em 1927 e que treinava o time antes da chegada de Kurschner, desde setembro de 1934. Embora declarasse anos mais tarde que, antes do magiar, "a única coisa que se fazia por aqui era correr atrás da bola", Flávio decidiu de início descartar o WM empregado por Kurschner e voltou ao tradicional esquema 2-3-5, que imperava no Brasil da época – ainda que já totalmente superado no cenário internacional.
Foi, porém, o suficiente para sair da fila levando o título carioca de 1939 com um 4 a 0 sobre o Vasco na última rodada – quando, pela primeira vez no futebol brasileiro, um clube entregou faixas de campeão a seus jogadores. Aliás, aqueles primeiros anos a partir da pacificação das ligas foram marcados pelo duopólio entre Flamengo e Fluminense, cada um conquistando metade dos oito campeonatos disputados entre 1937 e 1944. Além de um duelo entre poderosos esquadrões, seus elencos tinham perfis muito bem definidos.
De um lado, o Fluminense ostentava seus craques escolhidos a dedo no futebol paulista, como o goleiro Batatais, o médio Orozimbo e os atacantes Romeu, Tim e Hércules. Do outro, o Flamengo exibia a fina flor dos jogadores negros do país – Domingos da Guia, Fausto dos Santos, Waldemar de Britto, Leônidas da Silva e o ponta-esquerda Jarbas – mesclada ao talento e à garra argentina de Carlos Volante, Agustín Valido, Alfredo González e até do ponteiro Raimundo Orsi, campeão mundial com a seleção da Itália como "oriundo" em 1934.
Os Campeões de 1939
Esse duopólio transcendeu os limites cariocas no Torneio Rio-São Paulo organizado em 1940, que contava com nove clubes (cinco do Rio e quatro de São Paulo) e que seria disputado em dois turnos, mas acabou interrompido ao fim do primeiro, quando os paulistas deixaram a disputa sob a alegação de arrecadações fracas no recém-inaugurado Estádio do Pacaembu. Com os jogos dos estaduais valendo também pelos confrontos dos clubes da mesma cidade no torneio, a dupla Fla-Flu liderava de longe quando o certame foi suspenso.
Os dois somavam 13 pontos ao fim do turno. Os tricolores ainda invictos, com cinco vitórias e três empates, e os rubro-negros com seis vitórias, um empate (2 a 2 com o São Paulo no Pacaembu) e uma derrota (2 a 1 no Fla-Flu). As seis vitórias, por sua vez, foram quase todas categóricas: 6 a 3 no América, 3 a 2 no Botafogo e 3 a 0 no Vasco nos confrontos locais e 3 a 1 no Palestra Itália, 3 a 1 no Corinthians e um espantoso 9 a 1 sobre a Portuguesa em pleno Pacaembu com seis gols de Leônidas da Silva, até ali o goleador do torneio.
Naquela temporada de 1940, aliás, o Flamengo apresentaria uma novidade: um garoto de apenas 18 anos chamado Zizinho, meia-direita impetuoso e de técnica e visão de jogo extraordinários, que estreara no time de cima no fim do ano anterior, em dois amistosos contra o Independiente. Mas embora vencesse dois dos três Fla-Flus do Campeonato Carioca e terminasse o torneio com o melhor ataque e a melhor defesa (72 gols marcados e 30 sofridos em 24 jogos), o time deixou escapar o bicampeonato ficando um ponto atrás do rival.
No início do ano seguinte, os dois clubes viajaram à Argentina para uma excursão. Foi onde mais uma vez ficou explícita a fragilidade defensiva do sistema 2-3-5 ainda adotado por aqui, como já havia sido observado na Copa do Mundo de 1938 e nos confrontos contra as seleções platinas. Mesmo contando com jogadores do quilate de um Domingos da Guia, o esquema deixava o setor exposto demais, e em frequente inferioridade numérica, com dois zagueiros tomando conta de três atacantes, e pouca cobertura pelos lados.
Assim, depois de uma acachapante derrota de 7 a 0 para um combinado de Rosário no primeiro jogo, Flávio Costa decidiu modificar o desenho do time para o seguinte, contra o Independiente, adversário ainda mais forte. Arrastou o médio-direito Jocelyno para trás, transformando-o num zagueiro por aquele lado e deslocando Domingos mais para o centro e Oswaldo para a esquerda. No meio, o técnico mexeu no posicionamento dos médios, com Volante mais recuado e Argemiro, o médio-esquerdo, por dentro e mais adiantado.
O técnico ainda faria mais uma mudança semelhante com relação aos meias: Zizinho (o da direita) jogaria mais recuado para a armação enquanto Nandinho (o da esquerda) atuaria mais adiantado e encostando nos três atacantes. A disposição do que antes era o trio de médios – que em vez de formarem uma linha reta agora apareciam numa diagonal – batizaria informalmente o novo sistema, o qual se tratava de uma versão brasileira e mais fluida do WM, sem a rigidez do esquema europeu. Com ele, Flávio tentaria melhores resultados.
Contra o Independiente, o time voltou a ser derrotado, mas teve atuação mais digna: o placar de 6 a 5 para o adversário se deveu mais a falhas individuais do veterano goleiro Walter Goulart (o titular do Brasil em 1938), substituído no intervalo, do que a erros táticos. Mas a consagração do sistema veio no jogo seguinte, diante de um San Lorenzo ainda mais forte, que contava com os astros espanhóis Ángel Zubieta e Isidro Lángara: a vitória por 2 a 0, gols de Sá e Zizinho, foi na época um feito grandioso para o futebol brasileiro.
Se o Flamengo ganhara um novo esquema tático, por outro lado perderia naquele ano seu maior ídolo de então: vivendo em atrito constante com a diretoria e tendo de operar o joelho direito, Leônidas não jogaria mais pelo clube após a excursão à Argentina. Seu contrato foi suspenso em junho e logo em seguida ele seria julgado e condenado por um Tribunal Militar e preso por portar um certificado de reservista falso, que obtivera em 1935, quando ainda defendia o Botafogo, ao ser enganado por um sargento do Exército.
Sem o Diamante Negro (que acabaria vendido ao São Paulo em abril de 1942), Flávio Costa levou o ano de 1941 reformulando a equipe rubro-negra com reforços que chegavam de várias partes do país e até do exterior. Do Paraná viria o médio-direito (ou zagueiro-direito no novo esquema) Biguá, do Savóia. De Minas, viria outro médio, Jayme de Almeida, ex-Sete de Setembro e Atlético Mineiro. Para o ataque chegariam o centroavante gaúcho Pirillo, do Peñarol uruguaio e ex-Internacional, e o ponta-esquerda paraense Vevé, do Galícia baiano.
Embalado pelos gols de Pirillo (foram 39 ao todo, ainda hoje o recorde histórico do campeonato e que dificilmente será superado), o Flamengo disparou na ponta até quase a reta final do torneio, quando tropeçou seguidamente e perdeu a liderança para o Fluminense, que levaria a taça com o empate em 2 a 2 na Gávea na última rodada no chamado "Fla-Flu da Lagoa". Anos depois, Flávio reconheceria que perdeu o título por demorar em barrar do time o médio Artigas, que engordara e experimentara uma queda brutal de rendimento.
Na virada de 1941 para 1942, os rubro-negros receberiam mais um reforço: o atacante mineiro Perácio, jogador revelado pelo Villa Nova e que já havia defendido o Botafogo por muitos anos (e disputado a Copa do Mundo de 1938 pelo Brasil), antes de ser descartado pelo clube de General Severiano, seguindo para um "exílio" de uma temporada do outro lado da baía, no Canto do Rio. Após um período recobrando a forma física, ele estaria pronto para ser outra ótima opção no ataque rubro-negro, tendo importante papel tático.
Perácio, Jayme e Biguá pela Seleção Carioca
O primeiro grande desafio de 1942 seria o Torneio Quinela de Ouro, prestigioso torneio amistoso de pré-temporada disputado no Pacaembu em março. Espécie de Rio-São Paulo em miniatura, contava com o Trio de Ferro da capital paulista (Corinthians, Palestra Itália e São Paulo) e a dupla Fla-Flu. Os rubro-negros ficaram em segundo - atrás do Corinthians´- porém terminaram o certame invictos: venceram o São Paulo (2 a 1) e empataram com Fluminense (0 a 0), Corinthians (1 a 1) e Palestra (2 a 2), recebendo elogios da imprensa esportiva paulistana.
Logo em seguida, a partir do início de abril, viria o Campeonato Carioca, principal competição da temporada e que se estendia até outubro. Naquela época o futebol do então Distrito Federal era reconhecidamente o mais forte do país. Basta dizer que, entre 1938 e 1950, os cariocas venceram 7 das 9 edições disputadas do Campeonato Brasileiro de Seleções. Além disso, os clubes da capital do país com frequência cediam mais da metade – por vezes chegando a dois terços – dos jogadores convocados à Seleção Brasileira.
E não somente aos clubes grandes – entre os quais na época se incluía o América – cabia esta honra: equipes como o Madureira e o São Cristóvão tiveram vários nomes com passagem pelo escrete naquela virada de década. O Tricolor Suburbano teve, entre outros, o zagueiro Norival e o ponta-direita Adílson, ambos mais tarde jogadores de Fluminense e Flamengo, além dos meias Lelé e Jair Rosa Pinto, que em breve fariam história no Vasco. Já os cadetes haviam cedido o médio Afonsinho e o ponta Roberto à seleção de 1938.
O time-base rubro-negro já estava definido ao início do Carioca, embora em duas posições tenha havido troca na titularidade ao longo do torneio. Uma delas era o gol, que começara guardado pelo mato-grossense Dorival Knippel, o Yustrich. Na virada para o segundo turno, porém, o clube trouxe do Gimnasia y Esgrima de La Plata o experiente Jurandyr, nome rodado do futebol paulista (destacando-se a passagem pelo Palestra entre 1935 e 1939), um dos goleiros do Brasil no Sul-Americano de 1937 e renomado pegador de pênaltis.
Com a nova disposição da defesa no sistema da "diagonal" (denominação criada pelo jornalista Luiz Mendes, e que Flávio nunca chegou a adotar), o setor passava a contar com três jogadores: um zagueiro lateral pela direita, outro pela esquerda (ambos marcadores dos ponteiros) e um central (que tomava conta do centroavante). No Flamengo, o primeiro era Biguá, que se fez ídolo como símbolo de raça. Jogador muito valente e elástico, de ótima impulsão e recuperação, firme na marcação e de vocação ofensiva rara para a época.
Pelo centro do setor, estava presente o futebol exuberante de Domingos da Guia, capitão do time que sabia se impor pela classe e pela liderança em campo. No clube desde 1936, era há quase uma década nome certo em qualquer Seleção Brasileira que se fizesse. Ao seu lado pela esquerda, um velho conhecido: Newton Canegal, beque discreto e eficiente que aportou no Flamengo em 1939 após passar pela Portuguesa carioca e pelo Bonsucesso. Teria carreira longa no clube (13 anos), além de também defender o escrete brasileiro.
À frente da defesa atuavam os dois médios, e o mais recuado deles, postado bem diante da zaga, era o centromédio argentino Carlos Martín Volante, um dos veteranos da equipe, jogador rodado com passagens pelo futebol de seu país e pela Europa – Itália e França, de onde veio para o Brasil e para o Flamengo logo após ter se empregado como massagista da seleção de Ademar Pimenta no Mundial de 1938. Por aqui sua influência foi tamanha que seu estilo ("jogar como Volante") rebatizou a posição: centro-médio virou médio-volante.
O outro médio era Jayme de Almeida, que atuava mais adiantado pelo lado esquerdo em função que, no novo sistema, ficaria conhecida como "médio-apoiador". Nascido no estado do Rio, mas criado no futebol mineiro, primava pela elegância e disciplina, além da liderança já manifestada desde muito jovem. Chegou à Gávea como centro-médio, mas Flávio Costa logo o deslocou para a esquerda, abrindo caminho para que ele se tornasse um gigante na história do Flamengo e do próprio futebol brasileiro em sua posição.
A dupla de meias também deixava de jogar alinhada na diagonal. No caso daquela equipe do Flamengo, o meia-direita, Zizinho, atuava mais recuado, concentrando-se na criação das jogadas. Peça em torno da qual a engrenagem do time girava, o meia-armador (função também chamada de "meia de ligação") aliava a técnica de um virtuose à garra de um grande competidor que não acreditava em bola perdida. No início daquele ano, estreara na Seleção Brasileira como um dos quatro rubro-negros convocados ao Campeonato Sul-Americano.
O outro meia (pela esquerda, no caso do Flamengo) se converteria no chamado "ponta de lança" e teria dois concorrentes naquele elenco: o baiano Nandinho, que atuava mais recuado, armando, foi quem acabou atuando mais vezes na campanha de 1942. Mas o grande símbolo da posição no time era Perácio. Jogador ofensivo, era mais atacante do que meia. Forte e veloz, arrastava os marcadores em suas arrancadas até o gol. Exímio cabeceador, fez-se um dos goleadores do time, aproveitando espaços abertos pelos companheiros.
Por fim, vinha o trio de frente, formado pelos dois pontas e o centroavante. Pela direita atuava o argentino Agustín Valido, outro veterano do título de 1939 (então como meia-direita), jogador solidário e determinado. No centro do ataque estava Sylvio Pirillo: raçudo e goleador, mostrou-se à altura da missão tida como quase impossível de substituir Leônidas nos corações rubro-negros. E na outra ponta o paraense Vevé era a malícia do drible e os cruzamentos precisos, figurando entre os maiores da posição na história do clube.
A prova da qualidade desta equipe residia no fato de todos os brasileiros titulares, sem exceção, terem sido, antes ou depois, jogadores de seleção. Domingos, Jayme e Zizinho eram sempre chamados. Jurandir já fora convocado antes de chegar à Gávea e voltaria a ser como atleta rubro-negro. Perácio disputara o Mundial de 1938. Pirillo esteve no Sul-Americano de 1942. Biguá, Newton Canegal e Vevé atuariam mais tarde. Se as Copas de 1942 e 1946 tivessem sido realizadas, vários desses nomes seriam certos pelo Brasil.
O Campeonato Carioca era disputado por 10 clubes, cada qual com seu próprio campo ou estádio. O Flamengo jogava na Gávea; o Fluminense, em Laranjeiras; o Vasco, em São Januário; o Botafogo, em General Severiano; o América, em Campos Sales; o Bangu, na Rua Ferrer; o São Cristóvão, em Figueira de Melo; o Bonsucesso, em Teixeira de Castro; o Madureira, em Conselheiro Galvão; e o Canto do Rio, em Caio Martins – os dois últimos ainda novíssimos, tendo sido inaugurados no ano anterior, em junho e julho, respectivamente.
O regulamento, assim como havia acontecido em 1939 e 1940, previa três turnos corridos, com os clubes se enfrentando uma vez na casa de cada um e uma outra vez em campo neutro – e este chamado "turno neutro" desta vez seria o primeiro. O campeão seria o clube que somasse mais pontos. Brigando pelo tri e mantendo seu elenco de luxo, com reservas que seriam titulares na maioria dos concorrentes, o Fluminense largava como favorito. Mas, como dizia seu técnico, o uruguaio Ondino Viera, "o campeonato é uma guerra".
Os tricolores haviam perdido o atacante Romeu, que voltara ao futebol paulista, mas mantinham nomes de seleção, como o goleiro Batatais, o zagueiro Norival, o médio Afonsinho, o armador Tim, os pontas Pedro Amorim e Carreiro e o atacante Russo, além dos argentinos Renganeschi, Spinelli e Rongo. O Botafogo era outro que chegava como força considerável. Tinha nomes de respeito em várias posições, em especial no miolo do ataque formado por Geninho, Heleno de Freitas e o argentino Alfredo González (ex-Flamengo e Vasco).
O Vasco tinha dupla de zaga de seleção (Florindo e Osvaldo, também ex-Flamengo) e uma boa linha média, mas seu ataque se mostrava frágil, embora contasse com o uruguaio Villadoniga e apresentasse naquele certame o novato Ademir de Menezes, ex-Sport, que, de início, custou a se firmar na equipe. Já o América, do zagueiro argentino Gritta e dos veteranos Carola e Plácido, trazia os jovens Danilo Alvim (o "Príncipe") e Maneco (o "Saci de Irajá"), mas vinha de campanha ruim no ano anterior e partia como incógnita.
Entre os demais, São Cristóvão e Madureira prometiam. O time cadete, dirigido pelo argentino Abel Picabéa, trouxe o centroavante Caxambu, ex-Flamengo, e ostentava nomes de destaque em todas as linhas, como o zagueiro Augusto (futuro Vasco e Seleção Brasileira), os médios argentinos Bianchi e Papetti e os atacantes Santo Cristo e João Pinto. O Tricolor Suburbano, por sua vez, comprara o experiente zagueiro Jaú, ex-Corinthians, Vasco e seleção, e mantinha seu lendário trio central do ataque com Lelé, Isaías e Jair Rosa Pinto.
Em sua segunda participação no certame carioca, o Canto do Rio também era um candidato a surpreender e fazer boa campanha, com seus vários reforços oriundos dos grandes. Mas a equipe de Niterói, dirigida por Martim Silveira, ex-médio do Botafogo e da Seleção Brasileira, não correspondeu às expectativas. Em todo caso, mostrou-se num nível acima de Bangu e Bonsucesso, os dois times considerados os mais fracos – e que confirmariam essa condição, ao ocuparem as duas últimas posições, nesta ordem, ao fim do torneio.
O Canto do Rio seria exatamente o adversário do Flamengo na primeira rodada da competição, em 5 de abril. E a fácil goleada rubro-negra por 6 a 0 em Laranjeiras começou a demolir as boas expectativas formadas sobre a equipe niteroiense. Foram três gols em cada tempo. Dois de Valido e um de Vevé no primeiro, com Perácio, Zizinho e Pirillo completando no segundo. Curiosamente, o ponta-direita argentino marcaria o primeiro e o último gols de toda aquela extensa campanha do tricampeonato rubro-negro, entre 1942 e 1944.
A vitória impositiva da estreia, porém, não faria prever a acidentada campanha do Flamengo no turno neutro. Depois da goleada, o time amargaria quatro jogos sem vencer, cedendo à reação dos adversários após estar na frente no placar. Foi assim nos empates em 1 a 1 com Botafogo e Vasco, também em Laranjeiras, pela segunda e terceira rodadas, e no 3 a 3 com o Madureira em General Severiano, desperdiçando vantagem de dois gols na volta do intervalo. E ainda na derrota por 3 a 1 para o América em São Januário.
Flamengo x Botafogo, no Estádio das Laranjeiras
O momento ruim tinha suas explicações. Em sua análise do primeiro revés rubro-negro, a Revista Esporte Ilustrado teceu duras críticas aos dirigentes do clube quanto à montagem do elenco, tido pela publicação como desnivelado, com os reservas de nível muito inferior aos titulares, e sujeito a "um regime de economia raquítica", fazendo com que frequentemente o técnico Flávio Costa tivesse de lançar mão de seus principais jogadores sem que esses estivessem em boa forma física, como foram os casos de Zizinho, Perácio e Pirillo.
O centroavante gaúcho ainda convalescia de um desleal ponta-pé por trás no tornozelo esquerdo aplicado pelo beque uruguaio Héctor "Cabezón" Romero, enquanto atuava pela Seleção Brasileira no Sul-Americano, em janeiro. Diante desse acúmulo de problemas, o Flamengo foi a campo sem seis titulares para enfrentar o Bonsucesso em Figueira de Melo na sexta rodada. Ao menos venceu por 4 a 2 graças a três gols de Vevé na etapa final. E, com quatro desfalques, fez o mesmo contra o Bangu, derrotado por 3 a 1 em São Januário.
O jogo contra o São Cristóvão pela penúltima rodada seria uma exceção naquele turno neutro: a pedido do adversário, a ordem dos mandos foi invertida, e aquele duelo seria jogado em Figueira de Melo (e o do terceiro turno passaria ao campo neutro de São Januário). Mesmo com Pirillo atuando com o braço enfaixado e Perácio recebendo ordens para se poupar, os rubro-negros saíram vencedores por 2 a 0, mais dois gols de Vevé, que se distanciava como o goleador do time (sete tentos) naquela etapa inicial do certame.
A campanha naquele primeiro terço do certame concluiu com a segunda derrota dos rubro-negros no campeonato: 2 a 1 no Fla-Flu em São Januário (Vevé marcou novamente, diminuindo o placar). O balanço era muito aquém do esperado: nos nove jogos, foram quatro vitórias, três empates e duas derrotas. Embora ocupando a terceira colocação ao lado do Madureira, o time de Flávio Costa se via a distantes seis pontos do líder Fluminense e a quatro do vice-líder Botafogo – os dois únicos a passarem invictos pela etapa.
O segundo turno começou com resultados semelhantes. Na abertura contra o Canto do Rio em Caio Martins (jogo que marcou a estreia do goleiro Jurandir, contratado ao Gimnasia y Esgrima de La Plata), o Flamengo não deu ouvidos ao clima de guerra ou à propalada armadilha tática que o clube de Niterói alardeou durante a semana: mesmo saindo atrás, o time de Flávio Costa teve sempre o comando do jogo e venceu com tranquilidade por um placar elástico de 5 a 2, com gols de Zizinho, Gérson (contra), Vevé, Nandinho e Valido.
Em seguida, contra o Botafogo em General Severiano, o time voltou a se apresentar bem fora de casa e esteve duas vezes em vantagem, com gols de Valido e Pirillo. Mas desencontros na defesa provocaram o empate em 2 a 2. Além disso, o Flamengo não contou com Vevé, o ponta em fase goleadora, substituído pelo veterano Jarbas. O resultado aumentou em um ponto a desvantagem em relação ao líder Fluminense, agora 7 pontos à frente. Em todo caso, notava-se que a equipe de Flávio Costa progredia sensivelmente.
Faltava a sorte ajudar, o que aconteceria a partir da terceira rodada, em 28 de junho. Foi quando a maré começou a virar favoravelmente ao lado rubro-negro. No mesmo instante em que o time de Flávio Costa enfim vencia seu primeiro clássico na competição ao bater o Vasco na Gávea por 1 a 0, gol contra do médio Dacunto após chute de Pirillo, o Fluminense perdia sua invencibilidade ao ser atropelado de maneira surpreendente pelo São Cristóvão em Figueira de Melo: 6 a 1, com direito a três gols do ex-rubro-negro Caxambu.
Foi como que a senha para o Flamengo iniciar mais uma arrancada memorável, ao feitio de sua história. Em dois difíceis jogos fora de casa, o time conquistou duas grandes vitórias: 2 a 0 sobre o Madureira em Conselheiro Galvão (gols de Valido e Pirillo, um em cada tempo) e um 4 a 3 cheio de reviravoltas contra o América em Campos Sales. Os rubros saíram com dois gols de frente, mas o Fla igualou no início da etapa final. Maneco recolocou o time da casa na frente, porém Nandinho e Vevé – este nos acréscimos – definiram o placar.
Enquanto isso, os tricolores não queriam demonstrar nenhum abalo após a goleada sofrida para o São Cristóvão: responderam aplicando 5 a 1 no América e derrotando o Canto do Rio por um apertado 4 a 3. Mas na sexta rodada, em 19 de julho, enquanto o Flamengo passava tranquilo pelo lanterna Bonsucesso na Gávea por 4 a 0 (com três gols de Nandinho e um de Pirillo), o Flu voltava a ser derrotado, agora para o ainda invicto Botafogo dentro de Laranjeiras por 2 a 1, num resultado que alçava os alvinegros à ponta da tabela.
Uma semana depois, enquanto o Flamengo demolia o Bangu dentro da Rua Ferrer por 6 a 0, com Zizinho, Pirillo e Vevé marcando duas vezes cada, era a vez de o Botafogo tropeçar, parando num 0 a 0 com o Canto do Rio em Caio Martins. O Fluminense, por sua vez, bateu um Vasco em franca decadência por 1 a 0 no complemento da rodada e recuperou a liderança, agora dividida com o Botafogo. O Fla, porém, já se colocava a apenas 3 pontos dos comandantes da tabela, e cada vez mais preparado para a ultrapassagem.
A diferença cairia ainda mais na rodada de 2 de agosto: na Gávea, o Flamengo passou mais uma vez tranquilo pelo São Cristóvão, fazendo 3 a 0 (Nandinho, Vevé e Pirillo) sobre um adversário que, naquele turno, havia goleado não só o Fluminense, mas também o América (7 a 0) e o Vasco (4 a 0) em seus domínios. Enquanto isso, o Botafogo perdia um ponto em casa no 2 a 2 com o América e o Fluminense era goleado mais uma vez, agora em Laranjeiras pelo Madureira por 4 a 1, com direito a gol de letra do centroavante Isaías.
Até que veio o crucial Fla-Flu da última rodada do returno, disputado na Gávea. De última hora, o time sofreu a baixa de Pirillo, com febre. Flávio Costa decidiu então improvisar Perácio, ausente há exatamente um turno, na posição de centroavante. E o atacante mineiro acabaria decidindo o clássico. Após um primeiro tempo com o Flamengo mais valente e incisivo e o Flu seguro e cauteloso, o placar foi aberto aos 11 minutos da etapa final, com Perácio cabeceando um cruzamento de Vevé. Seria o gol da vitória rubro-negra por 1 a 0.
O resultado, além de fazer o Flamengo ultrapassar o Fluminense e alcançar a segunda colocação, afirmava a incrível troca de papéis ao longo do turno. Enquanto os rubro-negros haviam perdido apenas um ponto naqueles nove jogos, os tricolores – antes invictos – sofriam sua quarta derrota no mesmo intervalo. De seis pontos atrás na virada da etapa anterior (chegando a sete após o empate com o Botafogo na segunda rodada), o time de Flávio Costa agora se via um ponto à frente em relação ao dirigido por Ondino Viera.
Fla-Flu, no Estádio da Gávea
O fato é que a equipe rubro-negra tinha enfim encaixado. Jurandir providenciava experiência e segurança sob as traves, a ponto de o Flamengo ficar sem ser vazado em seis dos nove jogos do turno. Domingos oferecia atuações soberbas semanalmente, limpando sua área e às vezes até se mandando ao ataque. Jayme era preciso como um relógio tanto como centromédio (onde atuou por alguns jogos, na ausência de Volante) quanto de médio-apoiador. E Zizinho e Pirillo voltavam a mostrar o melhor de sua forma física e técnica.
Recolocado no páreo por sua reação sensacional, o Flamengo agora mirava a liderança, ocupada pelo Botafogo. O Alvinegro, ainda invicto após as duas primeiras etapas do campeonato, somando igualmente seis vitórias e três empates em cada uma delas, primava pela regularidade. E fechou sua campanha no segundo turno goleando o Vasco por 5 a 1 em General Severiano, colocando-se dois pontos à frente dos rubro-negros e três em relação aos tricolores. Eram, de fato, os três únicos postulantes ao título, com os demais muito atrás.
E o terceiro turno começou com os três jogando em casa e levando alguns sustos, mas obtendo vitórias importantes: o Botafogo diante do Madureira (3 a 1), o Fluminense contra o Bonsucesso (2 a 0) e o Flamengo sobre o Canto do Rio: 4 a 1 de virada, com dois de Pirillo, um de Vevé e outro de Zizinho. Eram ensaios para o aguardado duelo entre rubro-negros e alvi-negros, que mediriam forças logo na rodada seguinte na Gávea, num jogo que certamente teria desdobramentos pelo resto do certame, dada a posição de ambos.
Em sua análise prévia do jogo, a Revista O Globo Sportivo escrevia: "Se foi grande a expectativa que precedeu o primeiro cotejo; se mais ansiosa ainda, a que antecedeu o choque do turno, agora a batalha se reveste de proporções ainda não atingidas". Para o Flamengo, que jogara melhor nos dois confrontos anteriores, mas não conseguira ir além do empate depois de ter estado sempre à frente do placar, vencer significava quebrar um jejum de sete jogos contra o rival pelo Carioca e consolidar sua arrancada rumo à liderança.
"Amplo e insofismável triunfo conquistou o Flamengo no clássico de domingo. Exibindo uma performance excepcional, o quadro rubro-negro impôs-se ao Botafogo em toda a linha, com superioridade na defesa e no ataque". Assim resumiu 'O Globo Sportivo' em sua análise da goleada categórica por 4 a 0 aplicada pelo Fla sobre o rival. E que teve em Valido o artífice dos primeiros dois gols: aos 16 minutos, cruzando para a chegada de Perácio e, aos 28, desarmando o zagueiro Bibi, que tentou driblá-lo, e centrando para Pirillo.
Ainda no primeiro tempo, os rubro-negros chegariam ao terceiro gol, com Perácio entrando na raça para apanhar o rebote do goleiro Ary após chute de Vevé. A goleada se confirmou na etapa final com um chute de fora da área de Jayme, aos 23 minutos. No fim, ainda houve tempo para um irritado Heleno de Freitas acertar um ponta-pé em Volante e ser expulso. Para a Revista Esporte Ilustrado, o Flamengo venceu "por uma atuação mais enérgica do seu conjunto, resistente e agressivo, técnico e disciplinado, ardoroso e eficiente".
Alcançada a liderança ao lado do Botafogo, cabia ao Flamengo agora mantê-la. Mas não seria fácil, de início: o confronto logo a seguir seria contra o Vasco em São Januário. E embora o rival vivesse péssimo momento, tratou de crescer para aquele clássico. Tendo o centro-médio Zarzur improvisado de centroavante, os cruzmaltinos amarraram o ataque rubro-negro e aos poucos foram ganhando campo e envolvendo o time de Flávio Costa. Assim, saíram para o intervalo em vantagem no placar graças a um gol do próprio Zarzur.
Na etapa final, porém, o Flamengo voltou outro: mais coeso, mais rápido, mais intenso. E passou a bombardear o gol cruzmaltino, forçando uma brilhante atuação do goleiro Roberto. Até que no fim não houve mais como o Vasco segurar. Aos 36 minutos, numa confusão na área, a bola quicou três vezes sobre o travessão. Ao descer, acabou dentro do gol, aparentemente tocada por Perácio (embora o árbitro tenha creditado como gol contra do goleiro). E aos 42, Roberto não conseguiu segurar um chute de Perácio, e Pirillo decretou o 2 a 1.
Botafogo e Fluminense também venceram na rodada, e o campeonato conhecia seu momento de disputa mais acirrada na ponta, onde qualquer tropeço poderia ser irrecuperável. Para se ter uma ideia, rubro-negros e alvi-negros dividiam a liderança com 34 pontos contra 33 dos tricolores. Em quarto, a léguas de distância com apenas 22 pontos, vinha o Madureira, seguido pelo São Cristóvão com 20. Só então, em sexto, vinham emparelhados Vasco e América com modestos 19 pontos e já sem qualquer chance de conquista.
Na rodada seguinte, já adentrando setembro, o Fla seguiu seu caminho derrotando o Madureira por 4 a 1 na Gávea, num jogo bem mais difícil do que o placar indica. Vitória importante, porém, para livrar mais um ponto sobre o Fluminense, que ficou no empate em 2 a 2 diante do América. Os rubros – que após atravessarem um péssimo momento na competição, reagiram e já estavam há oito jogos (ou dois meses) sem perder – seriam o próximo adversário do Flamengo, na Gávea, pela quinta rodada do terceiro turno, em 13 de setembro.
"Placard de bola de meia!", ironizou a Revista Esporte Ilustrado sobre o resultado aberrante – mesmo para aquela época – registrado na Gávea. O Flamengo começou arrasador e em menos de meia hora já havia balançado as redes americanas cinco vezes: Pirillo aos três e aos 12, Perácio aos 20, Zizinho aos 25 e Vevé aos 28. O America ainda teve forças para diminuir no minuto seguinte com Maneco e mais tarde, aos 37, com César. Mas com a lesão do ponta Nelsinho, que reduziu o time a dez jogadores, parecia ter entregado os pontos.
Zizinho, Pirilo e Perácio
Só que o Flamengo relaxou e se descuidou, especialmente na defesa, fazendo do segundo tempo um jogo ao estilo lá-e-cá. E um duelo de artilheiros: Pirillo, que já havia feito dois, ampliou aos 25. O americano César, que também já tinha deixado um, anotou mais dois aos 27 e aos 30. Pirillo então retrucou marcando mais dois, aos 32 e aos 35. Mas o ponto final coube a César, que tornou a diminuir aos 38, encerrando o esdrúxulo placar final de 8 a 5 para o Flamengo – com cinco de Pirillo para um lado e quatro de César para o outro.
Enquanto isso, em General Severiano, o Botafogo perdia um ponto ao empatar em 3 a 3 com o São Cristóvão num jogo muito tumultuado, deixando o Flamengo isolado na liderança. E ficaria ainda mais folgado na rodada seguinte, graças ao empate dos alvi-negros com o Fluminense por 1 a 1 em Laranjeiras, enquanto os rubro-negros despachariam sem problemas o Bonsucesso com um sonoro 7 a 0 em Teixeira de Castro, gols de Vevé, Perácio e Pirillo na primeira etapa e Perácio de novo, Zizinho e Valido (dois) na segunda.
Contra o Bangu na Gávea, na rodada seguinte, o Flamengo de novo rapidamente resolveu o jogo. Aos dois minutos, Jayme de Almeida – o melhor em campo – recebeu de Volante e acertou um chutaço para abrir o placar. Vevé e Nandinho também balançaram as redes antes dos 20 minutos de jogo, permitindo ao time se poupar para futuras batalhas, com o 3 a 0 consolidado facilmente. Na penúltima rodada, o adversário seria o São Cristóvão em São Januário, em jogo postergado para a noite de terça-feira, 6 de outubro.
No domingo, dia 4, quando aconteceu a maior parte da rodada, Botafogo e Fluminense venceram e colocaram pressão no líder. Os alvi-negros triunfaram em outro jogo tumultuado, como haviam sido os duelos com os tricolores em Laranjeiras e o São Cristóvão em General Severiano: "Não houve propriamente jogo. Três minutos apenas, o resto foram bofetão e ponta-pés", disse 'O Globo Sportivo' sobre a vitória de 4 a 0 diante do América, que teve três jogadores expulsos e se retirou do gramado de Campos Sales em protesto.
O confronto entre São Cristóvão e Flamengo também foi precedido por discussões sobre o local do jogo e a escolha do árbitro da partida. Mas quando a bola rolou, houve bom futebol. O time cadete começou melhor, e Biguá impediu por duas vezes que o adversário inaugurasse o placar. Até que o Fla saiu na frente com Valido escorando de cabeça um escanteio cobrado por Vevé aos 32 minutos do primeiro tempo. Na etapa final, o gol de Zizinho aos 15 minutos baqueou de vez o São Cristóvão e abriu caminho para a goleada.
Pirillo, o melhor do ataque rubro-negro naquele jogo noturno, marcou o terceiro aos 23. E a dois minutos do fim, Zizinho anotou seu segundo na partida, fechando a contagem em 4 a 0. Assim, o resultado tirava de vez o Fluminense do páreo e levava o Flamengo à rodada final com dois pontos de vantagem sobre o Botafogo. Bastava um empate com os tricolores nas Laranjeiras para que o título de fato fosse confirmado – caso o Fla perdesse e terminasse em igualdade de pontos com os alvi-negros, haveria uma melhor-de-três decisiva.
Aqueles eram tempos de grandes mudanças no país. Em abril do ano anterior, o decreto-lei nº 3.199 estabelecera as bases do esporte no Brasil, fazendo com que nosso futebol se adequasse às regras internacionais. Em 1943, outra nova regulamentação viria na forma do acordo ortográfico. O ano de 1942, por sua vez, marcava a declaração de guerra do Brasil ao chamado Eixo formado por Alemanha, Itália e Japão em 22 de agosto. E no dia 5 de outubro, o cruzeiro substituía os velhos réis dos tempos do Império como moeda corrente.
Mais modestamente, mas não exatamente de maneira silenciosa, uma outra mudança nascia nas arquibancadas cariocas, por obra do baiano Jayme de Carvalho. Nascido em Salvador, ele chegara ao Rio em 1927, aos 15 anos, vindo em um "ita", velho navio a vapor da Companhia Nacional de Navegação Costeira que transportava cargas e passageiros do norte ao sul do país. Num domingo, foi levado a Laranjeiras para assistir a um jogo do Fluminense. Gostou do clube, passou a torcer por ele e quis conhecer a sede, mas foi barrado.
Desapontado, atravessou a rua Guanabara (atual Pinheiro Machado) e se dirigiu a outro estádio que havia ali em frente, o do Flamengo, na Rua Paissandu. Encontrou o portão aberto, entrou e ficou assistindo ao treino. Dali em diante acompanharia toda a saga que levaria os rubro-negros ao título carioca daquele ano. Tornou-se um flamenguista incondicional. Mais tarde, já adulto, conheceu Laura, portuguesa de nascimento, mas rubro-negra tão fanática quanto ele. Casaram-se e passaram a ir juntos aos jogos do Flamengo.
Certo dia, na reta final daquele acirrado campeonato de 1942, sentiram a necessidade de um impulso mais vigoroso vindo das arquibancadas. Um empurrão extra, um sopro de vitalidade e um toque marcial para comandar o tropel vermelho e preto rumo às vitórias. Reuniram um grupo de amigos, cerca de 20 pessoas, alguns deles músicos amadores, e seguiram para Laranjeiras, onde aconteceria o Fla-Flu que poderia dar o título ao Flamengo. Todos de camisa rubro-negra levando faixas, bandeiras e instrumentos musicais.
Na época a vestimenta comum nas arquibancadas não era a camisa do time. O paletó, a gravata e o chapéu ainda predominavam. Banda de música empurrando o time durante o jogo com hinos e canções de apoio também nunca se ouvira nos estádios – ainda que aquele grupo não fosse lá muito afinado: ao fim do jogo, um irritado Ary Barroso, que havia narrado o jogo para o rádio, se aproximou, ralhando: "Mas isso não é uma banda nem aqui nem no caixa-prego. Isso aí é uma charanga!". E estava batizada a Charanga Rubro-Negra.
Não era a primeira torcida organizada do clube: a pioneira Ala Flamenga havia surgido em 1927, formada por 21 integrantes (curiosamente, em sua maioria mulheres) do Atheneu Luso Carioca. O Grêmio Sampaulino, criado em 1939 e depois rebatizado Torcida Uniformizada do São Paulo (Tusp), trazia a novidade da vestimenta – mas não era a camisa do clube, e sim uma toda branca com o escudo tricolor. Além disso, para integrá-la era necessário ser sócio do São Paulo. Já a Charanga era uma iniciativa aberta e espontânea.
Aquele apoio diferenciado, manifestado na faixa onde se lia "Avante, Flamengo!", seria de grande importância para o time, ainda mais após Nandinho se lesionar logo aos 15 minutos de jogo e ter de fazer número na ponta direita – e mais tarde, abandonar a partida de vez, reduzindo os rubro-negros a dez jogadores em campo. Suportando a pressão inicial tricolor, o Flamengo conseguiu um desafogo e construiu três boas oportunidades de gol antes de abrir o placar aos 23 minutos, quando Pirillo invadiu a área e fuzilou Batatais.
Ainda antes do intervalo, porém, o Fluminense chegaria ao empate num lance irregular: Jurandir saltou para agarrar um cruzamento de Adílson e, na volta, foi empurrado com bola e tudo para dentro do gol pelo ponta-esquerda Carreiro. Falta clara ignorada pelo árbitro José Pereira Peixoto. Na etapa final, os tricolores foram para cima em busca da virada. Mas foi a vez de o Flamengo dar o troco do "Fla-Flu da Lagoa", resistindo bravamente dentro do estádio do rival e com um homem a menos para assegurar o 1 a 1 que lhe deu o título.
Ainda no gramado, jogadores e dirigentes rubro-negros comemoraram a conquista com abraços e garrafas de champanhe. Alguns atletas se emocionaram: Jayme de Almeida, a quem Flávio Costa apontou como seu "craque número 1" naquela campanha, chorava enquanto saudava os rubro-negros presentes nas arquibancadas. Era o desfecho vitorioso de uma caminhada na qual, em certa altura, o Flamengo havia sido descartado como candidato ao título. Mas empreendeu uma bela arrancada, como apontou O Globo Sportivo.
"Não saiu nenhuma entrevista em jornal, não houve a mínima intenção de alardear uma confiança inexistente", lembrou a publicação. "Houve uma tremenda reação na Gávea, mas tudo executado silenciosamente, sem alarde. Basta lembrar que os jogadores iniciaram uma concentração voluntária. Cada adversário, por mais modesta que fosse a sua posição na tabela, passou a ser considerado um obstáculo seríssimo. Foi instituído um regime rigorosíssimo, como se cada compromisso fosse o decisivo".
"Mas os resultados não apareceram logo ou, pelo menos, passaram despercebidos", ressalvou a publicação, que elegeu Domingos da Guia o craque do certame. "Quando terminou o segundo turno é que a cidade esportiva tomou conhecimento, quase assustada, pelo imprevisto, que o Flamengo estava de novo no páreo para a arrancada final". Aquele sprint rubro-negro seria de fato memorável: foram 18 partidas sem derrota a partir da abertura do segundo turno, incluindo uma incrível sequência de 15 inapeláveis vitórias.
Ao todo, o Flamengo venceu 20 de suas 27 partidas, com cinco empates e apenas duas derrotas, ambas registradas ainda no turno neutro. Somou 45 pontos, um a mais que o Botafogo e três em relação ao Fluminense. Teve ainda, com folga, o melhor ataque (87 gols marcados) e a melhor defesa (29 gols sofridos). Entretanto, a conquista ainda teria de esperar até o dia 23 para ser confirmada, já que os alvi-negros haviam entrado com recurso jurídico pedindo a anulação de seu empate em 3 a 3 com o São Cristóvão.
O parecer inicial da Comissão de Legislação e Clubes da Federação Metropolitana de Futebol já indicava que a alegação alvi-negra de "erro de direito" cometido pelo árbitro Guilherme Gomes no jogo disputado em General Severiano não se sustentava. E ela seria definitivamente rechaçada por unanimidade (oito votos a zero) no julgamento do Conselho Supremo da entidade. Seria a segunda goleada sofrida pelos botafoguenses naquele campeonato – a primeira havia sido o 4 a 0 imposto pelo Flamengo no terceiro turno.
Os Campeões de 1943
Quando a decisão do Conselho saiu, aliás, o time rubro-negro já estava em São Paulo, para onde retornou a convite do Trio de Ferro da capital paulista, ansioso para medir forças no Pacaembu. No dia 18, o Flamengo derrotou o Palmeiras (novo nome do Palestra) por 2 a 1 no tira-teima dos campeões de 1942. Já no dia 22, véspera do julgamento do recurso do Botafogo, superou o Corinthians, vice paulista, por 4 a 2. E na despedida, no dia 28, empatou em 3 a 3 com o São Paulo, terceiro colocado no estadual.
Curiosamente, era o inverso dos resultados obtidos em março, no Quinela de Ouro. O que não mudou, porém, foi a aclamação da imprensa local e o prestígio com que a equipe de Flávio Costa retornou ao Rio. Um time que ainda acumularia outros grandes feitos pelos dois anos seguintes, levantando um tricampeonato que o posicionaria entre os maiores esquadrões de seu tempo e da história do futebol brasileiro. A conquista de 1942 seria o primeiro passo para aquela consagração eterna em vermelho e preto.
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