terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

O desempenho quase irretocável na conquista do Carioca de 1943


Mais uma maravilhosa história contada com maestria e envolvente narrativa por Emmanuel do Valle em seu blog Flamengo Alternativo:


Ao contrário das conquistas de 1942 e 1944, nas quais em certos momentos o Flamengo chegou a ser dado como fora do páreo, o título carioca de 1943 foi o momento de maior regularidade dos rubro-negros na trajetória de seu primeiro tricampeonato. Mesmo com baixas importantes, o time de Flávio Costa sofreu só uma derrota, logo na quarta rodada. Venceu os dois duelos com o Botafogo por placares elásticos. Aplicou sua maior goleada sobre o Vasco na história. E pôs as mãos na taça com um passeio sobre o Bangu na Gávea.

Em sua autobiografia, Zizinho - o Mestre Ziza - meia-armador rubro-negro daquela esquipe relembra aquele título de 1943 como "o menos difícil da gloriosa campanha do tricampeonato". Segundo ele, a equipe "estava mais amadurecida e pôde encarar o campeonato com mais confiança" e ainda "estava no auge da forma física e técnica, e nossas linhas entendiam-se perfeitamente, como se fossem peças de uma máquina. Chegamos ao final da grande campanha com um resultado que não nos surpreendeu", relembrou o condutor daquele time.

A temporada de 1943 foi marcada por novidades introduzidas pela Federação Carioca de Futebol. A primeira era a criação do Torneio Relâmpago, disputado só pelos cinco grandes da cidade, que se enfrentavam em cinco rodadas duplas disputadas em apenas dez dias, entre 14 a 24 de março. A outra era o retorno do Torneio Municipal, já realizado em 1938, mas sob novo formato: ressurgia a partir do desmembramento do chamado "turno neutro", que integrara o "corpo" do campeonato principal nas edições de 1939, 1940 e 1942.

Sendo assim, esse novo Torneio Municipal seria disputado pelos mesmos 10 clubes que jogavam o Campeonato Carioca, em turno único e com todas as partidas em campo neutro – lembrando que, na época, cada clube tinha seu estádio. Seriam nove rodadas realizadas entre 11 de abril e 6 de junho. Com isso, o Carioca daquele ano, que vinha logo a seguir, seria mais curto que os das últimas temporadas: eram dois turnos corridos e apenas 18 jogos para cada equipe, estendendo-se por quase quatro meses até o início de outubro.

Mesmo sem contar com todos os titulares, os rubro-negros venceram um Torneio Relâmpago em que o equilíbrio predominou. O time empatou com o Vasco na estreia (1 a 1), goleou o Botafogo (4 a 1), bateu o América (2 a 0) e foi goleado pelo Fluminense na última rodada (5 a 1), mas levou a taça com o empate em 3 a 3 entre Botafogo e América na preliminar – os rubros também tinham chance de título. Para se ter uma ideia da disputa, o Fla terminou com cinco pontos, contra quatro de America, Fluminense e Vasco e três do Botafogo.

Já no Municipal, o Flamengo começou bem, mas perdeu o fôlego e cumpriu campanha apenas mediana. O caneco ficou de modo surpreendente com o São Cristóvão, coroando o bom momento do clube cadete, que já vinha de um quarto lugar no Campeonato Carioca de 1942. Entre as duas novas competições houve ainda a realização do tradicional Torneio Início, disputado no dia 28 de março em Laranjeiras e vencido pelo Fluminense em decisão com o Madureira. Mas todas essas competições eram meros aperitivos para a disputa maior.

Em termos de elenco, os rubro-negros mantinham a base titular que havia levantado o título em 1942 após sensacional arrancada nos dois últimos turnos. Porém, havia duas grandes baixas, uma temporária e outra definitiva. A primeira era Perácio. Convocado pelo Exército para servir à Força Expedicionária Brasileira que seguiria para a Itália, onde participaria da Segunda Guerra Mundial, o atacante passou todo o primeiro semestre em Recife, recebendo treinamento militar. Voltaria em julho, com o campeonato já em andamento.

A outra baixa, a definitiva até onde se imaginava, era a do argentino Agustín Valido, ponta-direita que integrava o elenco rubro-negro desde 1937, mas que, aos 29 anos completados em janeiro, decidira se aposentar dos gramados para cuidar de sua tipografia, a Rio-Platense, aberta na cidade em sociedade com seu compatriota Carlos Volante, que seguia atuando pelo Flamengo. Em 28 de maio, Valido escreveu duas cartas ao presidente Dario de Mello Pinto e ao técnico Flávio Costa comunicando sua retirada e agradecendo a todos no clube.

Para suprir as ausências, chegaram reforços. O rápido ponta-direita Nilo foi trazido do Vitória da Bahia para o lugar de Valido. O ponta-de-lança (ou centroavante) Tião foi contratado às turras do Atlético Mineiro para suprir a lacuna temporária de Perácio. Um nome badalado, mas que acabou não vingando foi o argentino Ricardo Alarcón, atacante interior revelação do Boca Juniors em 1941 que, após ser emprestado ao Platense no ano seguinte, tomou o rumo da Gávea. Sua passagem duraria apenas dez meses e dez jogos.

Pela outra porta, muitos nomes deixaram o clube, entre eles vários veteranos: os goleiros Yustrich e Martinho (o novato Luís Borracha, oriundo do Minas de Barra Mansa, no estado do Rio, passaria a ser o novo e promissor reserva imediato de Jurandyr), os médios Jocelyno e Médio, o meia argentino-canadense Emilio Reuben e o ponta-direita Sá. Em todo caso, os grandes nomes haviam permanecido: Jurandyr, Domingos, Newton Canegal, Biguá, Volante, Jayme, Zizinho, Pirillo, Vevé. Ainda era um time fortíssimo, candidato certo ao título.

Como também eram, pela tradição, os outros grandes da cidade: América, Botafogo, Fluminense e Vasco. Mas cada um dos quatro se encontrava num estágio diferente naquele momento. O Flu com seu elenco recheado de opções e sua força recente – campeão em cinco dos sete anos anteriores – certamente era um dos que fariam frente. Já as últimas conquistas dos outros três remetiam ao período de cisão de ligas: o Vasco levantara um dos canecos em disputa em 1936, e América e Botafogo venceram, cada um, uma liga em 1935.

Dos três, as maiores expectativas eram depositadas sobre o Botafogo. Afinal, os alvi-negros haviam feito ótimo campeonato em 1942, conservando-se invictos até o terceiro turno (quando sofreram sua única derrota em 27 partidas: 4 a 0 para o Flamengo) e terminando em segundo lugar um ponto atrás dos rubro-negros na classificação final. Haviam iniciado mal o Torneio Municipal, mas se recuperaram do meio para o fim do certame, sendo inclusive a única equipe a conseguir derrotar – e por goleada – o São Cristovão, futuro campeão.

Os cruzmaltinos haviam reformulado grande parte de seu elenco depois do decepcionante 7º lugar em 1942. Além de trazerem a São Januário, em bloco, o trio central de ataque do Madureira formado por Lelé, Isaías e Jair Rosa Pinto, já contavam também com o jovem pernambucano Ademir de Menezes, oriundo do Sport. Já o América, dirigido por Gentil Cardoso, unia a defesa firme ao ataque rápido, habilidoso e de grande movimentação, que ganharia o apelido de "Tico-Tico no Fubá", em alusão ao choro de Zequinha de Abreu.

Entre os pequenos, o mais indicado a brigar nas cabeças – falando-se até em título – era o São Cristóvão, dirigido pelo argentino Abel Picabéa e credenciado pelo recém-conquistado Torneio Municipal, vencido com ótima campanha: sete vitórias e uma derrota em nove jogos. Bonsucesso e Canto do Rio, por sua vez, com times cheios de jogadores rodados, poderiam tirar pontos dos grandes. Já do Madureira, que vendera seus maiores talentos, não se esperava muito. Por fim, o pobre Bangu se apresentava como o maior candidato à lanterna.


A estreia rubro-negra no campeonato seria em casa, na Gávea, diante do Madureira no dia 13 de junho. Em tese fácil, a partida se revelou complicada muito em face dos cinco desfalques de peso na equipe de Flávio Costa: Domingos estava em litígio com o clube. E Jurandyr, Zizinho, Pirillo e Vevé se viam às voltas com lesões desde o Torneio Municipal. O Tricolor Suburbano saiu na frente com Murilinho aos 28 minutos, mas Nandinho empatou aos 33. E a virada veio no segundo tempo, aos 12 minutos, com gol de Tião: 2 a 1.

A segunda rodada já reservava um clássico: o Botafogo em General Severiano. O Fla teria Zizinho, Pirillo e Vevé de volta. Mas Luís Borracha ainda ocuparia a meta. E Domingos, que havia resolvido seu desentendimento com o clube, caiu febril antes da partida. Chegou a pedir para jogar mesmo sem condições, mas foi vetado pelo Dr. Paes Barreto. Apesar disso e da força do adversário, o time de Flávio Costa não demorou a abrir vantagem: Pirillo invadiu pelo meio da defesa do Botafogo e, sem ser incomodado, finalizou para marcar o primeiro.

Ainda no primeiro tempo, mais dois gols rubro-negros: no segundo, Vevé cruzou para Nilo escorar de cabeça para as redes de Aymoré. No terceiro, os papeis se inverteram: Nilo centrou para Vevé acertar um de seus tradicionais e magníficos chutes de sem-pulo, pegando na veia. Diante da inoperância de seu ataque, o Botafogo só descontou no avanço do médio Zarcy, quando o Fla baixava o ritmo. Mas Tião daria o golpe de misericórdia com outro golaço: recebeu de Nilo, passou por entre a zaga, driblou o goleiro e tocou às redes: 4 a 1.

No terceiro jogo, contra o Canto do Rio na Gávea, enfim estava em campo o time que se julgava o titular, no desenho da "diagonal" implantado por Flávio Costa: Jurandyr no gol; Biguá e Newton Canegal ladeando Domingos na defesa; Volante na proteção à zaga e Jayme mais adiantado à esquerda; Zizinho de meia-armador com Tião pela ponta-de-lança; Nilo e Vevé pelas pontas e Pirillo no comando do ataque. O adversário vinha de aplicar uma goleada de 7 a 2 sobre o Bonsucesso. Mas o Fla era superior e venceu com autoridade.

Na etapa inicial, Zizinho e Pirillo construíram a vantagem. Na volta do intervalo, o Canto do Rio chegou a diminuir para 2 a 1 com Mical aos 18 minutos. O susto, no entanto, passou rápido: aos 22, Pirillo tornou a ampliar. E sete minutos depois Tião decretou novo 4 a 1 no placar final. Com três vitórias nas três primeiras rodadas, o Flamengo largava bem, mas teria pela frente na rodada seguinte o perigoso América, que aos poucos se acertava e vinha de vitória convincente sobre o Botafogo. E como todo clássico, era jogo sem favorito.

Mesmo jogando na Gávea, o Fla sofreu no primeiro tempo. Principalmente por conta de Volante, que, sem velocidade, acabou envolvido pelos dois meias americanos, Lima e Maneco, o "Saci de Irajá". E o próprio Maneco seria o autor dos dois gols rubros: o primeiro, pegando rebote de uma bola que Newton Canegal cabeceou para trás e acertou a trave, e o segundo numa cabeçada após escanteio. Após o intervalo, o Fla voltou melhor e até descontou numa bela jogada individual de Zizinho, passando por três adversários e chutando alto.

Mas depois que Vevé foi expulso ao acertar um pontapé sem bola no zagueiro Osny nos minutos finais, ficou difícil correr atrás do prejuízo e qualquer reação foi definitivamente neutralizada. O Flamengo perdia o 100% de aproveitamento e deixava a liderança, caindo para o terceiro lugar junto com o próprio América. Tendo o Fluminense em Laranjeiras como o próximo adversário, no dia 11 de julho, num duelo crucial para as pretensões rubro-negras, Flávio Costa se via instado a alterar a equipe. Porém, não teria apenas más notícias.

Vevé estaria fora, suspenso, o que traria o veterano Jarbas de volta ao time na ponta-esquerda. Outro veterano, Volante, parecia já distante da melhor forma. Mas sem ter outra opção imediata, o treinador lançou Quirino de centro-médio enquanto o clube ainda buscava um nome de nível para a posição. Por outro lado, Biguá, que havia sido desfalque contra o América, retornava. Assim como Perácio, que chegara de Pernambuco e enfim estrearia na temporada: o Fla-Flu seria seu primeiro jogo pelo Flamengo desde setembro de 1942.

A etapa inicial em Laranjeiras foi muito estudada, mas o Fla chegou mais perto de abrir o placar quando o goleiro tricolor Gijo evitou gol contra de Renganeschi. Após o intervalo, o time de Flávio Costa voltou mais objetivo e se impôs, mesmo na casa do rival. Perácio aproveitou a desatenção da defesa e marcou seu retorno com o primeiro gol do clássico logo aos três minutos do segundo tempo. Depois, aos 24, Zizinho fechou a contagem em 2 a 0 com um belo chute colocado da entrada da área. Mas o nome do jogo foi Domingos.


No começo do ano, o centroavante tricolor Maracaí havia ganhado as manchetes ao marcar três vezes na goleada de 5 a 1 sobre um Flamengo sem Domingos pelo Torneio Relâmpago. Desta vez, submetido à estrita vigilância do experiente zagueiro rubro-negro, passou a partida inteira em seu bolso, não conseguindo nada de produtivo mesmo quando procurou cair pelas pontas. "Player com Domingos de guarda é um jogador quase anulado, e assim aconteceu com o jovem atacante do club das Laranjeiras", escreveu O Globo Sportivo.

De acordo com a análise do jogo feita pela crônica da publicação, "o Flamengo mostrou maior equilíbrio de linhas do que o Fluminense. O trio final sempre firme e os halves de ala apoiando Quirino e cobrindo as suas falhas. No ataque, muito dinamismo e boa produção técnica. Assim, não é difícil compreender a justiça do triunfo rubro-negro". A equipe de Flávio Costa voltava aos trilhos e, de quebra, afastava o rival da liderança. O surpreendente ponteiro isolado agora era o São Cristóvão, que vencera todos os seus cinco jogos até ali.

E seria exatamente o São Cristóvão o próximo adversário do Flamengo, em duelo na Gávea no dia 18 de julho. O time entrou em campo com alterações nas pontas: Nilo, cujo rendimento não vinha satisfazendo, foi barrado. Tião, que vinha bem na ponta-de-lança até perder o lugar com o retorno de Perácio, acabou deslocado para a ponta-direita, de improviso. Já do lado esquerdo, Vevé havia cumprido suspensão contra o Fluminense e era retorno certo, com Jarbas voltando à suplência. De resto, era a mesma escalação da partida anterior.

Embalado pela vitória no Fla-Flu, o time rubro-negro fez um jogo muito coeso, com a defesa firme e o ataque criativo. Abriu o placar aos 18 minutos com Perácio escorando de cabeça para a testada de Pirillo e aos 42 ainda marcou outro gol, não validado, numa bola chutada por Zizinho que bateu no travessão e quicou dentro da meta antes de ser afastada pela defesa são-cristovense. Na etapa final, o Fla saiu para definir e chegou facilmente à goleada de 4 a 0, quando os cadetes já estavam completamente desnorteados e sem reação.

"O segundo goal do Flamengo", aos 16 minutos, "foi conquistado por Perácio, mas o trabalho todo coube a Zizinho, que passou por Castanheira e Augusto e quase junto à linha de fundo, centrou rasteiro. Perácio emendou e venceu Véliz, a curta distância", registrou O Globo Sportivo. O terceiro saiu logo em seguida, aos 18, mais uma vez com Perácio, agora em cabeçada. Já no quarto, aos 38, Zizinho abriu na direita do ataque para Tião, que arrancou superando a marcação de Augusto e mandou um chute cruzado, potente e indefensável.

Com a goleada, o Flamengo alcançou o adversário na liderança e pôs fim à campanha perfeita dos cadetes na competição. Os três tinham a companhia do América na ponta, após a vitória dos rubros sobre o Fluminense em outro confronto na parte de cima da tabela. Uma semana depois, o time de Flávio Costa se manteve no topo com um 5 a 1 no Bonsucesso na Gávea. Na etapa inicial, Perácio, Vevé, Pirillo e Zizinho construíram a goleada. No segundo tempo, Telesca diminuiu, mas Vevé voltou a balançar as redes e fechou a contagem.


Na noite de sábado, 31 de julho, seria a vez de enfrentar o Vasco em São Januário. O Cruzmaltino vinha em franca recuperação no torneio após um mau começo: derrotado nos dois primeiros jogos, somou cinco vitórias seguidas e já se aproximava do grupo da frente. O clássico atraiu público expressivo ao estádio e, segundo o Jornal dos Sports, só não superou a renda de um Fla-Flu de 1939 disputado no mesmo palco, também à noite. No time rubro-negro, só uma alteração: Nilo voltava à ponta-direita no lugar do antes improvisado Tião.

A partida terminou com empate em 1 a 1. Os dois gols, nascidos em jogadas semelhantes, saíram num espaço de quatro minutos. O Vasco abriu a contagem aos 13 minutos: o centroavante Isaías desceu pela esquerda e cruzou; Jurandyr não conseguiu segurar, e Djalma tocou para as redes. O empate rubro-negro, aos 17, começou com passe de Jayme para Vevé na ponta e o centro alto para a cabeçada de Pirillo, defendida apenas parcialmente pelo goleiro Roberto. No rebote, Nilo apareceu mais rápido e encheu o pé para decretar a igualdade.

O resultado alçou o Flamengo pela primeira vez à liderança isolada no certame, graças em parte ao perde-e-ganha nos recentes confrontos diretos entre os outros ponteiros: o América perdeu sua invencibilidade ao cair em Figueira de Melo para o São Cristóvão que, por sua vez, foi batido pelo Fluminense em Laranjeiras. Mas na última rodada do turno, os rubro-negros tinham missão indigesta: o longo caminho até a Rua Ferrer para pegar um Bangu que fazia campanha melhor que a esperada e ainda não havia perdido em casa.

A equipe do Flamengo novamente teria mudanças: frequentemente apontado como o elo fraco no sistema defensivo, Quirino perdeu lugar no time para o experiente Artigas (que costumava jogar de médio de ala ou de zagueiro). A outra alteração se devia a problemas físicos: lesionado, Pirillo era baixa importante no ataque, substituído por Tião. Em campo, os rubro-negros tiveram situações favoráveis em vários momentos do jogo, mas deixaram o campo banguense lamentando um inacreditável tropeço num empate em 2 a 2.

Tudo começou aos 21 minutos, com um pênalti marcado após toque de mão do zagueiro Paulo, do time da casa. Vevé bateu, mas o goleiro João Alberto pegou. No minuto seguinte, em contra-ataque, Nadinho inaugurou a contagem para os alvi-rubros. O Fla empataria ainda no primeiro tempo com o mesmo Vevé aos 35 minutos e viraria com Perácio aos oito da etapa final. No lance do segundo gol, o arqueiro banguense se lesionou e ficou fora da partida por dez minutos, durante os quais o atacante Nadinho foi para a meta num dramático improviso.

Nesses dez minutos em que o Bangu teve um homem a menos e um jogador de linha no gol, o Fla não soube aproveitar para ampliar a vantagem. No fim, o castigo: aos 41 minutos, Otacílio fez o gol de empate. O resultado tirou dos rubro-negros a liderança isolada. O turno terminava com quatro equipes juntas em primeiro lugar: além do próprio Flamengo, o América, o Fluminense e o São Cristóvão somavam os mesmos 14 pontos. O Vasco vinha mais atrás com 11, seguido ainda mais à distância pelo Botafogo, que tinha só oito pontos.

O empate inesperado levou o Flamengo a cogitar impor aos atletas a um regime de concentração rigorosa. A ideia, entretanto, não foi adiante. Para a partida contra o Madureira em Conselheiro Galvão, na abertura do returno, o time voltaria a contar com Pirillo no comando do ataque, tendo Tião deslocado para a ponta-direita (Nilo ia novamente para a reserva). Mas de última hora perdeu Zizinho, gripado e substituído por Alarcón. Em campo, a ausência do armador titular foi sentida: um frustrante 0 a 0 fez o Fla deixar a ponta da tabela.

Com o São Cristóvão abrindo o returno na liderança isolada, o Flamengo tentaria a reabilitação no clássico contra o Botafogo na Gávea, com as voltas de Nilo e Zizinho. Foi um jogo nervoso: os alvi-negros destacaram o médio Zezé Moreira para marcar individualmente Perácio. Não só marcar como provocar, catimbar. Irritado, Perácio acertou um soco em Díaz e foi expulso ainda na etapa inicial, aos 33 minutos, quando o Flamengo já vencia por 1 a 0, gol de Vevé aos 13. Com dez, no entanto, o Fla cresceu, liderado por seu ponta-esquerda.

Foi como se Zezé tivesse dado por cumprida sua missão no jogo ao provocar a saída de Perácio. Ainda antes do intervalo, pelo lado do médio botafoguense, Vevé marcou o segundo e o terceiro gols rubro-negros aos 42 e 45 minutos. E logo na volta do intervalo, criou a jogada para o quarto gol, de Nilo. Com um a menos, o Flamengo abria 4 a 0. Depois disso, o Botafogo até deixou de lado as botinadas e tentou jogar bola. Conseguiu diminuir o placar quando o Fla recuou em vista da vantagem. Mas não evitou a derrota por 4 a 2.

No Jornal dos Sports, Everardo Lopes criticou a violência alvi-negra: "É também princípio corriqueiro, mas nem sempre aceito, de que tão nobre é vencer como saber perder. Entretanto, os defensores do tradicionalmente simpático Botafogo esqueceram esse princípio. Cedo se aperceberam de que não seria fácil o triunfo. E cedo – antes mesmo de lançar-se à disputa, ao cotejo técnico – preferiram entregar-se à disputa individual. Homem contra homem. A pelota, realmente o instrumento da disputa, passou a assumir condição secundária".

Na sexta-feira seguinte, 27 de agosto, antevéspera do jogo contra o Canto do Rio em Caio Martins, chegava ao Rio de Janeiro um reforço crucial para a equipe rubro-negra: o centro-médio paraguaio Modesto Bria, 21 anos, contratado do Nacional de Assunção após extensas negociações que se arrastaram por quase todo aquele mês. Com o argentino Volante já em declínio físico, Quirino ainda inexperiente e o improvisado Artigas também sem convencer, a posição vinha sendo o ponto fraco mais escancarado no time dirigido por Flávio Costa.

Bria, no entanto, ainda levaria certo tempo para estrear. Contra o Canto do Rio, a única alteração no time foi a entrada de Nandinho na ponta-de-lança no lugar do suspenso Perácio. Travado pela defesa adversária, o Flamengo amargou um 0 a 0, seu quarto empate nas últimas cinco partidas. Entretanto, o ponto obtido em Niterói acabou recolocando a equipe na liderança ao lado do São Cristóvão, derrotado de maneira surpreendente pelo Bangu na Rua Ferrer. Os dois clubes somavam 18 pontos, contra 17 do Fluminense, 16 do América e 14 do Vasco.

Outra posição em que ninguém havia se firmado era a ponta-direita. Diante disso, nos treinos que antecederam o duelo com o América, Flávio Costa decidiu experimentar três jogadores diferentes: além do habitual titular Nilo, os reservas Lupércio e Jacyr também atuaram entre os titulares no coletivo. O último acabou ganhando a vaga. Carioca, apenas 19 anos, cria da base rubro-negra, Jacyr só disputara quatro jogos pelo Fla desde sua estreia em 1941, sendo três amistosos. Não jogava no time de cima desde maio de 1942.

O Flamengo tinha o América atravessado. Os rubros, que já haviam vencido o duelo pelo Torneio Municipal, também haviam sido os únicos até ali a baterem a equipe de Flávio Costa no Carioca, e em plena Gávea. Além da permanência na liderança, havia o desejo da desforra naquele 5 de setembro em Campos Sales. O paraguaio Bria, ainda sem situação regularizada, não poderia fazer sua estreia. O novato Jacyr, sim, teria chance de mostrar seu futebol. Às vésperas do clássico, o elenco se fechava, quase não falava. Só prometia muita luta.

No primeiro tempo, o América atacou mais e teve mais volume de jogo, mas a melhor chance foi do Flamengo, numa bola que o zagueiro Osny salvou em cima da linha depois de ter passado pelo goleiro Vicente. Mas na volta do intervalo, o Fla rapidamente resolveu o jogo. Primeiro aos sete minutos, quando Vevé chutou mascado para o gol, mas sua finalização defeituosa virou um centro para Perácio empurrar às redes. Três minutos depois, Zizinho ampliou numa cabeçada para a qual o arqueiro rubro apenas fez golpe de vista, reagindo tarde.

E aos 21 minutos viria o terceiro gol, do quase debutante Jacyr, recebendo e batendo de pé direito, cruzado, na corrida. Na comemoração, uma festa para o garoto da base: até os jogadores de defesa – Jurandyr, Domingos, Newton – vieram de lá de trás para apoiar o calouro, que jogava solto. O América ainda descontou numa bela e precisa cobrança de falta do ponteiro Esquerdinha. Mas a tarde era toda do Flamengo naqueles 3 a 1 em Campos Sales. E de Jacyr, carregado pelos torcedores que invadiram o campo após o apito final.

As boas notícias vieram também de Conselheiro Galvão: com a derrota do São Cristóvão para o Madureira (a segunda seguida dos cadetes), o Fla assumia a liderança isolada do certame com 20 pontos ganhos. No horizonte havia o Fla-Flu da Gávea, agora o duelo entre o primeiro e o segundo colocados na tabela. Mas seguia incerta a presença de Bria, pendente da documentação cujo envio era protelado pelos paraguaios. A papelada chegou na véspera do clássico: rapidamente regularizado, o novo centro-médio rubro-negro estaria em campo.

Biguá, Bria e Jayme

Seria, portanto, a primeira vez que o Flamengo reuniria em campo sua célebre e logo consagrada "linha média" com Biguá, Bria e Jayme, que permaneceria junta pelo resto da década – embora o trio não formasse de fato uma linha média dentro do desenho tático da equipe. Porém, foi o Fluminense que saiu em vantagem no clássico logo aos sete minutos, aproveitando um erro na saída de bola rubro-negra: o argentino Invernizzi interceptou passe de Domingos a Newton, invadiu e chutou para vencer Jurandyr e abrir a contagem na Gávea.

O empate do Fla, aos 12 minutos, nasceu também de falha da retaguarda tricolor: Affonsinho não cortou um lançamento para Jacyr, que cruzou da linha de fundo para Perácio mandar às redes. O Fla ainda acertou a trave e viu Domingos fazer grande jogada descendo pela direita driblando como um ponta, mas ninguém apareceu para escorar seu cruzamento. Pouco antes do intervalo, aos 42, o Fluminense voltou a se colocar em vantagem no marcador, numa deixada de Tim para o ponta-esquerda Carreiro, que chutou forte para marcar.

Na etapa final, o Flamengo foi encurralando cada vez mais o Fluminense, que não conseguia sair de sua defesa, mas era salvo pelo goleiro Gijo, realizando grandes intervenções. Na equipe rubro-negra, o estreante Bria se apresentava muito bem na distribuição, com passes bem calculados e boa visão de jogo. Na primeira etapa, ele travara interessante embate com o armador tricolor Tim, mas este agora se limitava a auxiliar a defesa no bloqueio. Até que, a segundos do encerramento, o Fluminense cedeu um escanteio pela ponta esquerda.

Vevé bateu de canhota, pegando de trivela, muito fechado. A bola quase entrou direto: Gijo deu um tapa e ela acertou o travessão. O rebote caiu aos pés de Perácio. E o gol de empate veio como numa avalanche. Time e torcida rubro-negros num misto de alívio e euforia. "É difícil descrever o delírio que se apossou da torcida do Flamengo. A bola mal chegou ao centro do campo, Pereira Peixoto apitou, o match acabara. A multidão continuava a gritar goal, a pular, tudo que era Flamengo enlouquecera", relatou Mário Filho no Jornal dos Sports.

Ainda atônito pelo empate cedido no último lance, na saída do campo o tricolor Tim comentava também ao Jornal dos Sports sobre o escanteio batido por Vevé que acabou definindo o resultado: "Foi excelentemente cobrado. Só excelente não, absurdamente cobrado. Confesso que nunca vi coisa assim", impressionou-se. Na crônica para O Globo Sportivo, Ricardo Serran relembrou o "Fla-Flu da Lagoa", quando os rubro-negros martelaram a defesa tricolor atrás do gol que não veio: "Desde 1941 que o Flamengo esperava por um goal assim".


Após bater o América, praticamente alijando os rubros da disputa, e empatar com o Fluminense mantendo-se um ponto à frente do rival na liderança, o Flamengo faria seu terceiro confronto direto seguido, agora diante do também vice-líder São Cristóvão em Figueira de Melo – estádio cuja segurança e estrutura para receber jogos de grande porte já vinha sendo questionada desde o início da competição, mas do qual o clube cadete não abrira mão para sediar a partida. E logo se daria a tragédia que marcaria o futebol carioca.

O alçapão, com lotação máxima para 7.300 lugares (4 mil em arquibancadas, 3 mil nas gerais e 300 nas cadeiras), recebeu muito além desse número naquele 19 de setembro. Havia gente até no mastro dos refletores. Falava-se em 10 mil espectadores. O Flamengo saiu na frente aos 13 minutos quando Vevé apanhou o rebote de um chute de Zizinho na trave. Cinco minutos depois, o drama: parte das superlotadas arquibancadas de madeira desabou, ferindo centenas de torcedores. A confusão que se seguiu paralisou de imediato a partida.

"Foi como se a terra se abrisse", escreveu Mário Filho no Jornal dos Sports. Como num efeito dominó, torcedores caíram uns sobre os outros até às grades, que despencaram sobre os policiais. O campo foi invadido pelo público que fugia e buscava socorro. A partida foi interrompida e o campo de Figueira de Melo, interditado. Segundo os registros policiais, 224 pessoas foram internadas em hospitais das proximidades. A Federação Metropolitana decidiu ainda proibir arquibancadas de madeira nos campos do Campeonato Carioca.


A partida foi marcada para reiniciar de onde havia parado três dias depois, mas em São Januário. E, numa medida que causou surpresa, com ingressos pagos. A renda seria revertida às vítimas do acidente e a instituições de caridade. Mesmo numa quarta-feira à tarde, cerca de 30 mil torcedores foram ao jogo. O São Cristóvão chegaria ao empate com João Pinto e teria a chance da virada num pênalti marcado após toque de mão de Biguá. Mas Jurandyr entrou em cena, espalmando para escanteio a cobrança em chute forte de Santo Cristo.

O placar de 1 a 1 manteve o Fla na liderança, porém não mais isolada: tinha agora a companhia do Fluminense. Com a saída do páreo do América, restavam quatro times na briga a três rodadas do fim da competição, numa reta final empolgante: a dupla Fla-Flu com 22 pontos, o São Cristóvão com 21 e o Vasco, que arrancara no returno, com 20. A grande decepção era o Botafogo, já bem longe, em 7º lugar, somando só 12 pontos e sem chances matemáticas. Segurando a lanterna, a decepção dos pequenos: o Bonsucesso, com dois.

E o próximo adversário dos rubro-negros era exatamente o rubro-anil da Leopoldina, em partida transferida de Teixeira de Castro para Laranjeiras em virtude de o campo do adversário, que tinha arquibancadas de madeira, ter sido um dos quatro vetados pela Federação – os outros três foram os do América em Campos Sales, do Bangu na Rua Ferrer e, naturalmente, do São Cristóvão em Figueira de Melo. O Bonsucesso, que contava com um ex-rubro-negro em seu ataque, o ponta-direita Sá, engrossou no começo, mas depois foi presa fácil.

O Flamengo abriu o escore com Pirillo aos 22 minutos, mas logo em seguida Ítalo empatou para o Bonsucesso. O empate persistiu por toda a etapa inicial e além do primeiro terço após o intervalo. Somente aos 17 minutos do segundo tempo Perácio recolocou o Fla em vantagem. Daí em diante o time de Flávio Costa deslanchou e atropelou: Zizinho fez o terceiro aos 23 e Pirillo marcou aos 32 e aos 37 minutos, fechando a contagem em 5 a 1. Mesmo placar da goleada do América sobre o São Cristóvão, que afastou de vez os cadetes da briga.

A rodada seguinte pegaria fogo: os quatro primeiros colocados mediriam forças. O Flamengo, um dos líderes com 24 pontos, jogaria contra o Vasco, terceiro colocado com 22. Já o outro ponteiro, o Fluminense, pegaria o São Cristóvão, que vinha em quarto com 21. Os rubro-negros, entretanto, perderam na antevéspera do jogo a vantagem de atuar na Gávea. Na época, o estádio contava, além das arquibancadas de cimento armado, com outras de madeira atrás dos gols e do lado que então margeava a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Uma vistoria técnica havia sido feita pela polícia na semana que antecedeu o jogo, recomendando só alguns reparos, considerando que elas não ofereceriam o mesmo risco que as de Figueira de Melo, por sua construção e altura. Porém, uma nova inspeção foi realizada e seu laudo não ficaria pronto a tempo. O Flamengo cogitou até pedir para que a partida fosse realizada lá mesmo sem esse setor, o que provocaria um impacto na renda do jogo, diminuída em cerca de Cr$ 50 mil. Mas, sem o laudo, a Federação preferiu não arriscar.

A entidade então requisitou o estádio do Botafogo, em General Severiano. Os dois clubes concordaram, e fechou-se a questão. A bem da verdade, o Flamengo também não tinha tanto a lamentar: o gramado alvi-negro era tão bom quanto o da Gávea; sua torcida estaria presente a qualquer campo; e ali naquele estádio o time de Flávio Costa havia goleado os próprios anfitriões por 4 a 1 ainda na segunda rodada do primeiro turno. E naquele 3 de outubro, os rubro-negros aplicariam outro placar elástico, que entraria para a história.

O Flamengo repetia sua escalação pelo quarto jogo seguido – algo inédito para o time naquele campeonato – com Biguá de centro-médio e Jacyr na ponta-direita. Já o Vasco vinha embalado: vencera os últimos cinco jogos marcando nada menos que 24 gols, incluindo um 7 a 0 no Bangu na Rua Ferrer e um 3 a 1 no Botafogo na rodada anterior. E de quase descartado no início do returno, já encostava da ponta da tabela. No ataque, lançava Djalma, Lelé, Isaías, Ademir e Chico, base do que viria a ser chamado de "Expresso da Vitória".

Mas quem saiu empilhando chances logo nos primeiros minutos do duelo foi mesmo o Flamengo: Pirillo perdeu duas; Jacyr, outra. Quando o Vasco tentou equilibrar as ações, apareceu o gigante da zaga rubro-negra, como narrou Mário Filho em sua crônica para o Jornal dos Sports: "Lelé estava a cinco passos de Jurandyr, pronto para desferir o shoot. Domingos, aparentemente vencido, tomou-lhe a bola no instante do shoot e saiu jogando com ela. Na segunda vez, nas mesmas circunstâncias, Domingos tomou a bola de Isaías".

Aos 39 minutos, o domínio rubro-negro começou a se traduzir no placar: Perácio recebeu um cruzamento da direita, tirou Figliola da jogada e abriu na esquerda para Vevé, que arrancou, driblou Rubens e, frente a frente com Oncinha, esperou o goleiro cair para um canto e tocou no outro. Veio o intervalo e, na volta, o Fla ressurgiu avassalador. Aos dois minutos, Perácio apanhou uma rebatida mal-feita do zagueiro Rafanelli e acertou um petardo de cerca de trinta metros bem no canto. Com o segundo gol, o Vasco já desmoronava.

Tão perturbada estava a defesa vascaína que apenas um minuto e meio depois ela cederia mais um gol em lance aparentemente inofensivo: numa indecisão entre Oncinha e Rubens (apertados por Perácio), os dois se chocaram, e a bola sobrou limpa para o atacante rubro-negro fazer 3 a 0. Aos 20 minutos, foi a vez de Pirillo se aproveitar de um vacilo da defesa adversária para fazer o quarto. Agora já era mesmo goleada. Estava fácil: dois minutos depois, Perácio entrou driblando na área e rolou para Pirillo anotar o quinto tento rubro-negro.


Naquela altura, a torcida do Vasco já abandonava General Severiano: além do baile que seu time levava do Flamengo, o São Cristóvão praticamente entregava de bandeja o título aos rubro-negros derrotando o Fluminense em São Januário no mesmo instante. Os que saíram mais cedo nem viram Lelé descontar. Nem Zizinho receber de Jayme e bater da marca do pênalti para fazer o sexto do Fla. Lelé ainda voltaria a diminuir, e Oncinha evitaria que Jacyr e mais tarde Bria marcassem o sétimo do Flamengo. Mas o placar de 6 a 2 já era histórico.

Era – e ainda é – a maior goleada rubro-negra sobre o Vasco em todos os tempos. E se não é o placar mais dilatado da história do confronto (o rival fez 7 a 0 em 1930), tem a seu favor o critério da qualidade: foi imposta a um esquadrão vascaíno fortíssimo, que em breve se tornaria quase hegemônico no futebol carioca – já a maior goleada cruzmaltina fora aplicada sobre um Flamengo que vivia o pior período de sua história. E além de tudo serviu para afastar de vez o velho adversário da disputa do título naquela temporada.

O Flamengo tinha praticamente as duas mãos na taça. O São Cristóvão, alijado da disputa na rodada anterior, agora dava uma ajudinha batendo o Fluminense por 3 a 1. Os rubro-negros tinham dois pontos de vantagem sobre os tricolores (26 a 24) antes da rodada derradeira. Assim, na pior das hipóteses – isto é, se perdessem para o Bangu na Gávea e o Fluminense batesse o Bonsucesso em Laranjeiras – ainda levariam a decisão para uma melhor de três. Era, porém, um cenário difícil de se imaginar, tamanho o acerto que o time vinha exibindo.

Após o Flamengo 6-2 Vasco, Mário Filho escreveu: "A diferença era chocante. Em nenhum momento do campeonato o São Cristóvão fora pior do que contra o América, em nenhum momento do campeonato o Fluminense fracassara tanto quanto contra o São Cristóvão. Enquanto isso, o Flamengo se agigantara em General Severiano. Dali se poderia dizer justamente o contrário do que se dissera do São Cristóvão e do Fluminense: o Flamengo provou que só ele podia ser o campeão. Ou, pelo menos, que só ele merecia o título de campeão".

Para o confronto da última rodada, o Flamengo enfim conseguiu a liberação da Gávea. Enfrentaria um Bangu que já havia batido América, São Cristóvão e Fluminense durante o returno e prometia "esticar o campeonato". Mas em campo só mostrou jogo brusco, que tirou temporariamente de campo Biguá e Newton Canegal para receberem atendimento à beira do gramado. A vitória rubro-negra foi protocolar: Perácio – que abriu o placar e fez mais dois – e Pirillo – com outros dois, sendo um de pênalti – comandaram a goleada por 5 a 0.

O primeiro gol, marcado logo aos dois minutos, contribuiu para que o jogo transcorresse em clima de pura festa na Gávea. Quando saiu o quinto, a dois minutos do fim, a torcida já havia chegado ao gramado. Ao fim da partida, o artilheiro da tarde recebeu um insólito presente. "Foi rápido. Pereira Gomes apitou dando por findo o jogo. Uma multidão invadiu o campo. Os jogadores do Flamengo, exceto Perácio, conseguiram fugir dos abraços. Perácio ficou para receber o cabrito, para ser carregado em triunfo", escreveu Mário Filho.

"O cabrito seguro, bem no alto, pelas duas mãos de Perácio, esperneou, botou a boca no mundo. Perácio nessa hora já não estava com os pés no chão, deitara-se nos ombros da torcida, que o arrastava para lá e para cá. A banda de música atacou o hino do Flamengo. Das arquibancadas de cimento desciam espirais de serpentina. O vento ajudava a espalhar confete por todos os cantos. A Gávea perdera a fisionomia de um campo de football, virara salão de festa. Carnaval em pleno mês de outubro", arrematou o cronista no Jornal dos Sports.

A explicação para o cabrito entregue a Perácio também estava detalhada nas páginas do popular diário cor-de-rosa: "Alguém teria dito, de público, a certa altura do campeonato, que a marcação a Perácio, num match, não oferecia margem a preocupações. Isto porque o forward rubro-negro, de movimentos desordenados em campo, mais parecia um cabrito, pulando e saltando, sem nenhum proveito prático para o conjunto. A declaração viria a ser imprudente com o correr dos tempos", ressaltou a nota, que não era assinada.

O relato prosseguia: "A verdade, entretanto, é que um torcedor do Flamengo, magoado com o menosprezo às virtudes do forward rubro-negro, decidiu adquirir um cabrito verdadeiro, criá-lo carinhosamente, para, no dia em que o Flamengo se sagrasse campeão – tanta certeza tinha o torcedor de que isto aconteceria – presenteá-lo a Perácio como manifestação de desagravo. Foi o que aconteceu anteontem". O atacante posou para fotos ao lado de Jayme de Carvalho, líder da Charanga Rubro-Negra, e prometeu não se desfazer do bicho.


Perácio terminou o Carioca como o artilheiro da campanha rubro-negra com 14 gols, seguido por Pirillo com 12, Vevé com nove e Zizinho com sete. Ao todo, nos 18 jogos, o Fla anotou 51 gols, marca expressiva (2,83 por partida), mas apenas a quarta mais positiva do certame. O que fez a diferença naquele ano foi a defesa, de longe a menos vazada: apenas 18 tentos sofridos. Para se ter uma ideia, as que vinham em seguida eram a do Fluminense com 31, e do Vasco com 38. O cartel final registrou 11 vitórias, seis empates e só uma derrota.

Esses eram os números da conquista que dava ao Flamengo seu nono título carioca e o terceiro bicampeonato, após os levantados em 1914/15 e 1920/21, logo no início de sua trajetória no futebol. Mas o primeiro e histórico tri estava a caminho – não sem uma generosa dose de percalços, baixas e reviravoltas. Mas essa é história para ser relembrada em outra ocasião.


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