Para contar esta história, o material abaixo combina texto de Emanuel Colombari para o site Última Divisão (www.ultimadivisao.com.br) com matérias do Jornal dos Sports, do Jornal do Brasil e da Revista Placar.
O contexto da época: o Brasil vivia o apogeu de uma crise econômica de hiperinflação e destruição do poder de compra da economia. O futebol brasileiro vivia uma tentativa de reformulação econômica desde que o Clube dos 13 foi fundado e fora realizada a Copa União em 1987. O poder de arrecadação com as competições nacionais havia melhorado desde então. Porém, a nível estadual, o Campeonato Carioca vinha sendo ultra deficitário, com estádio vazios, e uma frequência cada vez maior de partidas com públicos pagantes inferiores a 1 mil pessoas nos duelos contra clubes de menor expressão.
A situação em Minas Gerais era parecida, e na busca de uma solução comum, clubes dos dois estados se aproximaram com o intuito de criar a chamada Liga Rio-Minas, cujo projeto era organizar um campeonato enxuto reunindo 8 clubes - 4 do Rio e 4 de Minas - para substituir em importância ao Campeonato Carioca e ao Campeonato Mineiro. O objetivo principal, naturalmente, era organizar um torneio mais atrativo, com mais jogos grandes e maior potencial de atração de público e de audiência, que ampliasse a capacidade de arrecadação dos clubes. Como primeiro passo, Flamengo, Fluminense e Botafogo assinaram a fundação da Liga Carioca de Futebol, cujo presidente eleito foi Antônio Augusto Dunshee de Abranches, ex-presidente rubro-negro.
Mas o status quo do futebol brasileiro sempre agiu ferozmente para impedir a união dos clubes, e a herança das relações coronelistas da política nacional sempre se mantiveram no coração das desavenças que tratavam de impedir estratégias de modernização, numa queda de braço na qual federações estaduais e CBF sempre mostraram a sua força. E foi assim que aconteceu no Rio de Janeiro na primeira metade da década de 1990, naquela vez levando à explosão de um escândalo de corrupção que tomou por semanas as páginas dos jornais esportivos.
Em 3 de dezembro de 1993, o então diretor de árbitros da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ), Wágner Canazaro, reuniu-se na sede da entidade com 70 integrantes do quadro de juízes. Mas... a troco de quê? A missão era selar um acordo para acertar resultados do Campeonato Carioca do ano seguinte.
Como mencionado, os principais clubes do Rio viviam às turras com a FERJ. Flamengo e Fluminense estudavam a possibilidade de criação de uma liga independente para alternativa ao Campeonato Carioca de 1994. O Botafogo acenava com a possibilidade de engrossar o movimento, enquanto o Vasco vivia uma divisão entre seus dirigentes – o presidente Antônio Soares Calçada admitia a possibilidade no futuro, mas seu vice-presidente, Eurico Miranda, não pretendia se afastar de seu amigo Eduardo Viana, o Caixa d'Água, então presidente da FERJ.
Foi neste cenário que a informação da reunião de árbitros chegou aos ouvidos de Marcos Penido, repórter do jornal O Globo. O acordado na reunião era que os árbitros puniriam com mais rigor os atletas de clubes rebeldes nas partidas do Campeonato Carioca do ano seguinte. Pelos relatos publicados nos jornais da época, as palavras de Canazaro teriam sido" não pode dar zebra. Só pode dar resultado que interesse à Federação".
Ao saber do encontro, Penido retornou ansioso à redação e contou a história ao editor César Seabra: "Uma fonte confiável me informou sobre o que havia ocorrido nessa reunião. Levei a história à redação e começamos uma apuração intensa. Falei com mais árbitros que pediram para não se identificar, mas confirmaram as informações. Não publicamos nada que não tivesse sido checado com rigor", relatou Marcos Penido em matéria publicada pelo próprio O Globo em 2015.
A publicação das primeiras matérias a respeito colocou dirigentes da FERJ contra a parede. Árbitros como Cláudio Cerdeira, Cláudio Garcia e Cláudia Guedes foram os principais agentes que tornaram públicas as informações do esquema, dando noção do tamanho do problema nos bastidores. Nas palavras de Cerdeira publicadas pelo Revista Placar: "não acreditava no que ouvia (naquela reunião). Era uma proposta indecente".
O clima de guerra esquentava. Em 11 de dezembro, Carlos Augusto Montenegro vencia a eleição, assumindo pela primeira vez como presidente do Botafogo. E seu discurso inflamado era um termômetro para o clima do futebol do Rio na época: "vou acabar com as armações e com o monopólio do Vasco na FERJ", declarando guerra política especificamente direcionada a Eduardo Viana e Eurico Miranda. Dois dias depois, a capa do Jornal dos Sports estampava: "Bota, Fla e Flu desafiam a Federação" na primeira página, e na última a matéria trazia: "Vasco prefere união com FERJ e pequenos".
A última página da edição de 18 de dezembro do Jornal dos Sports assim narrava os fatos: "Vários árbitros que participaram da reunião do dia 3 confirmam as ordens dadas pelo diretor de arbitragem, Vágner Canazaro, e pelo presidente da entidade, Eduardo Viana, sobre a manipulação de resultados no Campeonato Estadual. Foram as seguintes determinações: 1) Os árbitros não podem fazer resultados por conta própria, só com o consentimento da Federação; 2) Sempre que a Federação tiver interesse em um resultado, os árbitros receberão um comunicado do Robertinho (funcionário da entidade para irem falar com o diretor de árbitros; e 3) Não pode dar zebra, tem que dar sempre o resultado que interessar à Federação e todos terão que saber aplicar a "Regra 18", de acordo com o interesse da entidade, e aquele que elogiar a Liga Carioca de Futebol, será automaticamente afastado do quadro de árbitros". A "Regra 18" é aquela que não existe, seria o livre arbítrio do árbitro para tomar a decisão que melhor entenda, dado que o livro de regras de futebol da FIFA tem 17 regras.
O escândalo de arbitragem ganhou novos capítulos na véspera do Natal de 1993, e a partir de então o clima esquentou de vez. Flamengo, Botafogo e Fluminense afirmavam de forma irredutível que não disputariam o Carioca de 94 se não houvesse uma profunda averiguação das denúncias. A briga ganhou a esfera política pública, com a deputada federal Regina Gordilho e o então deputado estadual e futuro governador do Rio, e que décadas depois acabaria preso por corrupção, Sérgio Cabral Filho, solicitando intervenção da Procuradoria Geral de Justiça uma vez que, nos termos do ofício encaminhado ao procurador: "o fato invade a esfera criminal, o estelionato está caracterizado, uma vez que foi obtida vantagens ilícitas para Bangu e Americano em resultados esportivos mediante meios fraudulentos".
O buraco ficou maior em 10 de janeiro, quando o também árbitro Orlando Gomes Leonor depôs ao Tribunal de Justiça Desportiva (TJD) da FERJ. Leonor foi categórico ao afirmar que, por influência política de Eduardo Viana, o Itaperuna havia sido rebaixado no Campeonato Carioca de 1992. O motivo? Rivalidade entre dirigentes.
Segundo o Jornal do Brasil de 11 de janeiro de 1994: "o Itaperuna era dirigido na época por Elias Naider, vice-prefeito da cidade, que havia acabado de tirar o clube das mãos do bicheiro Roberto Sued e do ex-presidente Norton Mendonça. Sued é amigo de Caixa d’Água – e foi até buscá-lo no aeroporto em sua chegada de Las Vegas, naquela vez quando o presidente da FERJ levou um grotesco tombo".
Com Elias Naider na diretoria, o Itaperuna disputou o Carioca de 1992. O clube acabou punido pela escalação irregular de um jogador em duelo contra o Vasco, e ainda teve uma partida encerrada previamente por "falta de segurança" – curiosamente, em um jogo no qual empatava por 1 a 1 com o Americano, time de coração de Caixa d'Água. Entretanto, meses depois, o próprio TJD teria admitido o equívoco na punição referente ao jogo contra o Vasco em conversa com Almiro Mariano Costa, vice-presidente de futebol do Itaperuna. Passado o rebaixamento à Série B do Campeonato Carioca de 1993, o grupo comandado por Roberto Sued retornou à diretoria do clube.
Em 19 de janeiro de 1994, o presidente da FERJ foi intimado a prestar depoimento à Polícia Civil. Chegou nervoso e fumando muito. Culpou a imprensa pela "livre interpretação dos fatos" (discurso comum na boca de todo e qualquer corrupto). Em seu depoimento tentou se explicar: "imaginem que durante toda a semana o Júnior Baiano (zagueiro do Flamengo) declarasse que iria bater no Bebeto (então atacante do Vasco) e que logo no primeiro minuto de jogo, ele fizesse uma falta violenta no atacante. O árbitro mostraria então o cartão amarelo, e logo a seguir numa outra falta, o cartão vermelho. Se mostrasse imediatamente o cartão vermelho, poderia estar se deixando influenciar pelo que foi dito anteriormente. Este bom senso é o que eu entendo como a "Regra 18". Uma declaração que não explicou nada, embolou fatos, e serviu para aqueles que precisavam de qualquer coisa para argumentar que tudo tinha que ser deixado por isso mesmo.
Revista Placar - edição de Fevereiro de 1994
A pressão, segundo a revista Placar de fevereiro de 1994, havia chegado ao presidente da FIFA, João Havelange, sogro do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, então acuado pela pressão política dos três clubes cariocas revoltosos. Nas páginas dos jornais, a ameaça da FIFA era pela desfiliação de Flamengo, Fluminense e Botafogo de todas as competições profissionais. Nos bastidores esportivos, temendo que outros estados rompessem com suas federações estaduais, a CBF entrou em campo e se reuniu com clubes e FERJ, e o encontro entre estas partes sepultou a possibilidade de uma liga independente, mantendo Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo no Campeonato Carioca de 1994.
De acordo com a Placar, Havelange e seu genro, Ricardo Teixeira, "tinham consciência de que o reconhecimento da Liga representaria o esvaziamento da Federação, uma das que sustentam Teixeira no poder, além do risco de ver a própria CBF perder no futuro a sua força com a criação de uma Liga Nacional".
Panos quentes e um acordão entre todas as partes. O inquérito na Polícia Civil não chegou a lugar nenhum, e foi encerrado deixando tudo por isso mesmo. No final, no Campeonato Carioca, os 57 árbitros que assinaram um manifesto de apoio ao ex-diretor de arbitragem da FERJ atuaram normalmente, e o torneio transcorreu como se nada houvesse acontecido. O torneio reunindo Atlético Mineiro, Cruzeiro, América Mineiro, Flamengo, Fluminense, Botafogo, e Manchester de Juiz de Fora, nunca aconteceu, e o status quo vigente manteve seu desejado poder político. Campeão em 1992 e 1993, o Vasco ficou com o título de campeão carioca também em 1994, num quadrangular final épico, no qual pela única vez na história, três clubes poderiam ter saído campeões na última partida do campeonato, entre Vasco e Fluminense. Quem vencesse era o campeão, e se houvesse empate, o título seria do Flamengo. Vitória cruzmaltina, para coroar a relação de amizade entre Eduardo Viana e Eurico Miranda.
A crise foi abafada, mas a ferida não cicatrizou. Nos anos seguintes, o Fluminense foi o campeão carioca de 95 com o gol de barriga de Renato Gaúcho, o Flamengo o invicto de 96 sob o brilhantismo da dupla Romário e Sávio, e o Botafogo de Túlio faturou o título de 97. Em 1998, os conflitos em torno da aliança Eduardo Viana e Eurico Miranda voltaram a eclodir com força, tendo Flamengo, Fluminense e Botafogo abandonado o campeonato antes do fim, deixando o caminho aberto para mais um título vascaíno.
O Vasco vivia dias de pujança econômica, montando supertimes, mas foi o Flamengo que ficou com o tri-campeonato sobre o rival, em 1999 com o gol de Rodrigo Mendes, em 2000 com o 5 a 1 agregado de Athirson, Beto, Fábio Baiano, Tuta e Reinaldo, e em 2001 com o gol antológico de Petkovic. E em 2002 a ferida voltou a se abrir, e pelos mesmos motivos que levaram à formação da Liga Carioca e à crise do fim de 1993: o baixo retorno e o prejuízo financeiro dos jogos contra times menores no Carioca. A saída desta vez foi tentar ressuscitar o Torneio Rio-São Paulo e deixar o Campeonato Carioca de 2002 de lado. Desta vez com o Vasco também tendo aderido à rebelião contra a Federação. Só que a distância de poder econômico dos paulistas para os cariocas já havia crescido tanto, que o pífio desempenho dos times do Rio no torneio, atropelados pelos de São Paulo, fez o projeto perder força.
A partir de 2003 foi a Rede Globo o agente contemporizador da crise, quem foi capaz de fechar a ferida de novo. A emissora comprou o projeto Campeonato Carioca buscando revitalizá-lo economicamente: garantiu que todos os jogos fossem no Maracanã, acabando com as partidas em estádio pequenos, e remunerando os quatro grandes do Rio a mais por isso, compensando o prejuízo que estes tinham com o Estadual.
A solução econômica pacificadora funcionou por mais de 10 anos, até setembro de 2015, quando o baixo retorno financeiro e a queda do apelo de público voltou à pauta, tendo sido fundada a batizada como Primeira Liga do Brasil. O projeto tinha semelhanças com o levante de 1993, mas desta vez além do elo entre Rio de Janeiro e Minas Gerais, conseguiu atrair clubes também do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina. A intenção era substituir os Estaduais por outro torneio, assim como se planejava em 1993. Desta vez o torneio saiu do papel e virou realidade, com a realização de duas edições, em 1996 e 1997. O status quo desta vez também estava mais forte, os clubes de São Paulo, que não planejavam se desfazer do mais rentável Campeonato Paulista, aliaram-se à CBF, e o Vasco, mais uma vez, desta vez com reforço do Botafogo, aliou-se à FERJ. O embate não foi escandaloso e parou na polícia, como aconteceu em 1993-1994, mas foi acirrado, mas mais uma vez o status quo conseguiu se impor e vencer a queda de braço. Assim como conseguiu contra a Copa União em 1987 e contra a Liga Carioca em 1993. Uma história para levar à reflexão em 2022, quando dois movimentos divididos tentam fundar uma Liga Brasileira e destituir os elos políticas entre CBF e Federações Estaduais, tão economicamente prejudiciais aos grandes clubes.
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